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Cyro Martins


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O fordzinho gemeu no repecho e logo apontou resfolegante ainda do esforço.

- Quem será, Maria?

- Algum tropeiro que vai comprá gado no Selêncio.

Desceu do auto um homem corpulento, de pala de seda, lenço branco, bombacha larga, falando alto e sobranceiro.

- O coronel Dutra!

- Então, Manuel, como vão vocês por aqui, e dona Maria, os filhinhos?

Bem, obrigado, coronel, e os seus?

Os bois, que Manuel e a mulher repontavam, pararam, enrolando a língua no pastiçal orvalhado da beira do cercado.

- Mas isso não é vida pra você, homem! Ainda ontem, conversando com o dr. Clóvis, ele se referiu com muita simpatia a seu respeito. Me lembra bem que ele disse: é uma injustiça estar se perdendo um rapaz assim, com tantas qualidades, que muitos serviços relevantes poderia prestar ao município. E eu, como era de se esperar, estive de acordo, tanto que me prontifiquei em seguida para vir até a tua casa para conversarmos. Você foi empregado no comércio, trabalhou numa firma importante - a principal loja de fazenda da nossa cidade! - é reservista do exército, do nosso glorioso exército. Quem sabe que carreirão, amigo, você não teria feito se ficasse com a farda? Pois já era cabo, ou não era ou quase, quando rateou dando baixa.

- Sim, senhor, coronel, eu ia ser promovido a cabo daí a dois meses. Pelo menos esta era a promessa do meu tenente.

- Pois é, tá vendo? Depois foi funcionário de banco. É verdade que não fez carreira como bancário, mas também desistiu logo, não teimou. Numa palavra, como lá diz, você é desses homens que sabem onde têm o nariz! E agora, como é pobre - tem mulher, tem filhos, precisa, portanto, ganhar a vida honradamente - se vê reduzido à condição de chacareiro para sobreviver, justamente porque você não quis proceder como tanta gente sem-vergonha e vagabunda que prefere roubar e pedir a trabalhar. Isto, por si só, atesta que você é um homem de caráter. Pois bem, resumindo, nós precisamos aqui, nesta zona, que é importantíssima pela quantidade de crianças que tem, de uma escola, e você é homem talhado pra ser o professor rural aqui. Isto não só será uma ocupação digna de sua pessoa, como também um melhoramento extraordinário para o distrito. E mais, a sua nomeação, pelo acertado da escolha, prestigiará, nestas redondezas, o chefe do Partido Republicano e a pessoa do sr. Intendente Municipal.

Manuel Garcia, de olhos gachos a princípio, fitando depois o coronel, o auto, os bois, o arado, a mulher, e mais longinho a terra recém-lavrada, custou a se convencer de que aquilo era mesmo com ele.

O coronel chupou o mate. Fez uma pausa proposital, descansou a cuia na barriga e prosseguiu num tom mais convincente, seguro já de conseguir o seu intento.

- O nosso laborioso intendente municipal, o dr. Clóvis, mandará construir um "edifício" aqui, provisoriamente de tábua, próprio para colégio, para uns quinze ou vinte alunos, segundo modelo recebido há pouco de Porto Alegre. Enfim, ele aparecerá por cá em breve para dar início às obras. E também para determinar reparos nestas estradas.

- Mas o senhor acha mesmo que eu...

- Ora, deixe disso, amigo! E agora, já que estamos entendidos nesta primeira parte, digamos, nesta preliminar, mudemos de assunto. Como você, que lê jornais...

- Coronel, faz tempito que não cai um jornal por aqui.

- Pois vai passar a recebê-los com regularidade.

- Ah, mas que bom, quer dizer então que vamos ter estafeta no distrito?

- Sim, tudo isto vai ser resolvido juntamente com os melhoramentos do colégio, das estradas e outras "cositas más".

- Eu lhe interrompi, me desculpa.

- O que eu ia dizer, e disto você deve estar cientificado, é que teremos eleições este ano. O nosso candidato, como sempre, será o impoluto Dr. Borges de Medeiros, presidente do Estado e chefe incontestável do Partido Republicano Rio-Grandense. Isto ainda não está oficialmente assentado, mas, é claro, não se pode esperar outra coisa. O dr. Borges parece que não quer mais, alega estar cansado do governo e necessitado de ir cuidar da sua estância no Irapuazinho, mas o partido imporá a sua candidatura, a começar pelo fato de não haver outro. E o nosso grande chefe se curvará às injunções partidárias e fará mais um sacrifício pelo Rio Grande. Fala-se também, por aí, que os maragatos e mais uns gatos pingados, dissidentes do nosso glorioso Partido, estão se arregimentando com o intuito de apresentar candidato, mas isso, acredito, não passará de boatos, balelas de parlapatões. Quem, neste Estado, poderá dizer, de sã consciência, que não está satisfeito com a administração do dr. Borges? De qualquer maneira, o Partido precisa estar coeso e alerta para manter no governo o maior rio-grandense vivo!

