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VOCÊ DEVE DESISTIR, OSVALDO [1]  E-mail
Estante do Autor - Ficção

                                                                                          Cyro Martins

 


Versão radiofônica

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Os jornais estampam manchetes de guerra: “A batalha da França”, “A fuga da rainha da Holanda”, “A ação dos pára-quedistas na Bélgica”. Jornaleiros voam pelas ruas, tocados, todos, pelo frenesi de ganhar a dianteira. Atropelam os transeuntes, arriscam-se na frente dos automóveis com indiferença de veteranos, invadem os cafés, trepam nos bondes, anunciando em voz rouca - vozes que prematuramente se fizeram graves de tanto gritar - as últimas edições dos vespertinos.

Recostado a uma porta - quando um ombro dói, muda a carga para o outro - debaixo duma sacada, ele segue com uma atenção, que é um esforço penoso e extenuante, os que cruzam apressados sob a chuva, sobraçando pastas, embrulhos, ou levando, marcada na fisionomia, a resolução de ir a alguma parte, de ultimar um trabalho em marcha, de encontrar alguém. Por certo, ao longo das calçadas, à porta dos edifícios e principalmente à entrada dos cafés, há gente parada como ele. Mas não se ilude, porque na realidade ninguém está como ele, assim desajeitado, colado àquela portalada fria, sentindo o desagrado do contato molhado das roupas, vendo a vida circular em torno com a impotência de quem apreciasse de fora uma cena empolgante, dessas que se apoderam irresistivelmente das criaturas, sem possuir forças suficientes para se associar à emoção que ela provoca.

Aqueles outros formam grupos, conversam, agitam-se, demonstrando, no olhar e nos gestos, que se interessam por algo vivo e real. Discutem futebol, falam da guerra, aventam planos estratégicos impossíveis, ou, simplesmente, tratam de negócios, fazem-se mútuas propostas de compras e venda, ou, mais intimamente ainda, são dois amigos que se queixam da vida.

Vai passando agora um gurizinho, todo encharcado, de espinha torcida, gritando mecanicamente: “Folha da Tarde!” Osvaldo nem dera por ele. Mas o guri entrepara à sua frente, oferece-lhe um jornal, fazendo até menção de tirá-lo do maço. Ele se embaralha, não diz nada, nem faz senha de querer ou não. O guri se afasta, indiferente à inquietação daquele homem parado.

Osvaldo sente os dedos movendo-se dentro do bolso à revelia da vontade. No instante em que eles seguram a moeda de dois mil-réis, ele se torna consciente do ato, e deixa-a cair novamente, só e única, no fundo peguento do bolso. Não obstante, momentos depois, volta a alisá-la com a polpa do minguinho contra a palma da mão. Comprime-a, e logo em seguida a liberta para que outra vez caia sobre as gemas dos dedos pusilânimes. Enquanto isso, os olhos se grudam, espantados, espichando-se à medida que o guri se distancia, nas letras grossas, berrantes, que o atraem. Compraria? Mas seria já uma mutilação irremediável na quantia exata que a mulher lhe dera com uma finalidade muito precisa. Entretanto, ler o jornal, enfronhar-se de fatos que interessavam a todo mundo, seria uma maneira de participar da vida que deslizava como um rio cheio à sua frente. Além disso, embora malformulada no íntimo, ele tinha curiosidade por certos fatos que empolgavam o momento, e sobre os quais ouvia comentários que lhe chegavam como fragmentos de cochichos através do muro que o isolava dos semelhantes. No entanto, sabia que gastar trezentos réis representaria mais uma traição, como se fosse possível acrescentar mais uma à fieira inumerável, à confiança da mulher. Na verdade, ela mais fingia acreditar do que acreditava realmente nos seus propósitos de regeneração.

Afinal, para quem fizera tantas, o que significaria fazer mais uma, e tão inocente?

Passam dois cidadãos sérios, comentando a guerra sob guarda-chuvas, em tom grave e digno.

Ele se resolve subitamente a comprar o jornal. A sua decisão,  porém, é um ato penoso. Não tinha o treino de resolver-se. Habituara-se a agir por impulsos ou a ser conduzido passivamente pela mulher, pela polícia, por enfermeiros. Apesar de tudo, despega-se do seu lugar, caminhando lerdamente, procurando com a vista o guri que se perde entre os grupos. De repente, sofre um encontrão que o desnorteia. Confuso, o coração aflito, ouve uma voz grossa, saindo da boda dum sujeito entroncado que o fixa com despreza e com raiva: “Tenha mais cuidado, seu!...”

