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Porteira Fechada: criação fronteiriça  E-mail
Fortuna Crítica - Artigos

                                                                                         

                                                                                                    Maria Helena Martins

 

Trânsito, deslocamento, passagem são palavras indicativas da dinâmica característica de expressões estéticas que atravessam fronteiras, superam limites de tempo e espaço, ainda que construídas em contexto circunscrito, espacial e temporalmente datado. A proposta é apresentar o  romance Porteira Fechada, de Cyro Martins, como exemplar desse tipo de criação, digamos, fronteiriça. Até por conta da temática e das origens do autor, a fronteira sudoeste do Rio Grande do Sul com o Uruguai.

Essas palavras – trânsito, deslocamento, passagem e várias suas correlatas - enfeixam  semanticamente  os títulos  da  chamada “trilogia do gaúcho a pé”: Sem Rumo (1937), Porteira Fechada (1944) e Estrada Nova (1953). Essa trilogia, assim nomeada pelo editor de Cyro Martins, o também crítico literário Carlos Appel, constitui o que mais tem sido destacado na obra do autor, sendo Porteira Fechada o best seller.

João Guedes, o protagonista, tornou-se o  protótipo do “gaúcho a pé”, que alguns leitores e críticos dizem ser “o avô do homem sem terra”, passando assim de personagem a figura usada como bandeira de um movimento social (MST).

Cyro Martins, que tinha apego especial a suas personagens, sorria manso quando ficava sabendo disso. Era homem de esquerda, mas, acima de tudo era um humanista. Desacreditava em campanhas de desmistificação e na desmitificação do gaúcho. Mas tinha urgência em mostrar a débâcle do homem e do mundo da campanha -  um, se vendo enxotado para a marginalidade urbana, outro, sofrendo os impactos das transformações sociais e tecnológicas. Entretanto, o que confere ao romance a sua atemporalidade e, em última instância, seu valor literário, é o profundo e genuíno retrato da miséria humana que revela em seu texto, sendo realista e  humanitário. A empatia do autor por suas criaturas decadentes é sem comiseração.

E aqui deparamos outro aspecto decisivo na construção de Porteira Fechada – o contexto sócio-histórico e existencial que descortina mostra vivamente falta de alternativas. O sistema produtivo (pecuária e agricultura) em desmanche, afeta os proprietários de terra, cujo padrão de comportamento e  viés político-partidário é reacionário, retrógrado, típico dos “donos do poder” e “das terras”. E esse mesmo sistema arrasa os despossuídos. Assim,  de uma aparente antinomia entre uns e outros  emerge a ambiguidade e a ambivalência de visões de mundo e de relacionamentos, em que prevalecem contradições, hesitações, vicissitudes, esperanças e ilusões. Enfim, características presentes em qualquer ser humano e que transparecem nas personagens masculinas e femininas, nos fazendeiros e nos posseiros. Então, Porteira Fechada, como toda  a “trilogia do gaúcho a pé” é mesmo “a representação ficcional de Rio Grande do Sul”, como afirmava Sandra Pesavento, é “ romance documental”, no dizer de Décio Freitas –para referir dois historiadores de saudosa memória. Terá mesmo nascido como um profundo clamor por justiça social diante da miséria testemunhada pelo autor como jovem médico se iniciando na profissão, em sua terra natal, Quaraí, atendendo a clientela dos três Ps, como dizia: pobre, parente e puta.

No caso da Trilogia, fica evidente o desabafo esperançoso do homem político.   Contudo, se especialmente Porteira Fechada tem sido vista por alguns críticos e leitores, mais como obra engajada (para lembrar nossos tempos de faculdade) por certo ela chegou até aqui por sua condição literária.

A história da literatura é pontuada por obras com tais características que se tornam exemplares de quanto uma criação pode ser produzida  e usada com finalidade não artística e, apesar disso, subsistir estéticamente. Não diria que o comprometimento social e político do autor tenha se sobreposto ao fazer literário, nesse romance. Mas, ainda que intencionalmente tivesse sido assim, o resultado superou a intenção. Aliás, esse é o único dos vinte e tantos livros que escreveu no qual jamais mexeu sequer numa vírgula para as reedições ( hoje na 16ª.). Algo surpreendente, para quem sempre procurava aprimorar seus escritos.

Esse quadro me lembra Antônio Chimango, poemeto campestre e sátira política gaúcha, de Amaro Juvenal (pesudônimo de Ramiro Barcellos). Surgiu  em 1916, em edição clandestina e por décadas passou de boca em boca, oralmente,  como panfleto político contra o Presidente do Estado, Borges de Medeiros, que se eternizava no poder. Ficou  muito mais conhecido por esta última faceta, mas sobreviveu ao momento histórico-político que lhe deu origem pelo valor literário inquestionável do texto. No caso, o poemeto campestre e a sátira política – apesar  de diferenciados na impressão, que os separa  no conteúdo e no visual– interagem harmonicamente.

Voltando à Porteira Fechada, diria que a coerência interna é arrematada pelo trabalho da linguagem. A propósito, um dos gargalos da literatura regionalista sul-rio-grandense tem sido a transposição do linguajar local para o texto literário. Não  raro resulta artificial, não convence nem quando na fala de personagem típica. Um dos ganhos de Cyro Martins é que sua ficção, principalmente devido à própria vivência pessoal do autor, incorpora a linguagem fronteiriça, inclusive na sintaxe, conferindo autenticidade ao escrito. Esse é um dos aspectos que identificam sua literatura como regionalista  mas não gauchesca. Outro, está no fato de tratar do gaúcho como homem comum e não, como herói, “centauro dos pampas”. Sem dúvida, aqui  se encontram outros indicadores de criação fronteiriça.

