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Sem Rumo, o romance PDF  | Imprimir |  E-mail
Fortuna Crítica - Artigos

Cícero Galeno Lopes*

 

Donaldo Schüler, em longa e sólida pesquisa sobre as origens da literatura e sobre a poesia no RS, que resultou na publicação de A poesia no Rio Grande do Sul, concluiu que há duas vertentes da produção poética dos gaúchos. Os textos provenientes de uma dessas vertentes, ele denominou genericamente texto monárquico; os da outra, texto arcaico.

 

Ele denominou texto monárquico a produção oriunda de concepção tida em geral como ufanista, desfiguradora da efetiva condição dos gaúchos, considerados aqui os habitantes do campo, especialmente os da Campanha do RS, a partir de onde se deu a desterritorialização (v. Oliven) da figura humana do gaúcho. Em geral, é produção de olhar urbano sobre a vida campesina. Aspetos ideológicos dessa concepção da figura do gaúcho têm sido constantemente demonstrados e repisados. Sem entrar nesse debate, é possível, no entanto, considerar que essa foi imagem elaborada a partir da idealização.

 

Schüler classificou como texto arcaico a produção assentada em fundamentos textuais de origem oral.1 Por essa conclusão, a literatura do RS começou pela oralitura. São fontes da  literatura gaúcha, ou seja, seus textos arcaicos, além doutros, os textos de O tatu e Chimarrita. O tatu e Chimarrita, de acordo com a nomenclatura empregada por Schüler na obra anteriormente citada, são narrativas populares versificadas.

 

Cyro Martins trabalhou teoricamente a produção literária do RS sobre a distinção entre o que ele entendeu por regionalismo e o que ele concebeu como localismo. Há clara coincidência entre ambas concepções, a do prof. Schüler e a do autor de Sem rumo. Por regionalismo ele entendeu o que Schüler nomeou texto monárquico. O localismo de Martins tem clara conexão conceitual com o texto arcaico de Schüler, mas contém informações mais específicas, de cunho ideológico-estilístico, caraterizadoras das formas modernistas da prosa.

 

Seja permitido ainda dizer que essa mesma divisão conceitual das fontes geradoras da literatura do RS foi encontrada em pesquisa concluída em 2001, intitulada História crítica do romance gaúcho, realizada no Unilasalle.2 Apesar de essa pesquisa ter sido empreendida a partir das conclusões de Donaldo Schüler em A poesia no Rio Grande do Sul, o foco dela foi a narrativa ficcional, romance e novela, com exclusividade. Assim, parece que essas coincidências merecem consideração crítica.

 

Cyro Martins pôs em prática as concepções teóricas que elaborou acerca do localismo. Uma dessas aplicações práticas pode ser constatada em Sem rumo.

Sem rumo (1937) abre o já bastante conhecido ciclo do gaúcho a pé. A narrativa foi inicialmente lida como novela. O autor, na revisão de 1977, preferiu classificá-la como romance.

 

Se Vidas secas é um romance, por que Sem rumo não seria? Ambos trabalham tecnicamente o discurso a partir de formas da chamada de língua culta. Ambos manejam dois níveis de linguagem, em que o segundo é marcado por recortes discursivos caraterizadores de especificidades culturais e condição dos personagens. Esse, como todos sabemos, foi recurso marcante durante a elaboração do romance de trinta de temática predominantemente agrária, em cujo estilo de época as duas obras se enquadram.

 

Ambos desenvolvem narradores com caraterísticas oniscientes. Esses narradores observam o conjunto da sociedade e destacam, às vezes mais, às vezes menos, as desigualdades e as caraterizam como flagrantes de injustiça social.

 

Subliminarmente, são formas de reivindicação. Vale dizer: os narradores têm pontos de vista ideológicos análogos. Em ambos, os narradores, além do olhar de conjunto para captar as desigualdades sociais, expõem introspecções dos personagens. O pensamento dos personagens, especialmente o de Chiru (que nos interessa especialmente nestas reflexões) e o de Fabiano (no outro caso), produz discurso (indireto livre) de profunda densidade psicológica que os aproxima ideológica e sentimentalmente. Os narradores dos dois romances se deslocam com facilidade do exterior para  interior dos personagens, das camadas sociais subalternas às dominantes, do temor e da insegurança a momentos de fugaz felicidade. O resultado desses recursos narrativos, portanto, assemelham discursivamente as duas obras.