Tenta dizer algo, explicar-se, pedir desculpas, mas não pode. A língua se enleia, as pernas tremem, um medo brusco e estúpido o aniquila. Por sorte, o indivíduo se afasta sem mais reclamações. Agora, porém, não mais o atraem os letreiros nem o que quer que fosse que o jornal pudesse conter. E intimidado, sumido na sua humilhação de ente excluído do mundo, recolhe-se de novo ao portal protetor, que não só o defenderá da chuva, mas o abrigará também da rispidez alheia. E dizer que aquela era a sua cidade! A cidade onde nasceu, onde viveram seus pais, onde brincou com as crianças do seu tempo, a cidade onde deveria viver, enfim!

- Você deve desistir, Osvaldo! Procure um emprego, vá trabalhar com o seu pai. Não dá para isto...

O dito do padre diretor escorregou macio entre um e outro esfregar de mãos, umas mãos já velhas, mas rosadas. Deixara-lhe uma cicatriz incômoda na alma. Incômoda e sensível. Bastava um apertãozinho da vida, por insignificante que fosse, para fazê-la acusar a sua presença indelével.

Por que não continuou como viera até o primeiro ano ginasial? Não era o primeiro aluno da aula, mas oscilava sem maior esforço entre o quinto e o décimo. E isso bastava. Os seus cartões semanais nem sempre traziam a nota de distinção, aquela nota tão aflitivamente cobiçada pela maioria dos colegas, cujos olhos ávidos acompanhavam com sofrimento o monte de cartolinas róseas, verdes, azuis, amarelas e também às vezes brancas que ia se desfazendo na inflexível mão gorda e peluda do padre prefeito geral.

Esse ato, que constituía o remate solene da semana, nunca lhe causou um minuto sequer de tormento. Em casa não lhe faziam aquela exigência: comportamento dez; aplicação dez. Demais, nem ele nem os pais alimentavam pretensões quanto à sua colocação na turma.

No segundo ginasial, entretanto, decaiu bastante. Passou para o décimo quinto lugar. Mas não se impressionou com isso, pois sabia que, se quisesse, recuperaria em pouco tempo a colocação perdida. Não custaria nada, apenas um esforçozinho de vontade. Da parte dos professores, não teve reprimendas nem advertências, pois, a ser exata a sua interpretação posterior, eles o julgavam de antemão um dos tantos destinados a ficar no caminho, extraviado, como acontece em todas as gerações, cujas ressacas deixam ao longo das margens o rasto dos fracassados.

Seu pai, homem de temperamento distante, vivendo cada vez mais para os negócios do que para a família, parecia nada perceber do que estava sucedendo ao filho. A única pessoa que o teria prevenido dos perigos daquele mau rumo, que teria suplicado, chorado e rezado para que ele se emendasse enquanto havia tempo, esse falecera no começo do ano.

Apesar de tudo, deixaram-no passar para o terceiro ginasial. Seu pai fora sempre pontual nas mensalidades...

Mas uma preguiça invencível o invadia hora a hora, apartando-o de tudo que se relacionasse a livros, temas, aulas, professores. Dentro de si, nenhum broto de reação se erguia àquele flácido e progressivo deixar-se levar. Era quase doce deixar-se arrastar corrente abaixo, sem mortificações íntimas nem discussões com pessoas. Os seus dias transcorriam vazios como bocejos.

Nenhuma mão se estendera para ajudá-lo a recompor-se daquela moleza de alma que o embebedava de fastio.

Às sete da manhã o pai levantava e, seguindo um hábito de vinte anos, às oito entrava no escritório.

Às dez, um feixe de sol penetrava pela ventarola, incidindo sobre o espelho. A penumbra do quarto se esgarçava numa luminosidade amarela. Osvaldo removia a custo as cobertas de cima do corpo desacostumado de pular cedo da cama. Como lhe pesavam os cobertores naquele instante em que os músculos estavam ainda entorpecidos e o espírito permanecia num mundo que não era este! Às onze e meia, no entanto, já se encontrava perfilado na esquina estratégica, os escassos fios de barba nascente bem raspados, à espera da saída das gurias.

No fim do bimestre, não restava dúvida, a sua conduta garantira-lhe o lugar na aula: o trigésimo sétimo!

Por fim, chegou o dia fatal: “Você deve desistir, Osvaldo!” E foi por acaso que o diretor o pegou. Demorara-se no ginásio mais que de costume. A partida de futebol estava boa. Ele não era craque, nem nunca seria craque de coisa alguma, mas às vezes se entusiasmava no jogo, levado pelo prazer de dar patadas no ar, de aparar no peito do pé a resistência elástica da bola, de agachar-se, ameaçar e ser ameaçado, e, por último, sair suarento da peleja. Um alívio ter de que descansar um pouco!