Vejamos uma amostra da narrativa de Cyro Martins: slides com trecho de PF em que João Guedes, transtornado, mata um capão para obter algum  dinheiro( p. 117-118).

 

Porteira fechada (1944)
.........................

Estavam ali reunidos, num boliche de fim de rua de cidadezinha, quatro indivíduos que se emborrachavam juntos quase todas as noites e que não eram amigos. A noite estava abafada e os seus rostos mais pesados que habitualmente.

Havia qualquer coisa grave suspensa sobre eles. Mostravam-se mais ensimesmados que em qualquer ocasião. Mas nenhum deixava transparecer a causa das suas apreensões. Cada qual vivia para si o seu drama.

Guedes, o homem de olhar bom, barbudo e encurvado, que se achava sentado defronte ao capitão, meditava na sua história, no destroço da sua vida. Cada anoitecer o encontrava mais desgraçado.

Ele não contava o princípio da sua decadência pelo dia em que se mudara pra cidade. Datava-o do dia em que, indo a trote pela estrada, evitando as pedras para poupar o cavalo, sem avistar ninguém, nem no corredor nem nos campos, os seus olhos ardidos do solaço deram com um rombo no aramado. Perto, viu uma ponta de ovelhas esparramadas na encosta duma coxilha. Quase sem pensar, deu de rédeas ao cavalo e entrou na invernada. Contou uma pontinha de ovelhas, entre as quais as suas vistas campeiras destacaram logo um capão lanudo e gordo. Repontou-as no rumo dum baixo, onde corria uma sanga de barro. Ariscas, algumas sentavam. Deixava que se escapassem, como um refugo proposital. Por fim, sobraram o capão e uma ovelha velha. Foi aí que cerrou perna, esquecido de tudo.

A ovelha logo debruçou entre as macegas, estafada. Mas o capão tinha graxa e gambeteava com agilidade, forçando-o a bruscas esbarradas. Queria atropelá-lo contra um barranco. Lastimava-se de não trazer consigo um laço. Não desanimava, porém. Pelo contrário, encarniçava-se cada vez mais, embora começasse a sentir canseira e a notar que o montado se esfalfava. E nessa teimosia foi correndo sanga abaixo, como nos tempos de guri arteiro, e ziguezagueando, até chegar ao ponto em que o animal apenas troteava. Boleou-se do cavalo, então, e saiu num frenesi, errando manotaços na lã crescida e crivada de flechilha do capão rome. Enraivecera-se. Por nada desistiria da caça. Num dado momento o animal meteu as mãos num buraco e caiu. Ele, correndo muito perto, rolou por cima e não teve tempo de agarrá-lo. Desesperado, apedrejou-o, como que apedrejasse um bicho desprezível. Acertou-lhe na cabeça. O capão testavilhou e rodou logo adiante. Suado, exausto e furioso, João Guedes arrancou da faca e sangrou-o como quem sangrasse um inimigo.

Quando se viu na estrada, à noitinha, carregando a presa atravessada na garupa e sentindo a ardência no peito, dor na lagarta das pernas e suor gelado na testa, horrorizou-se do que fizera e jurou jamais repetir semelhante façanha. Entretanto, instigado pelas próprias necessidades e pelo conluio encorajador com o Fagundes, recaiu uma e outra vez, até o flagrante em que foi preso.

Fazia agora dois meses que se achava em liberdade, porém se considerava mais prisioneiro que nunca. Tinham sido dois meses terríveis, esses. Perdera a filha, vendera o cavalo, vendera os arreios, Maria José secava dia a dia, passavam fome. Na véspera, percorrera a cidade à cata duma changa qualquer. Tratara a limpeza dum sítio por oito mil réis. Compreendia que não era serviço pra um homem da sua idade e no seu estado. Talvez caisse no meio das ervas... Depois disso, qual seria o seu próximo passo?

..................................................(Cyro Martins. p. 117-118 - 11ª ed.) 

 

Cabe aqui uma observação. Cyro Martins deixou a fronteira, definitivamente, em 1937 e só voltou lá em 1974.  Quase 40 anos depois,noentanto, sua memória visual e afetiva reviviam experiências com o frescor do momento. Nesse período, escreveu grande parte de sua obra. E uma pergunta que muitos leitores e estudiosos fazem é como, à distância, passados tantos anos, ele conseguia recriar a paisagem, o ambiente, o linguajar, a vida da campanha e da fronteira com autenticidade de quem convivia ainda com tal universo. Talvez a resposta esteja numa de suas considerações sobre o escritor e sua arte

"É assim que vemos o artista, o escritor, como órgão social, cuja função precípua consiste em elaborar e transmitir, esteticamente, experiências subjetivas e impressões sensoriais  provindas do mundo exterior, mas transfiguradas pela projeção".

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Quando propus à Ligia que Guilherme Castro e eu  apresentássemos juntos nossas leituras de Porteira Fechada, considerei que este Simpósio seria excelente oportunidade para desenvolver leituras contrastivas, ensaiando uma prática que me parece muito rica.  Expor à discussão, simultaneamente, diferentes leituras de um texto  em vista de diferentes finalidades: esboçar um estudo literário e esboçar um filme. Tudo indica que ambas podem se iluminar mutuamente e provocar novas leituras.