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FRONTEIRIÇAS - Histórias do pampa e arredores - As lutas de boxe  E-mail
Fronteiras Culturais

 

AS LUTAS DE BOXE, PALCOS DA DIVERSÃO FRONTEIRIÇA


                                                                                     Liana Chipollino*

A história do lazer na fronteira de Santana do Livramento e Rivera, pode ser contada através da diversidade dos espaços reservados a sociabilidade daquela comunidade entre os anos 1930 e 1960. Nesse momento, a população fronteiriça divertia-se sob as lonas das múltiplas companhias circenses que instalavam-se no campo do Areial, ou nos concorridos e sofisticados salões dos Cine Theatros Cabarets e Cafés. Nesses locais repletos de sofisticação e suntuosidade, refletia-se o gosto peculiar de um público composto em sua maioria pelas famílias de ricos  pecuaristas da região. Contudo, os espaços democráticos do lazer, afora os picadeiros, encontravam-se nas lutas de boxe, que atingiram seu apogeu nos anos 1930 e mantiveram-se atrativas, de cunho popular e com um público cativo, até meados da década de 1960.  Em minha recente pesquisa sobre o lazer na fronteira, pude constatar através de relatos orais e documentos preservados, a relevância desse esporte no cotidiano da população.

Freqüentemente os jornais anunciavam os embates pugilísticos, de um lado ou de outro da fronteira. Essa prática cultural mobilizava espectadores de todas as classes sociais, que miscigenavam-se em um ambiente único, onde a maior atração eram os golpes dos ídolos do ringue. Na platéia podiam encontrar-se lado a lado, senhores respeitáveis, algumas vezes acompanhados de suas famílias, jogadores profissionais, músicos, jovens estudantes, mulheres e artistas da noite. Nesse espaço todos compartilhavam de um objetivo em comum: a admiração pelos lutadores e pelo boxe. No eclético ambiente das lutas, a fumaça das cigarrilhas concorria com a fragrância dos perfumes, importados por Rivera ou oriundos das casas de comércio santanense. As disputadas atrações eram geralmente reservadas aos sábados e domingos, exceto quando aparecia um lutador de outra região, quando os anúncios chamavam o público para as lutas nos dias da semana.

Em Rivera, o jornal Tradición Colorada divulgou no decorrer do mês de setembro de 1931uma emocionante disputa realizada no Cine Theatro Internacional, onde o conhecido boxeur Polo Norte desafiava Maturino Osório, pelo título estadual. A buscar lugar bueno muchachos!, conclamava o jornal aos aficcionados.1

O sucesso dos embates proporcionados pelas estrelas dos ringues fronteiriços fez surgir na região uma série de academias e ginásios destinados a esses espetáculos, que serviam de suporte para a atividade emergente. Os lutadores, protagonistas do novo ofício, recebiam da imprensa local um tratamento digno das emergentes estrelas cinematográficas  e circenses. As lutas de boxe consideradas de caráter profissional desenvolveram-se especialmente entre as décadas de vinte e meados dos anos trinta. Tinham características diferentes dos combates apresentados às platéias das décadas seguintes, quando vigorou a luta espetáculo. Embora essas atrações não aglomerassem uma multidão, semelhante à ocorrida nas partidas de futebol, os lugares reservados às lutas tinham a preferência de uma assídua platéia, composta por brasileiros e uruguaios. Perseverando Fernandes Santana, pecuarista e apreciador das lutas de boxe volta  àqueles tempos:

Não tinha a fama do futebol, mas as pessoas iam muito ver. Que eu me lembre não se pagava,tinha um público, não era como o futebol, que era uma enchente de gente! O público era de maioria masculino. Tinha o Mário Cunha, ele gostava muito de boxe, ele gostava de fazer rebuliço de boxe, tinha o Sezefredo Paiva, ele gostava de lutar também, ele lutava grande. Tinha uruguaios e brasileiros sim, eles se reuniam né? e ali (Rivera) tinha uma academia de boxe.2

