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A Entrevista* E-mail
Fortuna Crítica - Artigos

 

João Gomes Mariante**


O ímpeto primeiro de escrever modesta crítica sobre um livro de aspectos literários e expressivo conteúdo psicológico, viu-se inibido, diante de uma natural e inevitável pergunta, dirigida a mim mesmo: “Por quê?” Porque a “sensu stricto”, não caberia ao autor da crônica o papel de crítico literário, mas, talvez a função de comentar os aspectos psicológicos que encerra o recente livro “A Entrevista” , de autoria do psicanalista Cyro Martins.

 

Creio que essa autopergunta compreende uma mensagem e também uma escusa que ao mesmo tempo tem um propósito “penitenciário”, para invadir âmbitos delimitados como é o da crítica literária.

 

Suponho que devo comentar principalmente os aspectos psicológicos, porque a psicologia é meu instrumento de trabalho e a psicanálise, a minha profissão.

Sem um necessário esclarecimento, isso poderia parecer esdrúxulo e significar menos apreço pelo próprio autor da que realiza tão útil dissociação, conciliando a profissão de psicanalista com a função de escritor.

 

O que o escritor possui como patrimônio mais relevante é a experiência vital. Caso contrário, sua produção viria a significar um mero instrumento de decalque, sem a vibração necessária e indispensável para que assuma o papel de comunicar nos homens o que lhes foge à percepção corriqueira. Não se poderia conceber o escritor, ensimesmado, isolado da realidade viva e sem um compromisso com ela.

 

Em outra oportunidade, acentuei o papel do médico e principalmente o do psicanalista, no concernente ao imenso laboratório humano de que dispõe, quando transforma a capacidade de observação, a argúcia e a agudez psicológica, em experiência literária.

 

A psicanálise jamais poderá estar divorciada da cultura geral, pois em tal condição, o profissional que a exerce estaria jungido à técnica no sentido estrito do vocábulo. Obviamente, nesse instante refiro-me à técnica do técnico e não à teoria da técnica. Refiro-me à técnica, no sentido do tecnicismo, conforme já vaticinava Aristóteles, como “algo superior à experiência, mas inferior ao raciocínio e ao saber”, e que ao se incrementar como norma, vem acarretar, entre outros fatores, a estereotipia do próprio espírito humano que foi tão admiravelmente transposta ao cinema, pelo gênio chapliniano em “Tempos Modernos”.

 

Cyro Martins procura não ser um técnico em tais acepções, porque sendo psicanalista num amplo sentido, utiliza conhecimentos gerais, para a divulgação mais extensa da psicanálise. Isso ocorreu já da publicação de seu penúltimo livro “Do Mito à Verdade Científica”, no qual serviu-se da prosa da vocação literária, para divulgar conceitos restritos à pequena elite e transmiti-los à generalidade dos leitores.

 

Mas esta é uma face do problema em que não me cabe aprofundar. O que interessa é evidenciar o papel do psicanalista fazendo ficção, ampliando a cultura geral, influindo com sua criatividade artística no espírito das gerações. Nesse particular, torna-se mister acentuar que a ação benéfica de certas atitudes, transcendem o âmbito fechado de uma grei. É necessário que nos convençamos de que sua ação não deverá ficar restrita ao mero contato com o paciente, na geografia confinada das quatro paredes. Isso seria delimitar sua ação a um trabalho rotineiro de artesanato. Essa atitude nunca foi outorgada por Freud, que na trajetória de sua vida científica, imprimiu à sua obra um cunho tão variável e plástico, quanto literário e estético. Creio que um procedimento mais amplo, uma atitude mais aberta, eclética sobretudo, antes de vulgarizar a psicanálise, teria o mérito de livrá-la de um isoterisno quase messiânico, por assim dizer. Não acredito que a função de escritor seja incompatível com o exercício honesto da profissão de psicanalista. Pelo contrário, esta se torna mais útil quando utiliza os conhecimentos e a vigência que proporciona o contato prolongado com o ser humano. Quando uma ciência tenta fechar-se numa redoma, quando adota extrema rigidez, já está dramatizando um conflito. Há a evidência de tremendas dúvidas, no concernente à divulgação de seus princípios básicos. É mister que exorcizemos certos princípios adotados, que foram úteis em outros tempos, mas que se permanecerem estáticos passam à categoria de tabus. A própria psicanálise luta contra os tabus.