E foi assim, suado, a cabeça úmida, a cara afogueada, a respiração entrecortada, a túnica aberta, as botinas sujas, que ele entrou no gabinete do diretor para ouvir aquilo, que significava simplesmente a sua expulsão. No momento, e por muito tempo, esse episódio não lhe provocou o menor abalo, caindo no seu espírito como uma felpa no tapete.

A sua resposta foi simples. Virou as costas para o padre, que o contemplou penalizado, e saiu com o mesmo jeitão malandro da entrada.

Chegou em casa como sempre, para a janta. Em seguida para o cinema. Só uma semana mais tarde abordou o assunto com o pai.

- Não recebeu nada do ginásio?

- Recebi.

O comerciante continuou trinchando o bife, em silêncio. Comeu o doce, tomou o cafezinho, acendeu o charuto. Estão apenas os dois na sala de jantar e, no vazio enigmático que os separa, navegam espectros. Bem que eles desejavam falar, dizer-se algo, entender-se talvez, mas a vida separada que levavam, cada um para seu lado, encarregara-se de amortecer a pequena dose de intimidade familiar que, com tanto esforço, dona Laura viera desde algum tempo mantendo com aparências de solidez. Se ela ressurgisse e se apresentasse repentinamente na sala, não se surpreenderia diante daquele quadro! O que restava entre os dois não passava dum vago sentimento de respeito de homem a homem, suficiente para impedir que o mais velho castigasse o mais moço e que este acusasse o outro de querer passar pelo que não é.

- O melhor - pensava seu Júlio, observando de soslaio a fisionomia provocante e impenetrável do rapaz, que talvez traduzisse a posse de segredos terríveis - é deixar as coisas como Deus fez!

Quando o pai se dirigia para a porta, tendo antes entreparado ao espelho para recobrir a calva com alguns fios longos, cultivados com zelo, voltou-se bruscamente - Osvaldo lembra-se que teve um estremeção,  deu passos fortes direito a ele, que ainda se mantinha sentado à mesa, e lhe disse, num tom de voz agressivo e o punho fechado:

- Você ainda tem níqueis? Tome.

E lhe passou uma nota de vinte mil-réis.

“- Estaria me comprando? - interrogou-se mais tarde o rapaz. Mas ele não tinha precisão dessa baixeza! Era um homem livre...”

Nessa noite, Osvaldo embriagou-se pela primeira vez. E continuaria a embebedar-se sempre que tivesse dinheiro para tanto. Passou a ser um militante da turma da noite.

Durante meses, não trocaram nem por acaso uma só palavra acerca da interrupção dos seus estudos. Nem nunca o pai lhe fez nenhuma proposta de emprego, nem lhe sondou a respeito do que pretendia fazer da vida. Aliás, as suas conversas, quando conversavam, eram frouxas, banais e frias, quase ao termo do jantar, excepcionalmente no almoço.

Jamais compreenderia a atitude do pai. E quando, oito meses depois, ele veio a faltar, repentinamente, deixando-o só no mundo, pois não tinha irmãos nem parentes chegados, foi sem emoção, convencionalmente, que acompanhou o enterro e recebeu os inexpressivos pêsames dos empregados do escritório.

Nessa época, andava pelos dezoito anos. Rapagão forte, bonitaço. Gostava que os companheiros o chamassem de almofadinha. Deitava e levantava tarde. Aos sábados, comparecia ao escritório, pouco antes do meio-dia, para receber a mesada de um conto de réis. Essa parte resultara dum acordo tácito, nunca bem definido, entre ele e o pai.

Três dias após o enterro, o guarda-livros do finado foi procurá-lo.

Se Fernando, um homem baixinho, de olhar cansado e lentes grossas, esperou-o mais de duas horas, pois chegara cedo demais, às nove. Empregou seu tempo folheando humildemente um velho álbum de família. Aquele álbum era o reino de Osvaldo, que ocupava o primeiro plano de todas as fotografias. No berço, chupando o bico, os pezinhos para o ar. Dona Laura, ao lado, sorria inebriada para as suas bochechinhas gordas. Engatinhando de macacão, numa área ensolarada, sobre um tapete, para evitar o frio das beldosas. De pé, hesitante, experimentando-se nos primeiros passos. Depois, alinhava-se toda uma seriação de retratos, tornando-se mais nítida em cada um aquela linha da fronte, indefinível a princípio, de simpática altivez ao dez anos, de orgulho aos doze, de arrogância aos quinze. E agora?

