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Cecília Zokner


O conto se chama "Sem rumo". É muito breve  e feito de pouco: fugidias estampas dos campos do sul e as caminhadas de Nilo em busca do animal perdido.


A paisagem, no anoitecer de inverno, vai perdendo os contornos, mas não, ainda, o agitar da vida se expressando no coaxar das rãs, no vôo dos quero-queros, no correr das ovelhas, na inquietação dos cavalos. E, em meio às formas que se embaciam nas sombras, cada vez mais densas, a emoção de Nilo vai ficando maior nesse medo que aumenta com escuridão da noite. Caminhando nas poças d'água, no chão molhado e se enfiando na sanga, tinha procurado a Bordada por todo piquete. E, com a noite, o medo aumentando: de apanhar de relho se voltasse para casa sem a vaca, de enfrentar a noite nos campos vazios.


Querendo ajuda, enfrenta a lonjura do rancho de seu Paulo. Chega de olho vermelho de chorar, perguntando pela Bordada. E o velho repreende: " -Não deste um naco de fumo pra o Negrinho, não foi?"


Expressão de uma crença que se enraizara quando já "homem feito, quase velho", perdera o tobiano. Procurara muito e por muito tempo. Meses se haviam passado e só então ele se lembrara de deixar um naco de fumo "debaixo de um espinilho", na volta da estrada. Anoitecia. Cavalgando no campo de "lua cheia muito clara", quatro léguas depois, ele viu o tobiano. Foi um encontro de amigos "Que alegria a dos dois! O pingo espichou baixinho o pescoço, entregue. E a mão do campeiro, mestre de amanunsiar, correu pelas crinas, procurou graxa no cogote, alisou o lombo, derrubou a flepa frouxa da anca, tudo como quem abraça um amigo velho”.


E seu Paulo ensina: "- Toma leva este naco de fumo, dá pra ele, e sai à toa nomais, que ele reponta pra tua frente o animal perdido" .


O guri sai outra vez para a noite. Escolhe lugar para a oferenda. "- Toma, Negrinho, pra mim achá a Bordada" e avança na noite cheia de vida: "Vaga-lumes cintilavam múltiplos na noite sem estrelas. Acendiam longe as luzes mi núsculas. Subiam trançando curvas mínimas de claridade. Demoravam no ar ondulando lentos. Simulavam quedas. E volviam em equilíbrio de vôo sereno para o alto, para afinal declinarem rápidos cruzando pertinho dos olhos do guri, arregalados de susto. E eram muitos, inumeráveis, para todos os lados que s virasse, como nunca tinha visto. Os grilos gritando agudo de todas as moitas. E o vozerio desigual dos sapos vindo da sangas, asperejando o barulhinho sonoro das correntezas. Era todas as vozes dispersas do campo chegando juntas agora aos seus ouvidos, como um feixe penetrante de sons.”


Porém, para o menino, atemorizado, só existe o desejo de se livrar do escuro e chegar em casa.


Pequeno drama, fio condutor da narrativa que, no entanto, é no espaço e no mítico que enovela: a paisagem, vibrante, sonora, cheia de vida, se impõe. E a lenda revive no gesto da oferenda, na alegria do reencontro, na esperança.


"Sem rumo" é um dos contos de Campo fora, livro de estréia de Cyro Martins, publicado em 1934. Sua segunda edição foi em 1957 para a Coleção Província da Editora Globo num volume, Paz nos Campos, do qual fazem parte, também Um menino vai para o Colégio e Porteira fechada.


Na pequena "Nota explicativa", que antecede os textos, Cyro Martins diz que estes que formam Campo fora, refletem as suas vivências da infância e adolescência, passadas nos campos de fronteira.


São esses campos que vivem em "Sem rumo" e, assim como a lenda do Negrinho do Pastoreio, estão na sua origem.


Os dois personagens - o velho que recebe o favor e o menino que pede lhe seja concedido achar o animal que se perdera - são figuras menores. Habitantes  de um universo que Cyro Martins, numa evocação bela e sentida, recupera e faz outra vez existir.


- texto originalmente publicado in Literatura do Continente.
O Estado do Paraná - Curitiba, 19/12/93.


Cecília Zokner
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade de Bordeaux (FR),
Profa. aposentada da UFPR e assina a coluna Literatura do Continente, em O Estado do Paraná, há doze anos.


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