Nessa altura, o coronel já estava exaltado, como se estivesse respondendo a contestações. Ergueu-se do banco, atirou o pala sobre o ombro, repetiu várias vezes referências à magnanimidade do chefe, à pujança do Partido e aos expedientes desleais dos adversários, que estão sempre com o olho fincado no poder, esperando o menor cochilo deles pra se apossarem do mando, porque outra coisa não querem. E rematou, já a meio caminho para o auto:

- Pois então ficamos acertados. Você será nomeado professor rural, deixará esta vidinha miserável, própria de indivíduos incapazes, porque a rabiça do arado não foi feita para mãos de homens da têmpera de um Manuel Garcia. E em troca dessa mudança de vida, uma verdadeira loteria, o que lhe exigimos? Veja o nosso desprendimento - nada! Apenas o seu voto e a sua cabala nas redondezas para o dr. Borges de Medeiros, o maior rio-grandense vivo!

O fordzinho deu uns roncos, estremeceu, ia ter um ataque, quando o chofer apertou o pedal e o bicho arrancou. Rumou, pela estradinha vicinal, estreita e esburacada, para a estrada real, que distava uma légua dali. Foi baixando e subindo ladeiras, aos solavancos. Levantou poeira grossa. Alarmou alguns animais. Deixou os vizinhos mais próximos matutando sobre o que estaria ocorrendo no rancho do Manuel. Doença? Seria um doutor? Sim, porque auto por ali só pra trazer médico da cidade, em casos de desespero.

O coronel ia contente com o discurso. Mal cabia no ford, orgulhoso do seu êxito. Também, pensava, "me ajudou muito o último artigo de fundo d'A Federação, lido na véspera, de noite, na sede do Partido".

Manuel Garcia ficou imóvel ali mesmo, boquiaberto, de pé, vendo o auto apequenar-se na distância. Não dissera que sim, nem que não. E nem suspeitava que o coronel ia pensando: "Este songa-monga está no papo".

Após demorada contemplação do longe, das coxilhas, do ford corcoveando que levava o coronel, aquele homem que o considerava tanto e ele nem sabia, aquele homem rico, manda-chuva na política e futuro intendente municipal, Manuel Garcia encolheu o olhar do fio da última coxilha antes da estrada real, como quem puxa uma linha de anzol, devagarinho, que o peixe pode não estar bem fisgado, e se topou com o "laranja" e o "andorinha", bem junto ao arado, como prevenindo que já era tempo de unir.

Após certa relutância, decidiu-se:

- Fora boi, fora boi.

Fechou a porteira do piquete. Ao voltar-se, a mulher, que o seguia sem ser vista, o interrogou:

- Como, tu não vai terminá de virá a lavoura de milho catete, hoje?

- Não!

- Mas, home, pra que atrasá o serviço?

- É o que te parece, mas não atrasa, adianta.

- Tu stá certo, home?

- Tou bem certo, mais certo do que nunca.

- O que é que tu tem, meu Deus do céu? O que foi que te disse o coronel?

- Ah, aí é que são elas! Ele veio me abri os olhos. Me disse o que ninguém ainda tinha me dito. Que eu não sou qualquer um. Sou um homem inducado, competente, que é uma lástima estar metido num serviço bruto destes. E é mesmo.

- Tão te bobeando, home! Isso são lorotas...

- Lorotas por quê? O que o coronel diz, se diz, é porque é de respeito.

- Quero só vê se ele vai dá de comê pra nós e os nossos filho!

Manuel fez uma careta, mirou de soslaio a mulher e disse, entre brincalhão e compenetrado:

- Eu sou agora o professor rural do distrito, mulher! Amanhã mesmo já vou providenciá nas palmatória. De hoje em diante, nesta redondeza toda, não tem ninguém mais importante do que eu. Agora, sou pessoa influente... na política!

Manuel, naquele momento, daria um dente pra convencer-se a si mesmo que ele era, de fato, um homem "inducado" e importante ali nos pagos. Seria mesmo "inducado" ou "educado"? O "im" do importante o atrapalhava. Melhor deixar pra depois. Ia a passo calmo e medido, porém meio tonto. Pensamento galopeando pra frente. Professor, a visita do dr. Clóvis, a gurizada na palmatória, ele respeitado e temido. Ele, pelo menos lhe parecia, sempre fora tratado com pouco caso pela vizinhança que o chamava de Maneca, nomais. De hoje em diante ia se fazer conhecer. Iam ver com quem estavam tratando. Ainda se lembrava daquela lição do "quem com ferro fere" do segundo livro.

- Papai, papai!

Virou-se, surpreso. O gurizinho de esganiçava.

- Papai, papai, a porca overa quebrou as cangaia e está fuçando nas munhata.

Manuel Garcia estremeceu, não se conteve um segundo, correu, pulou a cerca, entrou na plantação e surpreendeu a daninha. Coçou-lhe o lombo com um arco de barril que agarrara na corrida. A porca se assustou, embaralhou-se, veio sobre ele, pechou-lhe nas pernas, derrubou-o.

Manuel Garcia de repente virara Maneco outra vez, levantando-se sujo de terra, a testa suarenta, as mãos esfregando as canelas esfoladas.