Seu Fernando sente o pescoço doído da posição encurvada  e levanta a cabeça, esbarrando os olhos miúdos na parede lisa. E agora? Medita. Retorna ao álbum. Prossegue o manuseio aparentemente despreocupado, tendo antes voltado a considerar as fotografias que estampavam o rapaz no banho, a cavalo, vestido de neocomungante, de jogador de futebol, de calças curtas, de calças compridas - as primeiras, estava escrito em baixo - com fardamento do ginásio e outras. A última datava de três anos.

Apesar do número considerável de retratos, o álbum ficara metade ocupado, metade vazio. E com certeza o sol que entreva pela janela batia na mesinha sobre a qual repousava o relicário da família, pois as suas folhas estavam secas e arqueadas. Depois de examiná-lo muito, revirando-o nas mãos, o guarda-livros esforçou-se por abotoar o colchete de pressão que o fechava, mas não o conseguiu. Forçar a arqueadura das capas, arriscava a quebrá-las. Então, com um zelo de antigo servidor da casa, soprou o pó das folhas e o pó da mesinha, depositando-o com cuidado no mesmo local de onde o retirara.

Seu Fernando endireitou-se na poltrona, entesou o tronco e esticou as pernas curtas e finas, descansando da posição incômoda que assumira por tanto tempo. E, enquanto a vista transpunha a vidraça, extraviando-se na manhã sombria, a memória realizava um retrospecto, analisando as múltiplas expressões daquela fisionomia adolescente que lhe haviam deixado uma opressora sensação de perplexidade. Por fim, encontrou a palavra que lhe faltava: insolência! Aquela linha da fronte, intencionalmente acentuada, destoando da lisura do rosto jovem, possuía agora um tom de fria insolência. Contudo, apesar da convicção de que seria malsucedido, via-se na contingência de aconselhar aquele herdeiro de futuro mais que duvidoso. Custava-lhe suportar a idéia de que a fortuna que ajudara a ganhar seria malgasta.

Quando finalmente o rapaz apareceu, de saída de banho, mas ainda por se lavar e barbear-se, seu Fernando ergueu-se e o cumprimentou com a delicadeza habitual.

Ficaram um instante silenciosos, um em frente ao outro. Osvaldo, soprando as baforadas amargas do primeiro cigarro do dia, tinha um ar ligeiramente condescendente na cara crispada de chateação. O outro, constrangido, explicou que aquela era uma visita de pêsames. Na verdade, o que pretendia era aproveitar-se da ocasião para insinuar algumas advertências sensatas. Mas logo percebeu que o ânimo do rapaz não seria acessível aos seus conselhos. E, antes que a decepção se agravasse, encurtou a entrevista, despediu-se e saiu.

E dês da manhã, só se avistaram de perto cinco anos mais tarde, quando Osvaldo procurou o ex-guarda-livros do pai para lhe pedir dez contos de réis.

Fernando atendeu-o, prevenindo, porém:

- É a primeira vez!

Os anos que se seguiram à morte do pai, transcorreram rápidos e inúteis.

Aos vinte e um anos, apossou-se da herança. Imediatamente comprou uma baratinha, a de linhas mais aerodinâmicas e de cores mais extravagantes que encontrou. Sentiu-se então na plenitude de quem se realiza, deslizando num plano ideal, inatingível aos homens amordaçados pelas penúrias quotidianas.

Ver-se no guidom, inclinado para a frente, excitando-se com o assobio do vento cortado, escapando, não atinava de que e correndo atrás de nada, os olhos fixos na faixa estreita e longa, era viver instantes de íntima comunhão com a máquina impetuosa que o carregava.

Viajou. São Paulo, Rio, Montevidéu, Buenos Aires... E teria ido mais longe, dissera-lhe alguém com solenidade, se não fosse fraco.

Um dia regressou, casado, Terezita acreditava nele. Acreditava na sua fortuna. Mas, sobretudo, admirava-lhe a bela estampa.

O encontro de ambos se dera numa praia de Montevidéu. Provinciana de Taquarembó, ela fora pela primeira vez à capital, ao experimentar as primeiras vagas preocupações acerca do casamento.

Osvaldo, para ela, pairava entre os exemplares inacessíveis, apenas entrevistos nos sonhos de mocinha do interior.

De chegada a Porto Alegre, atiraram-se numa tarefa ingente. Remobiliaram a antiga casa paterna, após reformas inadiáveis, com um luxo “última moda”, de novos ricos.

