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O Olhar do Humanista de Cyro Martins*  E-mail
Fortuna Crítica - Artigos

Patrícia Lessa Flores da Cunha**

 

As últimas obras de Cyro Martins - a saber, Para início de conversa (1990), Um sorriso para o destino (1991), Caminhos (1993) e Páginas soltas (1994) - compõem um quadro emblemático da carreira literária e profissional do autor. Nelas as suas vertentes mais significativas - a ficção, o memoralismo e a investigação científica - estão mais uma vez e devidamente representadas. Em todas, não obstante, sobressai um traço comum: o discorrer fácil do escritor que fala e tece com desenvoltura sobre temas e tramas que tão bem conhece. Pois o que certamente encanta e interessa na escritura de Cyro Martins é a qualidade própria haurida da experiência e da experimentação, como se toda hora dela ecoasse o brado definitivo: “Meninos, eu vi!”.

 

“O poeta é um fingidor...”. Depois de Pessoa, todos sabemos disso. Entretanto, o engajamento peculiar do autor/narrador Cyro Martins com os textos que cria, seja imaginando-os no viés da produção literária, seja invocando-os pelo processo dos acontecimentos biográficos, desmistifica, em certa medida, aquele dogma pretensamente irrefutável. Há nelas um despojamento total, jamais escatológico, mas igualmente despudorado pela intimidade que devassa, sempre à maneira de uma confissão analítica, que se traduz na paixão e na alegria - é essa a palavra - com que o autor se entrega, com reconhecido know-how, à atividade do escrever.

 

Nesse sentido, e em que pese a aparente facilidade do seu texto, Cyro Martins mostra que sabe o que quer expressar.

 

Ao tentar, portanto, a análise, partindo de um desarranjo proposital sobre a cronologia das últimas publicações do autor, é oportuno lembrar Machado de Assis quando, a propósito das reedições de seus primeiros romances, afirmava: “tudo pode servir a definir a mesma pessoa”. Essa versatilidade vale também para Cyro Martins alterando-se os fatores, permanece a mesma marca de identidade do produto.

 

Assim, a começar com Um sorriso para o destino, constata-se que o subseqüente aposto “novela” é sobretudo apropriado. Não é um conto, ou “flagrante de um indivíduo em uma determinada circunstância ou sob determinado aspecto”, segundo afirmou Lúcia Miguel-Pereira, nem um romance, pois lhe faltam a extensão e o adensamento esperados mas, com certeza, uma estória curta em que essas mesmas características se encontram, todavia, ocasionalmente dispostas. À ambigüidade do gênero, pois, acrescenta-se a fina ironia do título. Supostamente melodramático, serve, contudo, de fecho de ouro para uma narrativa ágil e maliciosa onde se alternam as fraquezas e as virtudes das várias personagens reunidas num júri em que é preciso atirar a primeira pedra sobre um certo Rufino Delgado - e quem há de? A visão perspicaz do analista da alma humana se impõe, sutil e aos poucos - hipocrisias e veleidades à parte, somos todos e um a um, culpados e/ou inocentes no tribunal da vida, divididos circunstancialmente entre o sublime e o perverso. Não raro é o indivíduo o seu próprio algoz. A vida que escolhe levar determina o prêmio ulterior, muitas vezes ele mesmo o castigo. Convive-se com as máscaras que, com freqüência narcisisticamente se justificam e há os que, com escárnio e cinismo, ainda se riem das peças que o destino prega.

 

No entanto, se existe, algum tom de crítica ao longo da narrativa, essa é, antes, profundamente solidária na sua eventual censura - o julgamento moral de Rufino Delgado pertence sobretudo ao leitor, escudado pela explanação generosamente imparcial de Cyro Martins.

 

Caminhos, com seus “ensaios psicanalíticos”, põe em destaque esta outra faceta do homem Cyro Martins que se reflete inconteste na construção da sua projeção literária: a do profissional de ciências que busca entender o universo multiforme das relações do homem, sob outro ângulo agora, talvez de forma mais analítica e pontual.

 

É preciso ressalvar que, guardadas as idiossincrasias do seu duplo modo de expressão, o sentido do discurso do homem de ciências é o mesmo do homem de letras. Anima-o, portanto, um genuíno interesse humanístico, lato sensu, na consideração de tópicos particularmente ligados ao estudo e desenvolvimento da psicanálise, no Brasil e no Rio Grande do Sul. O livro é assim um valioso resgate e um registro oportuno da história e das estórias da evolução da medicina, sobretudo a psiquiátrica, em nosso Estado - não só pelas lembranças que Cyro Martins evoca quando fala saudoso das primeiras experiências como estudante e médico recém-formado, e nas homenagens que direta ou indiretamente presta ao citar os mestres e colegas que participaram da sua trajetória, mas também pela abordagem progressiva dos grandes itens que diacronicamente perfazem o caminho até chegar ao state-of-art da medicina e da psicanálise contemporâneas. Repetindo Carlos Appel, na apresentação do volume “seus ensaios têm abrangênia e amplitude para interessar qualquer leitor, pois a complexidade científica da psicanálise aparece mediada por uma linguagem simples, direta e despojada de artifícios, o que permite uma leitura útil e agradável ao mesmo tempo.”