 

Ambos trabalham com personagens em constantes deslocamentos e focalizam famílias de casal e filhos, em condição semi-sedentária.

 

Ambos são romances breves. A narrativa de Sem rumo se desenvolve em vinte e sete capítulos breves; a de Vidas secas, em treze, médios.

 

Em ambos, os personagens centrais trabalham e devem. Em ambos, a classe patronal está longe. Está representada, num dos casos, pelo capataz, que se compraz em mostrar sua diferença com relação ao empregado subalterno e sua suposta proximidade ao poder decisório, além de íntimas atitudes de compensação psicológica; noutro, por uma voz que estabelece unilateralmente cálculos e decisões. O contato do mundo humano (externo ao âmbito familiar dos personagens centrais) com o peão e o cabra é feito de violência física e moral. Além de todas essas analogias, as duas narrativas são igualmente parcimoniosas em digressões.

Fabiano tem dificuldade com as palavras, o que o afasta às vezes da condição legitimamente humana; talvez por isso tenha abdicado de qualquer reivindicação. Chiru não tem nome nem conhece a própria ascendência.

 

Chiru, tomado ao lado de Fabiano, se avantaja sobre esse pela consciência de sua condição e pelas ações para alterá-la. Analogamente é o que ocorre em comparação ideológica entre o Estrada nova de Martins (terceira obra do ciclo do gaúcho a pé) e o já referido Vidas secas de Ramos. Vidas secas se conclui numa fuga; Estrada nova acena bandeira de esperança e ação. Esse é paralelo que também cabe entre Sem rumo e Vidas secas, sob o ponto de vista da caminhada às cegas dum em busca da cidade, por decisão da esposa, e a caminhada forçada doutro que assume a responsabilidade da busca, por decisão própria. Isso não significa dizer que saiba aonde irá. Afinal, a comunidade dos gaúchos a pé está, no romance, mesmo, sem rumo.

 

O ato de jogar, em Vidas secas e Sem rumo, expõe diferenças constitutivas dos dois personagens principais. Fabiano, mesmo não querendo, é forçado a jogar. Chiru opta por participar das atitudes que seus companheiros de sorte e seus algozes costumam ter, porque isso, supostamente, fará dele mais um na comunidade socialmente marginalizada, que só aceita seus iguais na desigualdade. Para ambos, contudo, a prisão decorre da arbitrariedade e do abandono. Para os dois, a submissão ao poder organizado deriva das formas impositivas da estrutura social, que lhes nega qualquer usufruto. Num caso, o episódio marcante é o do confisco do animal carneado, na feira, em virtude de não ter nota fiscal. No outro, é a condição de não representar o homem respeitável, que deveria ter cavalo e não carregar os arreios nas costas, coisa de vagabundo e ladrão. É que na Campanha só é mesmo admissível o centauro, o qual, sem a metade animal que representa o trabalho, perde a condição humana. A definitiva insolvência se estabelece em Chiru, porque ele não conseguiu devolver pelo voto os favores recebidos (peças de vestuário e direito de manter seu ganha-pão como boteiro no rio Quaraí).

 

Porto Alegre, 24/10/2007.

* Cícero Galeno Lopes é Doutor em Letras (UFRGS).
Professor e pesquisador (Unilasalle-RS). Contista (Editora Movimento); ensaísta.

 


 

 

Notas

1.M. Bakhtin denomina igualmente arcaica o conjunto de textos originais de qualquer cultura, a partir dos quais outros vão sendo (re)elaborados dialogicamente.

2. O título do projeto de pesquisa foi tomado da obra História crítica do romance brasileiro, de Temístocles Linhares.

Referências

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad por Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

LINHARES, T. Histórica crítica do romance brasileiro: 1728-1981. 3 v. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1987.

MARTINS, C. Sem rumo. 4. ed. rev. Porto Alegre: Movimento, 1985.

--------------. Visão crítica do regionalismo (1944). Sem rumo. 4. ed. rev. Porto Alegre: Movimento, 1985, p. 11-25.

OLIVEN, R. G. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-nação. Petrópolis: Vozes, 1992.

SCHÜLER, D. A poesia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto-IEL, 1987.