Iam de um a outro fabricante de móveis, porque os que viam expostos não os satisfaziam. Consultavam catálogos, compravam revistas argentinas e nelas estudavam “como se deve arrumar a casa”.Foram incansáveis nessa ocupação deliciosa.

Terezita via-se transportada a um mundo que se improvisara de encantos para recebê-la: cada semana enviava um bilhete apressado à sua mamita, contando as maravilhas da vida que se iniciava.

E nem era só ela, cabecita ingênua e imaginativa, a ter fé nas arcas inesgotáveis do marido. Também os lojistas davam crédito à ostentação das suas reservas.

Em poucos meses, porém, sobreveio o inevitável.

- Por que me enganaste?

Sem hesitar, ele respondeu com descaramento:

- Eu, sim, é que fui o enganado...

Um dia limparam a sala de estar, daí a um mês o bureau se ausentava para sempre, e assim por diante, num funeral triste, foi se desmantelando a moradia tão afanosamente ornamentada.

Terezita deu fôlego às tendências sofredoras, quedando longos dias prostrada, o lenço na mão, os olhos machucados presos nos navios que partiam e rumavam para o sul, lá donde viera e para onde já era impossível voltar. Chorava a ventura fanada, que se desvanecera de repente, como uma folha colorida soprada por lábios de mágico. Entretanto, o que mais a exauria era o contínuo desgaste no reprimir a onda de revolta que lhe alteava o peito frágil, atingia a garganta, queria explodir num desabafo brusco e arrebatado, mas se espraiava sempre no desalento dum suspiro.

Quando ele chegava, ao amanhecer, após o desgaste das noites de bebedeira, ela o esperava sempre na mesma postura estratégica, imóvel na obscuridade, as fontes latejantes, o coração agitado de palpitações de medo e raiva, ouvindo nesses instantes uma voz interior, imperativa e violenta: aí, agora, aproveita, diz-lhe tudo que ele merece - beberrão, preguiçoso, infame, vai-te para as tuas putas!

Mas ao vê-lo, cambaleante, a mão insegura tateando ao longo da parede, a boca mole proferindo o apelo que soava grotesco: “querida! querida!” - a piedade, que pouco antes lhe parecera um sentimento para sempre estagnado no coração, apoderava-se-lhe instantaneamente do ser, impulsionando-a para a ação protetora. E, num salto, juntava-se ao bêbado para ampará-lo na queda iminente e redonda. Seguia-se o sono profundo. Então, violentando a própria fraqueza, os braços estremecidos de aflição, ela o arrastava para a peça mais próxima, a que tivera a denominação elegante de living-room, agora despida de móveis, punha-lhe um travesseiro sob a cabeça e se afastava, pisando macio e recolhida, como uma sombra angustiada.

Certa vez, ao anoitecer, ele acordou com as feições mais alteradas do que já andava. Terezita pressentiu a tormenta.

Pensou em subjugá-lo, mas seria arriscar-se sem resultado.

Preferiu ser suave. Aproximou-se dele, falando-lhe como num sussurro: “Meu querido, o que é? O que é que tens?”

Ele vagava pelos quartos vazios, sem ruído, devagar, como um sonâmbulo. E ela, seguindo-o de perto, também lentamente, na ponta dos pés, era apenas uma mulher infeliz, já sem a graça da juventude, despida da fascinação que empresta poderio ao amor. Na penumbra rosada do crepúsculo que os envolvia, ela entendia os braços, pousava-lhe de leve e com medo a mão trêmula no ombro, alisava-lhe o cabelo como numa carícia de hora tranqüila. A atitude suscitara-lhe o renascimento da ternura extinta, e Terezita se via já emergindo da atmosfera de tragédia, desligada da realidade pungente, penetrando numa região de serenidade. E foi como num pesadelo que, de repente, ele se virou e ela fitou dois olhos salientes, injetados, a testa franzida, a face vermelha, a expressão de cólera.

Ele apanhou uma cadeira pela guarda, e enquanto achou o que quebrar, de louças, móveis e vidros, vibrou pancadas. Por fim, exausto, esborrachou-se no chão.

Sobreveio um silêncio apertado.

Saindo do esconderijo, ainda uma vez lhe pôs um travesseiro sob a cabeça. Limpou-lhe os fios de sangue que escorriam das narinas e votou um lenço molhado na mancha roxa que se alastrava na fronte.

Em seguida, decidiu-se a tomar a providência que por tanto tempo adiara inutilmente. Correu à polícia. E dentro de uma hora, Osvaldo era recolhido ao hospício.

Mas tudo isso ocorreu há anos.