Impulsionadas pelos jornais, as pelejas eram freqüentadas por uma considerável população que buscava no esporte a diversão. Uma platéia fiel lotava ginásios e bares que mantinham regularmente em sua programação os embates pugilísticos. Embora fossem freqüentados por homens em sua maioria, não era incomum identificar mulheres e adolescentes nesses ambientes. Muitas artistas e proprietárias de casas noturnas tornaram-se assíduas admiradoras, escolhendo um ídolo para sí e assistindo às lutas junto aos políticos e demais amantes do esporte. Alguns espaços públicos, onde era possível acompanhar o desenvolvimento das lutas, a ascenção profissional dos ídolos, ficaram na memória de Perseverando:

[...] Às vezes mudava de sede né? faziam lutas internacionais, claro, às vezes vinha gente do Uruguai lutar, dessas lutas eu não assisti muito, eu tava em Porto Alegre. O Maturino Osório era daqui, de apelido Mondongo, era um lutador popular. Tinha o Sezefredo Paiva, que era de família de alta sociedade lá de Rivera, esses troço e tal, parece que ele lutou com profissional e foi aí que terminou (risos). Tinha aí no Colombo, aí houve luta de boxe, sim, houve, parece que umas lutas, mas esporadicamente, tinha em diversos lugares que eles faziam ringue, depois sim que caiu o esporte era no ano de 32, 33, 34, 35, depois o Mondongo foi para Porto Alegre[...] 3

A emocionante atuação dos personagens do ringue fazia-se notável, demonstrando sua brutalidade no palco dos assaltos, fascinando as platéias. A ferocidade dos confrontos, como nos jogos no Coliseu romano - guardadas as devidas proporções - fascinava e atraía platéias. A truculência característica de alguns lutadores, chocava os espectadores. No decorrer de uma dessas noites que prometiam embates violentos, uma passagem trágica assinalaria para sempre a memória de Floriano Menendez, ele próprio um lutador e dono de academia:

Me  lembro de vários tipos que lutavam [...] mas tinha aquelas coisas de aficcionado, dos que lutavam. Tinha o Bebeco, meu amigo, ele tinha um físico muito delicado, tinha o peso mínimo, era baixinho, pequeno, mas tinha um físico maravilhoso, e era um lutador de primeira, de combate, valente. Esse Bebeco foi lutar com um castelhano, o Osório, que era peso médio e ele era peso mínimo, mas não podia, ele não podia lutar com esse peso, mas ele era muito atrevido, ele era valente, desafiaram  ele e ele foi lutar. O sujeito deu um golpe muito violento no peito dele e saiu sangue da boca. E daí ele não pegou uma tuberculose? Pegou uma tuberculose e acabou morrendo, por causa desse golpe. Foi o Maturino Osório, o lutador que deu o golpe nele. O Maturino era um grande lutador![...] 4

A fama do lutador fronteiriço Maturino Osório levava sempre um verdadeiro cortejo em viagens a outras cidades, onde ele ou outros lutadores preferidos do público estivessem atuando. Flores da Cunha,  governador gaúcho e filho de Santana, não fugia a regra e transformara-se em um assíduo freqüentador dos embates quando a estrela do ringue era seu conterrâneo Maturino. Seu Perseverando rememorou sobre um episódio quando ele, jovem estudante, vivendo na capital do estado, acompanhou um embate de seu  ídolo Maturino:

[...] Maturino, essa eu assisti, quando inauguraram o ringue Farroupilha, ali perto do cais do porto. Quem vinha para inaugurar, era o Primo Carrera, que era campeão mundial de boxe, ele vinha de passagem para Buenos Aires. O Flores da Cunha foi inaugurar o ringue, o General e Governador, eu tava lá no ringue, eu também fui, e fizeram a última luta com o Maturino e o Retamose em homenagem ao General Flores da Cunha, o Retamose era daqui (Uruguai), parece que daí de Tacuarembó, mas era um bom lutador. E o Maturino, fizeram uma homenagem ao  Flores, conterrâneo naturalmente do Maturino, o Flores era daqui não? (risos) E no primeiro ou segundo round, (risos) o Retamose deu um soco assim, pegou o queixo e o estômago do Maturino, o Maturino largo lá fora. (risos) Terminou a luta! O Maturino era valente, mas, era cheio de coisa para lutar, e até tinha um camisão assim, um chambrão de seda. Aqui de Rivera, tinha muito aqueles troço de seda. Tá, se apresentou o Maturino ! E nós todos, os santanenses batendo palma pro Maturino, mas ele lutou de novo, no segundo round, pegô e foi [... ]O Retamose era bom lutador. Quem foi vencer ele foi um rapaz de Pelotas, o Geraldino Oliveira, foi uma luta! Sim, todo ringue contra o Retamose ! Ele ganhou por pontos do Retamose, mas era valente o Retamose ! Eu me lembro. Tinha o negro Polo Norte, que era um negro também daqui, grandão. Era bom mas não era, assim de garra que nem o Retamose, os outros faziam coisa e ele agüentava, tinha o Juca Tigre, do Rio de Janeiro, vinham todo lutar aí, eu vi todos aí, em Porto Alegre, no Clube Farroupilha, no seu auge 5

