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A NOVA FRONTEIRA DOS HOMENS DA FRONTEIRA: A PORTEIRA FECHADA DO MUNDO URBANO  E-mail
Fortuna Crítica - Artigos

                                                                                                         


                                                                                                        Cesar Augusto Barcellos Guazzelli *


Exilado no Chile, o caudilho Angel Vicente Peñaloza respondeu a alguém que lhe perguntava como estava passando: ¡Cómo me a dir, amigo! ¡En Chile y a pie! (1) Poucas frases expressam tão bem o estranhamento dos campeiros platinos quando deslocados dos seus "pagos" e "apeados": o gaúcho só é reconhecível quando "de a cavalo" e no espaço das estâncias de criação, e a profusa literatura gauchesca marcou este antagonismo campo versus cidade na fórmula "paisano" versus "povoeiro" (2). Os "paisanos" quando em contato com o mundo urbano, mostram toda sua incompreensão dos modos citadinos e sofisticados, perdem suas referências, não entendem os mecanismos que regem a vida no "povo", não reconhecem a linguagem, tornam-se facilmente vítimas das tramitações legais ou burocráticas e submetem-se a saberes doutos fetichizados.

Se o mundo urbano e "civilizado" ameaçava a existência do gaúcho, a literatura tratou de "salvá-lo". Os intelectuais rio-grandenses, preocupados em revelar as singularidades que caracterizaram a vida nos campos e os gaúchos, fizeram um mergulho no passado e construíram as imagens idealizadas que ainda perduram. Lidas, indumentárias, comidas, falares e outros tantos aspectos, foram esmiuçados e externados necessariamente em comparação com os usos e gostos contemporâneos dos espaços urbanos. Neste sentido parece válida uma analogia com os escritores do Prata: "En su aspecto formal, la literatura gauchesca consiste usualmente en relatos en primera persona escritos en una lengua llena de ruralismos de diverso grado de autenticidad, color local, pernonajes típicos, y una imaginería que se supone reflejo de la vida rural y el habla de las clases bajas." (3)

Também na literatura regional rio-grandense é usual que o autor "fale" pela voz de uma personagem, como se pudesse incorporar aquilo que em verdade não é, um homem com a vida e experiência do campo. Os intelectuais da cidade criaram, assim, "vozes campeiras" que se chamaram Blau, Lautério, Fandango etc. A legitimidade das narrativas estaria diretamente relacionada a este grau de identificação, quando o escritor se "transforma" no gaúcho que conta as histórias e "causos" (4). Para justificar o caráter realista e "verdadeiro" das reconstituições feitas pelos grandes regionalistas rio-grandenses, todos eles intelectuais urbanos, Augusto Meyer destaca a profunda ligação afetiva que tinham com os "pagos", a nostalgia de uma vida campeira que os fazia buscá-la incessantemente, num contato o mais epidérmico possível com a terra e as gentes (5).

Os regionalistas procuraram reconstituir uma realidade que ia desaparecendo, suplantada aos poucos pelas áreas de colonização alemã e italiana, e por uma urbanização que se acentuava. Não é por acaso, pois, que este movimento está associado justamente ao declínio, econômico e político, do mundo da estância, como observou Sergius Gonzaga (6) . A nostalgia de mitológicos tempos heróicos conduz à imobilização do passado, que aparece redivivo e acusando a dissolução do presente, que é o presente vivido por estes autores. Esta procura dos tempos perdidos recupera um homem do campo que já não existe, atribuindo-lhe falas e valores que já desapareceram, como escreveu Guilhermino Cesar (7).

O antagonismo campo versus cidade se converte assim em passado versus presente. O "paisano" resgatado do passado representa uma integridade que vai se perdendo, enquanto o "povoeiro" de hoje é a sobrevivência vitoriosa e indesejada daqueles que antanho confrontaram-se com os modos e o jeito de ser dos gaúchos. Referindo-se a Simões Lopes Neto, afirma Flávio Loureiro Chaves que "um só personagem/narrador presta testemunho, deflagrando na memória a atualização do passado. A realidade outrora observada vem a ser recuperada e revelada pela sua palavra." (8)

Aparentemente estes gaúchos, produtos da criação literária, falam, opinam, criticam e revelam suas diferenças com as gentes urbanas. Simões Lopes, Ramiro Barcellos, Darcy Azambuja, Barbosa Lessa e Érico Veríssimo não se confundem, no entanto, com Blau Nunes, Lautério, Serapião, Zacaria ou Fandango; o que temos são "povoeiros" intelectualizados "vendo" como os campeiros "deveriam ver" aquela distância entre as duas realidades. O regionalismo assim posto não cumpre o preceito "conhece tua aldeia e serás universal" de Tolstoi; fixando o mundo da campanha e suas gentes como ele "deveria ser" e contrastando-o com a "corrupção" urbana em que convive, a literatura regionalista congela os atores e relações sociais, naturalizando-os como meros produtos do meio (9) , reiterando uma imagem já sacralizada e reificada do "paisano" no "país", em oposição com o presente do "povoeiro" no "povo".

Assim, mesmo alguns dos nomes mais consagrados da literatura rio-grandense não escapam da armadilha: se o talento de Simões Lopes é capaz de fazê-lo ultrapassar as fronteiras do regionalismo porque sua obra "contém um discurso social e um discurso psicológico, a reflexão histórica e a indagação sobre o destino do homem" (10) , isto não se observa em todos seus contos; se o realismo de Érico Veríssimo o faz discutir o mito do gaúcho através do seu alter ego Floriano Cambará, o capitão Rodrigo e Fandango estão muito presos ao clichê do "monarca das coxilhas" ou "centauro dos pampas".

E é esta imagem do gaúcho construído pelo regionalismo, dando ênfase na contradição campo versus cidade - que se converte em passado versus presente - ou pela exacerbação das qualidades de um tipo regional que só tem lugar no "seu" espaço e no "seu" tempo, que aponta para a existência de uma nova "fronteira", insuspeitada pelos "guascas" da campanha rio-grandense: o enfrentamento e subjugação a um mundo que se urbanizava e industrializava rapidamente. Lutar contra os castelhanos ou contra o Império não comprometia a manutenção da estância e seu cotidiano; migrar para as cidades implicava numa desestruturação econômica, social e psicológica. Eludindo o problema, os autores regionalistas procuraram ferreamente preservar o passado, recriando-o e contrapondo-o à "decadência" dos costumes trazidas pelo presente, ignorando o "gaúcho a pé" cujo assomar que já assistiam.

Criticando ecsa idealização, coube a Cyro Martins a precocidade e profundidade do diagnóstico de uma transformação tão radical. No prefácio que escreveu em 1944 para "Porteira Fechada", o historiador Décio Freitas adverte para o retrato feito da "crise profunda que a nossa campanha está atravessando, crise traduzida num êxodo sem precedentes para as pequenas cidades do interior e para a capital, em índices de miséria, de mortalidade infantil, de subnutrição simplesmente apavorantes." (11) O próprio Cyro Martins afirmou que seus livros "tomaram como personagens centrais o gaúcho a pé, expressão simbólica do campeiro despilchado do cavalo e da distância, os dois fatores fundamentais que fizeram do homem rio-grandense uma estampa histórica." (12) A partir dessa renovação, tornou-se impossível negar a desaparição do gaúcho, mas a nostalgia de um tempo e de um espaço já inexistentes ainda tem presença na poética gauchesca.

O poeta e compositor argentino Atahualpa Yupanqui cunhou a expressão "Buenos Aires, ¡ciudad gringa!" referindo-se à sua primeira inconformada impressão da capital portenha (13) . Também alguns dos mais festejados compositores rio-grandenses contemporâneos apontam para este estranhamento e para a nostalgia da vida campeira. Noel Guarany, por exemplo, apresenta o mundo urbano como ameaçador para o gaúcho:"Uma vez, fui na cidade / Na maldita perdição, / Lá perdi meu pala velho, / E me doeu no coração!" (14) ; afastar-se do "povo" seria uma condição primeira para a sobrevivência, sem qualquer reflexão sobre as possibilidades desta escolha. Na cidade, os antigos "guascas" circulam perdidos, sonhando com o mundo da estância num tempo em que "não sabiam que eram felizes" (15) , como se o êxodo rural resultasse de uma opção pessoal equivocada. É comum ainda a recomendação direta de retorno para os "pagos", como se fosse possível ainda reconstituir o passado perdido, como nestes versos de Telmo de Lima Freitas: "Quem vendeu tesouras / Na ilusão povoeira / Volte para a fronteira / Para se encontrar!" .

Assim, passados já tantos anos de publicação da trilogia do "gaúcho a pé", persistem as visões idealizadas do campo e do passado, o que renova a importância do tema e a necessidade de novas reflexões. Aparentemente esta última "fronteira" representada pelo mundo urbano não tem recebido novos aportes pelos escritores e poetas regionalistas, o que mantém ainda ímpar a literatura de Cyro Martins, que identificou "o patético, naquele doloroso desandar, rumo ao sem rumo."

 

César B. Guazzelli
é Professor Adjunto do Depto. de História da UFRGS

 


(1) SARMIENTO, Domingo Faustino. El Chacho. In: VÁRIOS. Vidas del Chacho. Buenos Aires: Rodolfo Alonso Editor, 1973, p. 71.

(2) Aqui a palavra "paisano" - tanto no português quanto no espanhol - designa os nascidos no "país", no campo, e está em oposição a "povoeiro" - "pueblero" no espanhol - que identifica os que vêm do "povo" - "pueblo" -, significando povoado, vida urbana. A palavra "paisano" no século XIX adquiriu tamanha identidade com a população campeira que passou a ser antônimo de "milico", usado como pejorativo para as forças militares regulares em ambos os lados da fronteira; afinal, eram a "milicada" que, a mando das autoridades do "povo", batia a campanha perseguindo os gaúchos.

(3) SHUMWAY, Nicolás. La Invención de la Argentina. Historia de una Idea. Buenos Aires: Emecé Editores, 1993, p.84.

(4) MEYER, Augusto. Prefácio. In: LOPES NETO. Contos Gauchecos. Porto Alegre: Globo, 1976, p. XIV.

(5) Id., p.XVII.

(6) GONZAGA, Sergius. As mentiras sobre o gaúcho: primeiras contribuições da literatura. In: DACANAL, José Hildebrando & GONZAGA, Sergius (org.). RS: Cultura e Ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996, p.121.

(7) CESAR, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do Sul (1737-1902). Porto Alegre: Globo, 1956, p.329.

(8) CHAVES, Flávio Loureiro. A História observada pelo avesso. In: DACANAL & GONZAGA. Op. cit., p.133-134.

(9) MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prosa de Ficção. Apud CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Veríssimo: Realismo & Sociedade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p.32-33.

(10) Id., p.234-235.

(11) FREITAS, Décio. O Drama dos Homens sem Terra. In: MARTINS, Cyro. Porteira Fechada. Porto Alegre: Movimento, 1976 (3ª Edição), p. 6.

(12) MARTINS, Cyro. Nota Explicativa. In: Estrada Nova. Porto Alegre: Movimento, 1975 (2ª Edição), p. 8.

(13) YUPANQUI, Atahualpa. El Payador Perseguido. Argentina: Discos EMI-Odeon, 1975.

(14) GUARANY, Noel. Romance do Pala Velho. In: Cantos da Fronteira. São Paulo: Discos RGE, 1977.

(15) NAPP, Sérgio & DORNELLES, Mário Barbará. Desgarrados. 12ª Califórnia da Canção Nativa do RS. Rio: Discos K-Tel, 1982.