Agora, ali está ele, rente a uma porta, escondendo-se dos que passam, com um chapéu velho, cujas abas lastima não sejam mais largas para lhe taparem bem as vistas, com umas calças remendadas pela mesma sofredora Terezita, uns sapatos quase sem sola e um casaco de mangas esfiapadas. A linha da fronte, que seu Fernando qualificara de insolente, não é hoje mais do que um traço frouxo do seu desgraçado destino. A sua figura adquiriu o aspecto encolhido, medroso, dos miseráveis que fogem da zona de conflitos perpétuos onde freme a atividade dos homens, retraindo-se para um mundo ambíguo, crepuscular, sem saber ao certo se ainda são contados no número dos vivos ou se já são sombras pertencentes ao reino dos finados.

Depois de doze internações no hospício, pouco lhe resta para a vida. Faz cinco dias que obteve a última alta.

É sempre Terezita quem o retira de lá. Ela está magra e velha. No entanto, não atingiu ainda os trinta anos. Tem três filhinhos raquíticos.

Quando ele recebe alta e passa alguns dias sem beber, é um cão submisso que a mulher tem em casa. Dá pena a sua docilidade. Nesses dias, arrasta-se à roda de Terezita, chora por nada, pede-lhe perdão, abraça os filhos, que o repelem, encarrega-se de certas lidas domésticas. Enquanto ela costura, e é com isso que se sustenta a família, ele faz fogo, põe brasas  no ferro, passa roupa, cozinha. Ou, então, deixa-se estar, apático, enquanto a mulher se consome no trabalho e os filhos brincam em redor da casa, sem nunca se aproximarem dele, contemplando-o a distância com curiosidade hostil ou com desprezo. Mas ele parece não perceber esse sentimento de repulsa das crianças, que não o consideram mais do que um estranho que de vez em quando se intromete nas suas vidas e causa incômodos.

Terezita mesma perdeu o hábito de tratá-lo como marido. No entanto, ocupa-se dele. Alimenta-o, agasalha-o, porém não lhe vota mais do que uma apagada afeição se se pode chamar assim o que ela ainda sente pelo infeliz. A sua morte ou a reclusão perpétua não o comoveriam. E, se requerera tantas vezes a sua alta, foi porque, a princípio, alimentava uma longínqua esperança de que o perdido se regenerasse. Depois, não se explicava bem por quê.

Tê-lo em casa é ter uma criança a mais, mas uma criança grande e triste, até que chega o dia trágico em que de novo o demônio acorda. Torna-se desinquieto, irascível. Furta-lhe dinheiro. Corre ao bar. Bebe cachaça. E recomeça o vendaval.

Agora, lá está ele, gasto e sombrio, olhando com espanto a cidade que foi sua. Mas, no fundo da sua catástrofe, um pressentimento adeja. Será verdade? Não estará enganado? Não passará aquilo duma pura ilusão de si mesmo? Poderia existir ainda dentro de si algum resquício de energia, capaz de erguê-lo depois de todas as quedas, cada qual mais profunda?

Terezita no começo não compreendeu e continuou de cabeça baixa, atenta aos botões que estava pregando.

- Sim, um emprego.

- Um emprego?!

- Impossível?

- Impossível, não digo. Mas...

- Pois vou procurar um, seja o que for...

Terezita deixou a costura se aninhar no colo, e ficou olhando no vago, pensativa, com pena do infeliz. Encorajou-o, depois, embora sem nenhuma convicção.

Durante três dias bateu em muitas portas, oferecendo-se para o que aparecesse. Mas a sua apresentação inspirava desconfiança. Ninguém o deixava falar muito. Desiludiam-no em seguida.

E durante três noites chegou em casa, lá no fim do Menino Deus, de pés inchados, como uma aparição noturna, assustando as crianças. Os três gurizinhos se eriçavam de medo, aconchegando-se à proteção da mãe.

Ele devorava uns restos de comida, depois se enroscava num canto. A mulher, então, lhe atirava um cobertor velho por cima dos molambos.

Osvaldo compreendia exatamente o que significavam aqueles dias. Esperava tudo ou nada, mas um nada redondo, negro, absoluto, daquela investida. Era uma carga rumo à vida, rumo ao que estava tão perto e tão distante ao mesmo tempo. Tinha a sensação angustiante de estar com as mãos estendidas para qualquer coisa fluida que não se deixava prender, que fugia sempre, e cada vez mais velozmente. Era preciso fazer parar a marcha dos homens para ele se incorporar. Entretanto, não sabia como proceder.

Perdera o jeito de andar entre homens livres, entre esses homens que estão cruzando ali, que se roçam nele sem notá-lo, que param à sua frente, que se entendem tão bem entre si. Temia sobretudo encarar alguém de frente.