Adentrando no universo das lutas profissionais na região nos anos 20 e 30, abre-se naturalmente um campo vasto a ser ainda investigado. Buscar na História Oral e seus desafios cotidianos a reconstrução dessa época requer o cuidado da busca pela testemunha, e o sentido de medir esses relatos dentro de uma razão estruturante do relato histórico. Conforme assinala Daniela Voldman, a grande testemunha é aquela que construiu sua identidade sobre uma ação voluntária e conscientemente interpretada: são as testemunhas-sujeitos.6

Isso é plenamente confirmado pelo depoimento do ex-barbeiro e boxeador Floriano Menendez. Foi de maneira casual que o jovem desportista e treinador de box Floriano Menendez descobriu Polo Norte, que viria a ser um dos mais conhecidos lutadores da fronteira. Nas lutas ocorridas no Coliseu, que depois viria a se transformar no Cine-Theatro Colombo, seu Floriano era um dos mais participativos. Mesmo sem nunca lutar profissionalmente, era apaixonado pelo esporte e mantinha sua academia, que dividia com que dividia com o ofício de barbeiro. Em torno do clube do boxe que ali se formou, ele promoveu Polo Norte:

Eu praticava o boxe, descobri um negro, um mulato que tinha um físico bárbaro esse. E um dia eu correndo de manhã, e ele andava correndo e eu peguei ele e disse: vem cá, um físico bárbaro, tu não quer entrar numa academia de boxe? Ele disse: quero. E eu trouxe ele para a Academia. E comecei a preparar ele, preparar ele, ele tinha um golpe de esquerda nótavel, um físico bárbaro, mas ele era muito covarde, covarde que era uma barbaridade, depois ele foi embora para São Paulo, criou uma academia por lá, ele tinha uma escola maravilhosa lá, para ensinar né? morreu em São Paulo, parece que chamavam ele de Polo Norte [...]E esse mulato tinha um físico bárbaro, agora, quando ele dava um golpe de esquerda era mortal, mas era covarde que era uma coisa bárbara! A história dele começou em Santana e terminou em São Paulo, e ele era muito estimado, o negro.[...] 7  

Mais tarde, nas décadas posteriores aos anos sessenta, o cenário de lutas transfere-se definitivamente para os circos e locais destinados a luta-espetáculo. O boxe passa para uma dimensão da memória, inesquecível par aqueles protagonistas que fizeram o cotidiano das lutas na comunidade fronteiriça. Por trinta anos consecutivos, a "nobre arte" seria o desporte e a diversão eleita pelos fronteriços, a exemplo do que acontecia nos grandes centros do Prata.

 

*Liane Chipollino,
santanense, mestre em História Cultural - UFSC.



NOTAS:

1 Tradición Colorada, Rivera,  09.09.1931, p. 02.

2  SANTANA, Perseverando Fernandes. Entrevista concedida em 28.07.2004, Santana do Livramento.

3 SANTANA, P.F. Entrevista citada.

4 MENENDES, Floriano. Entrevista concedida em 13.01.2004, Santana do Livramento.

5 SANTANA, P.F. Entrevista citada

6 VOLDMAN, Daniela. In Usos e Abusos da História Oral. (Org.) MORAES, M. de F e AMADO,J. Ed. FGV, 1996.p.38

7 MENENDES, F. Entrevista citada.