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Literatura e Literatura e Imaginário sobre a Mulher no Antigo Egito* | Imprimir |  E-mail

Margaret M. Bakos**

Inicio esta palestra com palavras de Cyro Martins sobre a necessidade de um esforço da mulher na sociedade atual para vencer a dicotomia psicológica em que foi criada, através do aprofundado conhecimento de si mesma. Visando contribuir nesse sentido, vou falar sobre mulheres protagonistas de literatura no antigo Egito que, pelo inusitado das suas atitudes, levaram os escribas - homens - a criarem imagens diferenciadas - os hieróglifos - para melhor narrar os seus feitos em tempos ainda mais normativos do que os nossos, com relação à condição feminina!

 

A associação entre literatura e imaginário social está em voga, mas muito raramente se buscam as origens do entrelaçamento entre essas instâncias que surgem já bem configuradas no antigo Egito com os hieróglifos.

 

Esta comunicação propõe-se a resgatar traços desse imaginário existente nos tempos faraônicos, especificamente no que concerne à mulher, via análise de dois contos egípcios curtos, mas bem objetivos quanto ao tratamento do tema. Certamente, as primeiras versões dessas narrativas foram feitas oralmente, pois, como explica o egiptólogo francês Lefebvre, o vocabulário empregado nesses relatos é pouco variado, pobre, o que indica tratar-se de linguajar simples, falado por pessoas do povo. Possivelmente, diz o sábio, os contos eram endereçados aos camponeses da época, como forma de distração, em meio às suas rotinas monótonas e rudes.

 

Os contos originais estão registrados no conhecido Papiro Westcar, no qual se encontra uma série de relatos relacionados artificialmente uns com os outros, constituindo uma espécie de narração a tiroirs (gaveta).

 

O rolo encontra-se no Museu de Berlim, fruto de doação incerta. Conta-se que o manuscrito foi presenteado ao egiptólogo alemão Richard Lepsius (1810-1884), entre 1838-9, por uma certa Srta. Westcar, havendo sido trazido por ela mesma do Egito. Quando Lepsius morreu, o papiro passou ao Museu de Berlim. Ele parece datar da época dos hicsos, mas o original que ele reproduz parece ser bem mais antigo e ter sido redigido antes da XII dinastia.

 

As histórias que o papiro contém, ter-se-iam passado, segundo a tradição escrita egípcia, na IV dinastia, fase de transição da pirâmide escalonada para a verdadeira. (2686-2181 a.C)

 

São contos, fartos em façanhas de mágicos e bruxos, feitos para encantar leitores que desejem ser transportados para fora do mundo real. Com estilo simples, não demonstram maiores pesquisas: há certa negligência no conteúdo e na forma e uso abundante de clichês. A mesma aparência, as mesmas expressões repetem-se até produzirem satisfação.

 

1 O que são os hieróglifos?

Hieroglifo é a denominação conferida pelos gregos à escrita dos antigos egípcios. O nome significa literalmente escrita sagrada, pois os helenos viram primeiramente esses sinais nas paredes dos templos e dos prédios públicos.

 

Por volta de 3000 a.C., os antigos egípcios começaram a desenvolver essa escrita de transição entre a grafia puramente pictográfica e a fonética, que atingiu o seu feitio mais definitivo no início do Antigo Reino, aproximadamente no ano de 2700 a.C.


A hieroglífica, com sua mistura de sons e de imagens, é considerada a mais bela entre todas as escritas. Mesmo em desuso há séculos, ela possui três características muito especiais que a tornam sedutora e instigam seu estudo na atualidade.

A primeira dessas características é relativa à natureza dos seus elementos, que são constituídos por imagens, em lugar de meros símbolos, como as letras. A atualidade dessa grafia icônica pode ser percebida hoje em dia, pelo seu uso nos sinais de trânsito, logotipos e emoticons, bastante presentes no cotidiano contemporâneo. A segunda e a terceira característica dizem respeito à estrutura do sistema hieroglífico, que é impar.

A escrita hieroglífica consiste na combinação de imagens representativas de idéias – os pictogramas – com imagens representativas de sons – os fonéticos. Por meio desse processo combinatório, os antigos egípcios foram elegendo imagens para representar, na escrita, os sons da linguagem falada.