Afigurava-se-lhe que todos haviam de ler na sua fisionomia, instantaneamente, os sinais da derrota. Tinha a consciência sinistra de ser um estigmatizado.

Lá está ele, espantado, refugiando-se na porta menos freqüentada que encontrou, os olhos cravados com ânsia na boca da rua de onde deve surgir alguém. E esse é um velho companheiro de esbórnia que encontrou por acaso no dia anterior. Ele vinha com aquele ar de fugitivo desamparado, quando, ao dobrar uma esquina, topou com o Serafim. Não houve tempo para se evitarem. Mas o outro foi camarada, limitando-se a fazer o mínimo de indagações. Serafim - um sujeito baixo, alegre e próspero - prometeu que lhe arranjaria um emprego, já no dia seguinte, sem falta, prevenindo-se assim contra a facada, que julgou iminente.

Osvaldo acreditou simploriamente na promessa. Marcaram encontro na rua da Praia, às seis.

São seis e meia. As sombras se adensam. Prendem-se as luzes. Os reflexos dos lampiões no calçamento molhado dão à rua uma perspectiva quase deslumbrante para quem há tanto tempo anda afastado dali, percorrendo caminhos escuros.

Chega-se alguém a ele, vindo de dentro. Estremece de susto. O indivíduo, sem lhe prestar atenção, explicou-lhe, entredentes, que era hora de fechar a casa. E ele se afastou, espiando para os lados com o rabo dos olhos, temeroso de que lhe acontecesse qualquer coisa. Não sabe o que fazer. Indeciso, dirige-se para a esquina, evitando olhares, procurando as sombras, esforçando-se para conter as pernas que queriam fugir. E assim se demora, entre idas e vindas duma esquina a outra, esgotando-se na excitação da esperança frustrada.

Às nove e meia, à saída dos cinemas, o movimento, que cresceu de repente, o surpreende. Oculta-se então num corredor escuro, aguardando, numa tensão íntima, espantosamente extenuante, que a vaga de transeuntes se dissolva. Está cansado e com fome, talvez mesmo tenha febre, mas aos poucos a obscuridade envolvente começa a apaziguar-lhe a inquietação. Encosta-se à parede. Relaxa os músculos. As mãos, frias e esquecidas, repousam nos bolsos desbeiçados. A cabeça se inclina. A barba roça áspera na gola do casaco. As pálpebras pesam. Cochila.

Desperta alguns instantes sobressaltado e perdido. Não sabe onde está. Investiga cautelosamente. Não será um corredor do hospício, aquele? Como fora parar ali, sem se dar conta de nada? Em que momento teria se repetido “aquilo”? Agacha-se, perscrutando. Ouve vozes delirantes, discursos, imprecações, lamentos. Ele mesmo sente que se aproximam as suas visões. O monstro descomunal e horrendo que tantas vezes o tem perseguido não tardará. Arregala os olhos, apalpa-se, busca-se a si mesmo, procurando situar-se.

Não, foram as vozes da rua que lhe produziram aquele efeito terrível. Aproxima-se da porta para certificar-se da verdade.

Defronte, há um relógio. Dez horas. Tudo perdido, conclui, derrubando a cabeça, como se aquela hora estivesse destinada a soar fatalmente para ele.

Toma a resolução de ir para casa. Terezita havia de estar pensando que, àquela altura da noite, já ele bebera os dois mil-réis, cometera mil desatinos e de novo a polícia o trancafiara.

É um ato heróico o que vai praticar. Os dedos custam a se desprender da porta. Por sorte, a claridade da rua não é excessiva ali. Espreita, à espera de um vão. Agora, sim, está bom de aproveitar. Mas surge um grupo de rapazes despreocupados, caminhando devagar, parando, formando rodas. Espia o céu. Não virá uma chuva? Por que cessaram as pancadas tão boas que caíram de tarde?

Afinal, como um mergulhador inseguro, mas supersticioso, lança-se na multidão, e emerge salvo na calçada oposta. Que derrubamento nas carnes, que cansaço dolorido!

Sobe apressadamente a avenida, disparando do centro. E só vai experimental algum alívio ao aproximar-se do Guaíba. Modera o passo, então. Tira o chapéu. Mete a mão esquerda no bolso da calça. Os dedos estão gostando de brincar com a moedinha de dois mil-réis, enquanto os músculos das pernas amolecem num descanso que é um consolo. E a cabeça é uma esfera oca na ponta do pescoço comprido. Tudo é vago e disperso dentro dele. Vislumbra apenas, de longe em longe, ensaios malogrados de divagações. O corpo inteiro lhe fala: “Não importa, não importa, não precisa pensar, é bom não pensar!”