 

Voltando ao tema central, diria que “A Entrevista” vem comprovar tais afirmações e acentuar os pontos-de-vista aqui inseridos, com relação à plasticidade de seu autor.

A ressalva de início, em relação à falta de autoridade literária do autor da crônica, continua sendo válida. Propus-me exarar conceitos de conteúdo psicológico e abstrair-me de comentar os aspectos formalísticos do estilo, da prosódia enfim.

 

Começo pelo título do livro, que é o título do primeiro conto, deixando de lado os outros por achar que este presta-se melhor aos desígnios a que me propus, Vejamos o Dr. Augusto do Amaral. A espera do repórter. O tom de ansiedade reprimida e de expectativa tão controlada pela estrutura de sua personalidade. A “Entrevista” lhe fôra prometida e de certa forma, ele “discretamente” a anunciara aos quatro ventos, em solilóquios e monólogos confabulatórios, chegando a levantar suspeitas sobre sua sanidade mental. Até sua mulher fica assustada: “Sim, homem, tu vinhas falando sozinho, ou então com algum companheiro invisível”. Ele que “até hoje ao meio-dia não era espírita”. A espera o faz ficar estabanado. Começa até a “ouvir vozes”. Ele que era morigerado e sóbrio, agora “nervosíssimo”, irriquieto, entrevia a imagem e a idéia a resplandecer na manchete jornalística.

 

Cyro empresta um vigor pouco comum ao personagem. Arranca-o da placidez de uma cátedra universitária, para o exibicionismo imaginário do vedetismo político, ressaltando a ambivalência que se acentua do começo ao fim. Apresenta-o pensando em coisas com que jamais sonharia. Arranja um repórter sádico, que ao final de contas transfere a culpa ao diretor do jornal e a entrevista não se publica. “Desculpe, doutor, mas surgiu um contratempo etc...” e a inevitável pergunta da mulher: “Deste a entrevista?”. Tudo por culpa do diretor do jornal. Aqui, quase transforma o pacato burguês, num arrebatado líder da “esquerda festiva”.

 

Positivamente, o autor do livro não transmite uma rósea impressão de acordo com as preferências comuns de um “final feliz”. O autor faz o personagem gramar penúrias de uma espera ansiosa, talvez vislumbrando na promessa leviana do escriba, o verdadeiro ideal inatingível.

 

O que mais impressiona na “A Entrevista” é a forma pela qual descreve os personagens utilizando uma simplicidade muito segura, e quase sem querer anti-romântica. Digo quase sem querer, porque um escritor como Cyro Martins dificilmente consegue abdicar da realeza romântica que caracterizou uma estirpe de escritores gaúchos do seu tempo. Não renuncia em nenhum instante à sua posição genuinamente literária, como também não desmerece uma acendrada vocação surgida em plena adolescência. Seu estilo correto – já comentado por críticos de alto valor, como Moisés Vellinho – não transfigura a naturalidade mas evidencia a estrutura e a essência estética da obra. Há um perpétuo equilíbrio entre a concepção psicológica e a expressão literária.

 

As duas posições assumidas são a um só tempo interdependentes, equânimes e harmoniosas. Na descrição de certas passagens, no estado dos tipos humanos, aparece o analista exercendo a psicanálise aplicada, transcendendo os limites restritos do consultório, para o dilatado horizonte da psiquiatria social. Mas, contudo, mantém uma liberdade criadora e um clima tipicamente de “suspense”, pois nos vários contos, há sempre uma surpresa em perspectiva, e um tom de acendrado desprezo, uma fina ironia pelos “manifestos”, pelos “tratados” que tanto e tanto empolgaram o regionalismo meridional.

 

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** artigo publicado em Correio do Povo, Porto Alegre, 01 de fevereiro de 1969

* Dr. João Gomes Mariante é Psicanalista, Jornalista e Editor do Jornal MenteCorpo.

Leia textos sobre A Entrevista, publicados por ocasiâo de sua reedição, em 2015.