Os sinais, denominados ideogramas ou ideográficos, são aqueles que representam diretamente uma idéia.  A cada ideograma, corresponde uma palavra. Mas os ideogramas podem ser usados simplesmente para complementar e ilustrar um vocábulo, já expresso foneticamente, pelos fonogramas que escrevem nomes de animais, pássaros, peixes, edificações, barcos, plantas e até pequenos objetos. Existem centenas de determinativos que representam desde elementos cósmicos: céu, terra, estrelas, incluindo figuras de seres humanos ou de atividades da vida diária dos antigos egípcios.

O universo masculino foi logo definido com a criação de hieroglifos determinativos do mundo do trabalho. Assim, entre os mais antigos, foi criado o determinativo para os escribas, pois eles eram os principais profissionais. É bastante conhecida a imagem em hieroglifo de um escriba, porque ele porta na mão ou no ombro um pedaço de cálamo ou caniço, talhado em ponta, apincelada ou rachada, usado como instrumento de escrita em papiro, a paleta, as pastilhas de tinta e o pote de água. Seu título na escrita hieroglífica se escreve pela imagem desse material como traçado de seus signos:

De imediato, também foram nomeados os trabalhadores de outras atividades, como podemos visualizar no quadro que segue, lendo da esquerda para a direita, a começar pela linha superior: homem em atitude de defesa, de ameaça, de invocação, de mensageiro, de torcedor com os braços levantados, de ginasta de ponta-cabeça, de oração, de prevenção, de dançarino, de pastor e, finalmente, com um morteiro, instrumento fundamental na construção civil.

Além de determinativos para atitudes e profissões, as figuras masculinas foram usadas para determinar situações do cotidiano guerreiro, como a primeira, do quadro 2, em que há um homem caído e as três últimas, que se referem ao cotidiano. A primeira do trio constrói a palavra velhice. Qual a importância desse exemplo?

Em sociedades como a do antigo Egito, em que as pessoas não pontuavam com exatidão suas idades, os critérios para determinar a velhice giravam mais em torno das atividades das pessoas do que do período de vida em que se encontravam. Em outras palavras, envelhecer era diminuir a produtividade e/ou criar dependência de outras.

Fig .: Expressão para velho em hieroglifos

Um dos termos  que indicam a velhice  é a  expressão acima, talvez  pronunciada:  iaw, fato não comprovável porque a língua egípcia antiga deixou de ser usada; então, foi esquecida e desconhecemos a pronúncia que era dada aos sinais determinativos. Observemos nesse conjunto de sinais, a figura que  determina o significado do grupo de três sinais fonéticos, que é a de um homem arqueado e apoiado em um bastão, visualmente consolidando  o significado do estado de  velhice naqueles tempos e a verbalização do conjunto todo.

Poderíamos multiplicar as primeiras expressões em hieróglifos, cujo determinativo era uma figura masculina. Entretanto, para designar o espaço destinado às mulheres na sociedade, os antigos escribas criaram apenas sete sinais determinativos: a mulher sentada, acocorada, grávida, parindo, amamentando, ninando e, finalmente, a que estava na condição de rainha.

Mulher e suas ocupações . (Gardiner, 1982,p.544)

Os escribas eram responsáveis pela criação dos símbolos, que lhes atribuía, sem dúvida, o status de profissionais mais valorizados na sociedade egípcia. O escriba era indispensável para a anotação de dados e de procedimentos rotineiros administrativos. Sua presença era também fundamental nos momentos excepcionais, como nascimentos, enterros, festas religiosas, reais e populares, quando o registro representava a imortalização de acontecimentos ou de pessoas.

Para se entender o lugar ocupado pelo escriba naquela sociedade, é importante conhecer o seu contexto de atuação. Os egípcios antigos acreditavam que o mundo fora criado quando os deuses individualizaram e designaram seres e coisas. Em síntese, pela palavra divina tudo passou a existir. Os deuses, entretanto, precisaram de que as pessoas advindas do caos inicial, juntamente com o universo material e concreto, prosseguissem com a nomeação. Então, eles ensinaram, através do deus Thoth, Senhor do Céu, os hieroglifos para os egípcios.

Assim, a importância da palavra era enorme para aquela sociedade. De um lado, por distinguir a humanidade de todo o contexto natural; de outro, por possuir uma origem divina. Nessa visão, escrever era repetir o ato da criação. Todo nome constituía a essência da coisa nomeada e quem o conhecesse detinha, por esse fato, um certo grau de poder sobre aquele ser. Pela palavra, garantia-se ainda a própria existência de pessoas, coisas e fatos.