 

O último artigo da coletânea, “A Medicina como Profissão, Arte e Ciência”, talvez como Profissão, Arte e Ciência”, talvez seja, então, o mais exemplar quanto às potencialidades do médico e escritor Cyro Martins. Conjugando os seus talentos inegáveis para a expressão das matérias da arte e da ciência, o autor, ao optar “por não fazer (...) uma dissertação acadêmica”, realiza uma síntese deliciosamente significativa, pontuada de comentários afetivos, porém não menos precisa e contundente no arrolamento dos dados e informações que apresenta, assim, descortinando com admiráveis senso crítico e pertinência o quadro verdadeiro da medicina brasileira, diante das vicissitudes e desafios do momento atual.

 

E isso faz como é do seu jeito singular, não só objetivando uma reiterada profissão de fé no exercício e na busca da verdade científica, mas reafirmando “que as possibilidades do homem nunca se esgotam.”

 

Nos dois outros livros desta fase, curiosamente o primeiro e o último da safra, Cyro Martins brinda o leitor com a lembrança de suas lembranças, atualizando a busca de um tempo que não está jamais perdido, ao contrário, mostra-se vivo e dinâmico nos relatos dos “causos” e depoimentos que sucessivamente apresenta. Nesse sentido, fica difícil impessoalizar a narração do autor, pois que na recuperação da memória, ainda que transfigurada pela intervenção do presente, o sujeito vê-se como agente e objeto de seu próprio discurso.

 

Em Para início de conversa, há o diálogo com o analista (no caso o entrevistador Abrão Slavutzky), a encenação da conversa no divã por que tantas vezes passou, só que agora ele mesmo na condição inusitada de “paciente imaginário”, trazendo à tona uma pletora de experiências e experimentações para que o leitor possa, da maneira que lhe aprouver melhor, reconstruir uma trajetória de vida intensa.

 

Neste percurso, entretanto, quase não há traumas, e se os houve, o tempo certamente já se encarregou de dirimi-los. Resta  tão somente um sentimento de íntima satisfação, de estar de bem com a vida, apesar e por causa dos percalços enfrentados. Aliás, a certeza da afirmação da vida como o bem maior à disposição do indivíduo é a constante nesta quadra particular da obra de Cyro Martins.

 

Na mesma linha, Páginas soltas recupera acontecimentos e conhecimentos importantes para a vida do escritor - há também uma espécie de revisitação, subreptícia e ampla, de idéias, conceitos, opiniões, impressões, enfim, que ainda provocam o seu interesse. É o momento certo para render louvores e, muito de leve, relembrar antigas pirraças, tudo envolto por uma ironia condescendente, certa bonomia que somente aos sábios é concedida.

 

De qualquer modo, a História vista por Cyro Martins através das suas estórias manifesta-se sob um ângulo extremamente generoso. Não que o escritor procure “dourar a pílula” e se abstenham de tocar em feridas eventualmente dolorosas, muito contrário, porque juntando daqui e dali percebe-se que, inclusive, um longo e tormentoso período da história sul-rio-grandense, sobretudo, está ali transparente evocado. Porém o terapeuta, que também é, sabe que, na busca do diagnóstico mais exato, é mister considerar todas as nuanças do quadro clínico.

 

O texto de Cyro Martins, quando fala do passado, embora compreensivelmente revele decepções e tristezas ocasionais, não traz, portanto, a marca do ressentimento, o que o impede fundamentalmente de tornar-se um cínico. A tênue crítica que o perpassa demonstra apenas a dimensão do alcance próprio diante de situações que vivenciou e de pessoas, vultos ilustres até, que conheceu.

 

Por outro lado, os lugares em que fala particularmente sobre os intelectuais gaúchos que admira são também a caracterização por extenso de uma qualidade que, se engrandece o homem, dignifica igualmente o escritor - a de ser amigo de seus amigos. Isso não implica qualquer tipo de reconhecimento servil ou espúrio, antes é a constatação de que, imbricada no teor de suas considerações, existe aquela dose de urbanismo e propriedade já antevista como condição sine qua non do melhor fazer crítico, no modelo propugnado por Machado de Assis.

 

A arte imita a vida; algumas vezes, a vida alcança a arte. O caso de Cyro Martins mostra que, no embate entre sonho e realidade, buscando a expressão da verdade na ciência e na arte, a reciprocidade dos supostos contrários pode, afinal, concretizar um bom  termo. Por isso, avulta em singular grandeza, a figura daquele homem que segue caminhando, firme e solto, pelas ruas nem sempre tranqüilas do seu bairro, em Porto Alegre.

 


* Texto publicado originalmente em Instituto Estadual do Livro/Autores Gaúchos. 1. Cyro Martins. 7ª ed. Porto Alegre: Fundo Nacional da Cultura, 1997.

** Professora do Instituto de Letras/UFRGS. Doutora em Letras/Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo