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TAPERA* - Alcides Maya, apresentado por Léa Masina | Imprimir |  E-mail
Escritores Gaúchos

 

 

Morta, mas ainda de pé, em debuxo ao fundo êrmo dessa imensidão triste, que sensações estranhas provocas!

Abandonaram-te talvez por velha; sucumbiste, quem sabe, a algum pampeiro: não tens o passado de glória dos lares que tombam heróicos por entre chamas ou se despovoam tumultuàriamente numa tragédia de ciúme, de vingança, de ódio.

Neles, evocativo, perdura o prestígio de paixão e de poesia que anima e consagra a poeira.

- Foi aqui! - murmura quem passa, e, logo o gênio do amor e da guerra embelece de idílio, enche de rumores de luta, decora de simpatia, de saudade ou de terror a habitação derruída.

Como um nome de mulher em lenda triste aformoseia um sítio agreste! Como sonoro reboa num silêncio de ruína abrutalada o apelido de um bravo!

Nada, porém, te resta, merencório tijupar.

O tempo, irônico, depois de dispersar aos acasos da sorte a raça modesta que lutou e sofreu sob êsse tecto humilde, deixou erguidos no anonimato da morte, sem sombra de tradições, os teus muros solitários, que ora parecem rir para o caminho, pelas janelas e pelas portas escancaradas, um riso escarninho, doloroso do vazio que és sob o firmamento radiante, ora ameaçar soturnamente, enoutecidos e torvos, o horizonte remoto.

No sertão, ao menos, não é assim: a mataria invade as mansões destruídas. Ao sol que magnífico resplende ou nas longas noites perfumadas e tépidas, arvores e raízes avançam, lutam, firmam-se no solo conquistado, apagam os vestígios do homem. Flores olentes crescem à sombra das paredes arruinadas; pelas vigas apodrecidas enroscam-se trepadeiras virentes; colmeias regorgitam de abelhas de ouro; borboletas volitam multicolorindo a paisagem viva; há colibris através as frondes, circulando troncos, vibrando por entre túmidos rebentos tenros; ergue-se das folhagens o epinício luminoso das cigarras; onde palpitaram humanos corações, os pássaros aninham; e a verdura atenua com seu úmido relêvo luxuriante, sob reflexos do céu, a ausência das almas que se foram.

O homem passa; porém não passa a vida, panteìsticamente afirmada no colorido opulento das pétalas, no fremir leve das asas, no balbucio das auras mansas, no fagulhar dos feixes de luz sôbre os arvoredos enseivados, no espasmo fecundo da natureza em fogo, a arder, a chispar, a fulgurar. Não mais lágrimas, risos, brados de vitória, imprecações sentidas; mas ao braço que vessava a terra e as selvas desbravava sucedeu o tatalar das aves módulas; aos gemidos e aos brados, aos suspiros e às juras, o sussurro da mata.

No pampa!

Sozinha entre solidões áridas; ponto mais deserto e mais nu da paisagem deserta e nua, a tapera fica, perdura nos escombros, sarcàsticamente erecta e descolmada, altivamente serena, morta e de pé.

Ao vê-la, desolada e firme, batida sempre de vento, dos nossos ventos sibilantes do sul, lembra-me (amontoamento orgulhoso de pedras no cinzento das tardes) lembra-me consciências tristes de vencidos, firmes no desespêro, impassíveis na ferocidade das resistências.

Às vezes, a coloração de alguma aurora, quando o estio fulgura no firmamento ou a primavera esplende nos campos, ilumina os destroços mudos no longe indeciso dos panoramas amplos. E há como uma ressurreição: despertam legenda e sonho; tremulam de novo os palas no horizonte; condensam-se na espira eurrítimica dos fogões os vapôres pampeanos; vai recomeçar a vida...

Brumas, brumas efêmeras, em combinações de íris, que se dissipam apenas o sol ascende esbraseado no espaço, impondo, na realidade do dia, a miséria da ruína...

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* In: MAYA, Alcides. Tapera: cenários gaúchos. Prefácio de Augusto Meyer; fixação de texto, notas e vocabulário por Carlos Jorge Appel. 3. ed. Porto Alegre: Movimento; Santa Maria: Ed. da UFSM, 2003, p. 37-39 [1ª edição Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1911; 2ª ed. Texto estabelecido por Augusto Meyer, Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., Editores, 1962]


 

Alcides Maya é um dos escritores fundamentais na formação da literatura sul-rio-grandense, sua obra ficcional compõe-se do romance Ruínas Vivas (1910) e dos  livros de contos Tapera (1911) e Alma Bárbara (1922). Nessas narrativas, Maya cartografa a região da campanha, descrevendo seus usos e costumes, registrando a violência no campo, o êxodo rural e a formação dos bolsões de miséria decorrentes de modificações nos modos de produção das estâncias gaúchas. A tradição narrativa e temática que inicia terá continuidade na obra de escritores como Cyro Martins, Ivan Pedro de Martins, Sergio Faraco e Tabajara Ruas. Além de ficcionista, foi crítico literário militante, tendo reunido em livros grande parte de seus ensaios publicados em periódicos. Pode-se dizer que a crítica literária gaúcha sistematiza-se a partir de sua obra, reunida sobretudo nos livros Pelo Futuro (1897); o Rio Grande Independente (1898); Através da Imprensa (1900); Machado de Assis (1912); Crônicas e Ensaios (1918). A obra de Alcides Maya está sendo reeditada pela Editora Movimento, de Porto Alegre.

                                                  Léa Masina