Os escribas eram os homens que criaram a linguagem grafada. Por meio dela, conferiram à mulher as feições que a sociedade desejava que elas possuíssem. Nesse intuito, tiveram formidável importância os escribas leitores, uma categoria superior dessa profissão. A esses intelectuais faraônicos competia, além da criação e elaboração do texto da composição, a invenção dos próprios equipamentos gráficos, os hieróglifos, destinados a traduzir o texto da fala para o suporte da escrita: o papiro. A condição do escriba como inventor da escrita hieroglífica foi notável ao longo do terceiro milênio. Segundo Alessandro Rocatti, o escriba era acima de tudo aquele que sabia expressar em uma escrita única a confusão lingüística existente.

2 A criação de imaginários sobre a mulher no antigo Egito

Assim, dentre as primeiras tarefas dos escribas, salienta-se sua responsabilidade para com a criação de nomes designativos dos espaços de vida e de sociabilidade: o país – o Egito; o rio – o Nilo; as cidades, as vilas, os palácios, os templos e as casas de moradias dos populares. No que concerne às menções a pessoas, aos escribas cabia ainda definir normas para seus comportamentos. Eles foram os criadores de um gênero literário: o gnômico.

As instruções de Any, escriba do Palácio da rainha Nefertari, mulher de Ahmose (1570-1546 a.C.), faraó que, após a expulsão dos hicsos, iniciou a XVIII dinastia, mostram momentos de tecitura vigorosa dos fios da ideologia do poder faraônico sobre as fêmeas; nesse momento os egípcios desenvolviam o seu processo imperialista.

As instruções de Any foram compostas, assim, no Novo Reino, muito possivelmente no decorrer da XVIII dinastia.

Consoante Miriam Lichteim essas instruções têm duas características peculiares, que as diferenciam daquelas dos períodos anteriores:

(a) A primeira é a forma de apresentação do autor que se configura como um homem comum, fazendo-se entender e agradando aos que tem poucas posses e uma educação mediana;

(b) A segunda é o comportamento do filho no epílogo das instruções, que, em lugar de agradecer humildemente a lição recebida, como ocorria nas anteriores, faz objeções não apenas quanto ao sentido das recomendações, mas também quanto às suas possibilidades pessoais de obedecer ao que lhe fora ensinado. O autor introduz assim, uma nova di­mensão à interpretação das instruções: a possibilidade de seu fracasso, pois a capacidade de educar tem os seus limites.

O texto intenta levar os companheiros egípcios a adotarem um comportamento ideal para com suas mulheres, o que, talvez, fosse necessário, pelas diferentes atitudes referenciadas nos contos do papiro de Westcar, escritos, provavelmente, muito antes do texto de Any. Os contos apontam para um imaginário cruel sobre a presença e atuação da mulher naquela sociedade.

O primeiro conto do papiro de Westcar, datado de cerca de 1500 AC, intitula-se A esposa de Webaoner e o habitante da cidade. Sua importância decorre, além disso, da demonstração do poder exercido pelo escriba: ele apaga o nome do personagem masculino pelo seu papel vil, indicando apenas o seu local de origem e elimina completamente da narração a identidade da única e principal personagem feminina, porque ela também teve um péssimo comportamento.

Os eventos narrados aconteceram anteri­ormente.

Apresenta-se a seguir uma síntese desse conto .

Webaoner, principal sacerdote do templo de Ptah, em Menfis, tinha uma mulher, que estava de amores com um homem da cidade com quem mantinha contato, através de uma serva. A mulher enviou a esse homem uma caixa de roupas como presente e, um dia, ele veio com a serva.

Depois de passados muitos dias, o homem da cidade disse para a mulher de Webaoner: Ouça, há aqui uma casa de lazer no lago. Vamos e deixemo-nos passar algum tempo lá.

A mulher de Webaoner ordenou ao criado, encarregado do lago, o seguinte: Deixe a casa de prazer ser provida. Então ela foi lá e passou o dia bebendo com o homem da cidade até que o sol se pôs. Quando o lusco-fusco tinha caído, ele foi até o lago, e o servo ajudou-o a tomar banho.

Na manhã seguinte, o criado contou o incidente para seu senhor. Pegue em meu (instrumento?) de ébano e ouro, disse Webaoner, e com isso ele modelou um crocodilo de cera que era de sete palmos de com­primento. Ele recitou uma reza sobre o animal: Quem quer que vir banhar-se no meu lago, pegue ele!

Webaoner deu o crocodilo ao criado, dizendo: Quando o homem da cidade for até o lago, como ele costuma fa­zer todos os dias, atire o crocodilo na água depois dele.

Mais tarde, a mulher de Webaoner chamou o criado e disse: Deixe a casa do prazer no lago ser provida, porque eu quero ir lá. E a casa do lago foi provida com coisas boas. Ela então passou lá outro dia feliz com o homem da cidade.

Quando o lusco-fusco tinha caído, o homem da cidade, como já acostumara a fazer todo dia, foi para o lago. O criado jogou o crocodilo de cera, no lago, que cresceu sete côvados (antiga medida de comprimento) e pegou o homem da cidade...

Webaoner ficou por sete dias, no templo de Ptah, e, durante esse tempo, o homem da cidade esteve na água sem respirar. Quando os sete dias tinham passado..., Webaoner disse para o Faraó Nebka: Possa sua Majestade olhar o portento que tem acontecido nos dias de sua Majes­tade. O Faraó foi até lá com Webaoner que chamou o crocodilo e disse: Traga-nos o homem da cidade! O crocodilo trouxe-o imediatamente. Que crocodilo terrível!, exclamou o Faraó. Webaoner caminhou para baixo, e pegou-o e ele tornou-se um crocodilo de cera na sua mão.

O principal sacerdote relatou para o Faraó o que o homem da ci­dade tinha feito na casa de Webaoner com a sua mulher. E sua Majestade disse para o crocodilo: Pegue o que é seu! Então o crocodilo desapare­ceu nas profundezas da água (com o homem da cidade) e ninguém mais soube dele.

O Faraó deixou a mulher de Webaoner ser levada para o campo ao norte do palácio e lá pôs fogo nela, jogando suas cinzas no rio.

O texto refere o homem da cidade apenas por essa indicação, sem designar seu nome, e faz o mesmo em relação à mulher de Webaoner.

Qual o significado desse silêncio? Está ele relacionado com o sentido mágico que os egípcios atribuíam à escrita? Desejariam eliminar da existência os dois culpados, omitindo seus nomes? Em contraposição, o nome de Webaoner é diversas vezes explicitado. Fica muito evidente a relação e os papéis atribuídos pelo autor do texto aos dois amantes: a mulher infringe códigos de conduta familiar, ao estabelecer contato com alguém de fora do seu espaço privado; o homem da cidade, oriundo de local diferente, age desqualificadamente fora do seu meio.

O outro conto a ser mencionado, o terceiro do papiro, trata de um caso de magia para o prazer faraônico, iniciando com a descrição da profunda sensação de tristeza e de tédio que acometera o poderoso rei Queóps (2613-2589 a.C):

“Preso de tédio - Queóps ‘percorria todos os quartos do palácio à procura de divertimentos sem conseguir encontrar nenhum. Fez vir até ele os príncipes, seus filhos, e os filhos deles e lhes pediu que o distraíssem, contando cada um uma historia de sua criação”.

Se é verdade que Queóps teve nove filhos, foram feitas nove narrativas. Entretanto, só foram encontrados menos da metade desses relatos.

O próximo conto, narrado por Baoufá, tem o seguinte título: Um prodígio sob o rei Senéferu ou O conto das remadoras (Lefebvre, 1988, p.73).

O nome Senéferu significa Ele da beleza. Séneferu foi o pai de sete filhos, entre eles, Queóps.

Então Baoufrá se levanta para falar e diz: ”Eu vou fazer vossa majestade saber de um prodígio que aconteceu no tempo de seu pai – Senéferu (2613-2589 a.C), que foge do ordinário e do vulgar:

Um dia o rei Senéferu percorria todas as peças do palácio à procura de qualquer divertimento, mas não encontrava nenhum. Então,ele disse: Vá e me traga Djadja-em-ankh”. O sentido do nome desse personagem, em hieróglifos, é Muito forte na vida, tendo como sinal determinativo uma imagem que representa a coluna dorsal do deus Osiris, significando o pilar que segura o mundo. Ele foi trazido ao rei que lhe disse:

- Eu percorri todas as peças do palácio à procura de diversão, sem encontrar nenhuma.