E ele se abandona ao resguardo dessas vozes interiores, que o ajudam a ir-s’embora. Passam transeuntes com frio, outros abrigados, enrolados em capas. Mas ele já não sente frio nem fome. Não se sente mais a si mesmo. Nem a sombra espichada, que se estira à sua frente, longa, fina, e depois recua minguando até desaparecer debaixo do próprio vulto, para em seguida acompanhá-lo de novo, nem isso ele vê.

De repente esbarra. Sim, é um bar.

Os dedos agitam-se no bolso. O coração se inquieta. Ah! maldita sensação aquela, de estar vivo! Todas as suas tendências e instintos, que momentaneamente lhe pareceram adormecidos num recanto ignorado, sublevaram-se num impulso súbito contra aquela tentativa passiva de aniquilamento concentrando-se num único núcleo dominador. Tem a impressão pânica de que, no seu espírito, se abriram passagens, longamente fechadas, dando visão profunda de si mesmo. E o que ele constata é apavorante para quem nunca se deixou absorver pela contemplação interior.

Move-se devagar, num fascínio pela luz amarelada que filtra através de vidros opacos. Tudo é espesso dentro dele, menos aquele centro de luminosidade que arde como um sinal de morte.

Quanto ao corpo, esqueceu que tem mãos, braços, pernas que o sustentam, e dedos que se agitam eletrizados num brinquedo de  intenções obscuras e funestas com a pobre moedinha que escorrega, aninha-se no fundo do bolso, é novamente achada, trazida à tona, e outra vez reinicia a tentativa inútil de fuga. E o que ele enxerga do bar - olhares fatigados, dorsos fracos, caras rubicundas, gestos desarticulados de mãos pálidas, tudo envolvido numa atmosfera embaciada - tem qualquer coisa de perturbadoramente parecido ao que viu há pouco dentro de si próprio.

Nada mais o detém. É preciso aplacar a apetência que o abrasa, como uma dor de ferida em carne viva.

O homem do bar, porém, não admite maltrapilhos no seu balcão. Vende-lhe a cachaça e despacha-o.

Atinge o Guaíba e segue, numa acalmia súbita, pela solidão ponteada de luzes mortiças e melancólicas de beira-rio.

Retarda os passos, de propósito, como para fazer durar aquele estado de paz. Os sentidos sutilizam-se. Parece que paira algo elástico no escuro que dá prazer empurrar com as mãos e o peito.

Mas não se prolongou por muito tempo o conforto daquele silêncio da natureza e da alma. De repente, começou a notar o ruído dos próprios passos. Primeiro, com indiferença. Depois, com vontade de analisá-lo. É um ruído fofo, de pisadas, sem energia, sem eco. É um ruído de solas molhadas, que uns pés indecisos vão levando dentro da noite com sofrimento dos ossos e das carnes.

Pára, espantado. Parece escutar. Abaixa-se, como se atasse os sapatos. Endireita-se, hesita, mas em seguida se põe a caminho outra vez.

Recomeça a chuva. A orquestração das rãs monotoniza a noite e o distancia ainda mais da correnteza da vida.

De onde virá tanto grito de sapo? Vem de trás, dos lados, da frente, do invisível. No conjunto, compõem uma cantoria, que se eleva, demora-se numa tonalidade única, decresce, tem síncopes, reinicia-se com a tensão dos crescendos longos, alarga-se, amplifica-se, toma conta do mundo.

Osvaldo comove-se. A emoção de pena de si mesmo é quase um consolo. Prodigioso, aquilo. Nunca se abeirara assim da sua miséria.

Por que não se calam as rãs? Porque chove, e a chuva é a festa das rãs.

Está agora como fixo e suspenso, e nada perturba a sua imobilidade. Nem o aguaceiro, nem o frio, nem o sentimento de agonia, que é como uma nuvem se formando na alma. O vento lhe avilta ainda mais o corpo em ruína. Os olhos embaciados divisam figuras flutuantes, neblinadas, cintilações. Na verdade, não enxerga mais para fora. E é preciso não desperdiçar o último raio de lucidez!

Naquela noite, àquela hora, não passou ninguém ali que visse um vulto de homem avançando rápido para o seio do grande rio, num mergulho definitivo.

 


[1] Conto publicado originalmente em A Entrevista (Porto Alegre, Sulina, 1968), republicado na Antologia com o mesmo título, pela L&PM, 2000.)