Os dedos ardiam, encolhidos e roxos. Nariz não tinha mais. Apenas uma bola de neve na cara, abaixo dos olhos e acima da boca. Nos pés parece que levava sapatilhas. Parece. Mal tateava as rédeas. Por sorte, era voluntário o douradilho. Galopeava a uma simples agachada de corpo pra frente. De vez em quando desestribava os pés e espichava as pernas, encostando-as nas paletas do montado. Um calor de sangue vivo e impetuoso, de músculos que se contraem, passava das carnes do animal para a sua pele arrepiada.

Quando Chiru chegou ao baixo, apesar do sol alto, só nos corguinhos estreitos a água corria. No mais, nos poços quietos, nas pisadas dos animais nos banhadinhos onde houvesse água parada, a superfície era um vidro, reluzindo ao sol. A cada pisada do petiço, estralejava um ruído de caquerio de garrafa. O campo todo era um lençol. Só nos altos começavam a verdejar os pastos, mas de um verde descorado, de folhas queimadas. Nas ladeiras, as reses magras ainda mascavam, deitadas, o pasto comido na véspera. Muitas não levantariam mais. Outras, com um impulso na cola, talvez.

Nada no campo se movia. Nem as árvores solitas - um umbu de tapera no topete da coxilha, o espinilho de tronco liso e fino da cabeceira da sanguinha e o mata-olho do fundo do potreiro grande. Estavam estaqueadas no ar, mais delgada a silhueta, a ramaria mais distante do chão, não serviam de abrigo a ninguém, nem a homens nem a animais.

No que varou a sanga, Chiru galopeou. Ao coroar a coxilha, encontrou os colegas, gurizada da vizinhança, campeira e alarife como ele. Até o colégio, foi um surumbumba, correndo carreiras e califórnias, esquecidos do frio.

Chegaram. Casa fechada. Seu Maneco ainda dormia, como era comum. Aglomeraram-se no oitão batido de sol. A geada levantava mansinha, sem vento.

Zequinha Flores, sardento e ruivo, magriça, alto, sacou do bolso uma tava. Palmeou o osso, inticante, num desafio. E no sofragrante dois paus de fósforos caíram acolherados, no chão úmido, de terra batida, topando a parada. Como dois galitos de rinha que apenas se emplumam, Chiru e Zequinha tramaram-se, caprichando nos tiros de duas voltas e volta e meia. A princípio foi silencioso o jogo, precavido. Mas logo começaram as apostas de fora. E a cancha coalhou-se de fósforos, moedinhas de tostão, fivelas, aperos dos pingos, lápis, canetas, pedras de escrever, tudo valia no jogo. Cada qual se esmerando mais em mostrar-se arriscador na sorte. Chiru tinha mão certeira ao largar a tava num tiro de volta e meia. Seria, quando grande, bom clavador. Ademais, demonstrava serenidade e coragem no escorar paradas.

Zequinha, menos seguro no tiro, mas irrequieto e menos valente, tinha, no entanto, um algo, um jeito, um toque, um alinho arrogante no corpo todo, deixando adivinhar o jogador de caça que crescia nele.

De repente, a porta abriu-se. De olhos inchados de tanto dormir, a cara por lavar, o professor berrou, estrugiu como um raio, esparramando a gurizada vagabunda, sem-vergonha, perdida, que bem estas foram as suas palavras.

Eram dez horas.

Manuel Garcia, compenetrado, procurando impor-se, fez os alunos entrarem para a aula. Completavam uma dúzia. Chamou seis. Enfileirou-os na sua frente. Tirou da gaveta a palmatória de cinco furos. E puxou, com ganas, meia dúzia de bolos em cada um. Depois repetiu o mesmo ensinamento para a segunda turma.

- E agora, estudem, seus vagabundos, malcriados!

Marcou a lição energicamente: estudar o alfabeto manuscrito do "a" até o "p" de diante pra trás e de trás pra diante!

Deixou-os ali no "estudo" e foi pra cozinha tomar mate com a mulher.

À s onze e meia reapareceu, lavado, penteado, paletó preto, bombacha estreita, lenço branco no pescoço. Sim, de lenço branco! Não podia dispensar o lenço branco - distintivo do Partido.

Tomou a lição. Ninguém soube a lição. Nova descompostura e soltou os alunos com a ameaça de que, se no outro dia não soubessem ainda, repetiria o mesmo castigo, com mais energia.

A gurizada saiu a galope, às gargalhadas, toureando-se uns aos outros.

Manuel Garcia ficou parado na porta, bestificado diante do espetáculo. O que seria dele, do seu colégio, da sua vida, depois que os alunos aprendessem o ABC? Quem o mandara ser tão estúpido a ponto de vender baratinho o "laranja" e o "andorinha"? Além do ABC, tudo era uma cerração pra ele. Mas não, não havia perigo, aquela gurizada baguala nunca passaria do ABC. Além disso, o seu voto ao dr. Borges seria uma garantia incondicional...

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* Sem Rumo. Porto Alegre, Movimento,1977 ( 2a. Ed. revista)

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