Djadja-em-ankh  respondeu:

Que sua majestade vá para o lago do palácio. Equipe um barco com as belas jovens do seu palácio. O coração de vossa majestade se divertirá de ver suas remadoras subindo e descendo. E enquanto aprecia a beleza do lago,os campos que o bordejam e suas belas imagens, seu coração se divertirá com o espetáculo.

Disse o rei:

- Eu vou organizar um passeio na água. Que me tragam vinte remadoras, que sejam belas de corpo, que tenham os seios firmes, os cabelos trançados e não tenham entranhas abertas pelo parto. Que me tragam vinte redes, e que as remetam as jovens quando elas tirarem suas vestes.

Então, tudo foi feito como ordenara Sua Majestade.

As jovens começaram a remar para cima e para baixo, e o coração de sua majestade ficava feliz de vê-las remar. Mas uma delas, que estava atrás, perdeu o seu berloque pisciforme de turquesa que caiu na água. Então, ela parou de remar e, com ela,  sua equipe. E sua Majestade perguntou:

- Por que pararam de remar?

E elas responderam:

- Nossa chefe está desolada, ela cessou de remar.

O rei perguntou:

- Por que você parou de remar?

Ela respondeu:

- O meu berloque do feitio de um peixe de turquesa azul nova caiu na água.

O rei disse:

- Você quer que eu lhe dê outro?

E ela respondeu:

- Não, porque eu gosto do meu.

Então, sua majestade disse:

- Chamem Djadja-em-ankh

E assim foi feito. E o rei disse para ele:

- Djadja-em-ankh, meu amigo, eu fiz como você falou e meu coração se divertia com as remadoras. Mas o berloque pisciforme de turquesa azul novo da chefe das remadoras caiu na água: agora ela está desolada e parou de remar e fez com que as outras parassem. Quando lhe perguntei por que ela parou de remar, ela respondeu que era porque o seu berloque tinha caído na água. E eu lhe disse que remasse que eu lhe daria outro. E ela respondeu que não porque ela gostava muito do seu berloque.

Então, Djadja-em-ankh pronunciou algumas palavras mágicas – e cortou uma fatia da massa líquida como se se tratasse de um sólido, e a colocou na superfície da água, que se dobra na altura. Ele encontrou o berloque pisciforme que estava em cima de um caco, e o devolveu à sua proprietária. Assim, a água, que esteve de 12 medidas no seu meio, foi para 24 depois. Ele pronunciou ainda algumas palavras mágicas, e as águas do lago retornaram ao seu estado.

Sua Majestade passou todo o dia em festa, na companhia da sua casa real, e depois ele recompensou Djada-em-Ankh com toda a sorte de coisas boas.

Ao final do conto de Baufré, seu pai, o rei Queops disse:

- Ofereço mil pães, cem potes de cerveja, um boi e duas medidas de incenso a Majestade do rei Senéferu, meu pai, e um bolo, uma bilha de cerveja e uma medida de insenso a Djadja-em-ankh, o sábio, pois vi um exemplo do seu poder.

E tudo foi feito como sua Majestade comandara.

Colares com berloques eram objetos de sedução muito comuns no antigo Egito, sendo a turquesa uma das pedras favoritas, pela sua cor que remetia a deusa céu Nut


3 Apontamentos finais

Se toda a literatura traz consigo as marcas, como ensina Mossé, de seu contexto de criação, podem-se fazer algumas deduções sobre o imaginário concernente à mulher, a partir das instruções de Any, que procuram conferir novos contornos às relações de gênero naquela sociedade que, no momento, buscava, através do poder faraônico, garantir uma ordem.

Para além disso, esses contos antigos denunciam uma presença feminina, desde o início, rebelde e pouco afeita aos jugos sociais. De um lado, o primeiro conto mostra a esposa de um sacerdote mais preocupada com seu prazer pessoal do que com os cuidados com o lar, como rezava o determinativo de senhora da casa, que os escribas criaram para as mulheres com relacionamento fixo. De outra parte, a atitude da serva remadora, surpreende ainda mais, pois mostra que a dona do berloque, designada pela condição de serva, um determinativo de sujeição, fez um faraó submeter-se aos seus desejos pessoais e egoístas, tendo, como se viu, o poder de influenciar no humor do governante e de mudar suas decisões e vontades.

Mais ainda, reiterando a escrita, a esses dois exemplos retirados da literatura, acresce-se uma rica iconografia, tendo em vista a natureza da escrita dos antigos egípcios, que aponta para um meio lúdico de adentrar no processo de criação do imaginário sobre a mulher no antigo Egito. Pelo silêncio, no caso da mulher de Webaoner, pode-se conjeturar que ela, mesmo emudecida e apagada, rompeu com os limites concretos da vida cotidiana, provocando, com suas atitudes, a proposição de termos que permitissem fazer chegar até aos dias atuais suas escolhas, tão diferenciadas do que apregoavam os sacerdotes leitores.

Finalmente, a história de gênero sob o viés literário, trazendo a mulher como personagem, outrora rejeitada, pode ser encarada como uma chance de recuperação de inúmeras experiências sociais. Ela auxilia a identificação mais acurada de comportamentos e valores aceitos pelas sociedades antigas.

Assim, no trato com os hieróglifos, por exemplo, o enfoque pode passar, de um lado, do exame positivista das imagens de cunho iconográfico, iconológico, para um tratamento mais abrangente da visualidade como uma dimensão importante da vida e dos processos sociais. Dessa forma, a literatura egípcia, diferentemente de outras da antiguidade, é a única que possibilitaria uma tentativa de análise da representação do real, da mimésis. Essa busca, logicamente, foge do ofício do poeta, mas é tarefa do historiador, mais preocupado com a recepção do público e com a criação de imaginários, do que com o caráter estético de uma obra literária, exceto quando se defronta com os hieroglifos.

As análises semióticas tão em voga comprovam a criação de inúmeros novos hieroglifos, para além dos originais. Trata-se de um processo intenso que foi aumentando e se sofisticando, a partir de um vocabulário tosco de cerca de 600 palavras básicas iniciais à disposição dos escribas do Reino antigo (3150-2686 a.C), chegando à cerca de 6.000 no período da dominação greco-romana (332 a.C. – 641 d.C.) do antigo Egito. A invenção dessas palavras tornou-se necessária para marcar as diferenças entre os valores e ações, que a literatura passa a incluir, porque existentes na realidade concreta. Esse é o caso daqueles termos atinentes ao imaginário sobre as mulheres, que, para além dos cânones da sociedade faraônica, interessa agora compreender!



Nota sobre o artigo:

Agradeço o convite de Aymara Célia e Maria Helena Martins pelo honroso convite para participar do Encontro sobre a Mulher na Sociedade Atual – realizado em 03/10/09 - no Santander Cultural. Uma versão deste artigo foi enviada para publicação de um livro pela Universidade do Maranhão, em 2010. Sobre este tema escrevi outros textos disponíveis nos livros:


BAKOS, M. M. Fatos e mitos do antigo Egito. Porto Alegre: EDIPUC, 2009.

BAKOS, M. M. O que são os hieroglifos. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2009.

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* Texto originalmente apresentado na Encontro sobre a Mulher na Sociedade Atual- realização CELPCYRO - 03

 

** Profa. adjunta do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS); doutora em História (USP); pós-doutora em História (University College London); coordenadora da pesquisa Egiptomania no Brasil (CNPq).

 

Os hicsos dominaram o Egito ao longo do que foi chamado de II Período intermediário, entre 1782-1570 aC. Com a invasão do Egito pelos hicsos, por volta de 1640 a.C., os egípcios perceberam que a região do Delta era vulnerável aos ataques estrangeiros. Os hicsos da XV e XVI dinastias reinaram em paralelo com dinastias egípcias: a XIII dinastia egípcia foi vencida pelos hicsos; daí por que a mais importante foi a XVII, pois, durante o período por ela subsumido, Kamoses venceu os hicsos e destruiu a cidade de Avaris, a capital dos chamados reis pastores. Na sequência, os príncipes vitoriosos de Tebas fundaram a XVIII dinastia, que se mudou para a área tebana, para enterrar os seus mortos no sopé das montanhas, adotando a forma piramidal existente na área, onde se desenvolveu o vale dos reis e se encontram até hoje as tumbas dos reis, rainhas e nobres.

 

Como as sínteses dos contos guardam muito de sua estrutura original, optou-se por apresentá-las como citações.