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A Tinturaria | Imprimir |  E-mail

Flávio Aguiar


Nenito e Neno eram como unha e carne. Os dois eram a prova de que uma fronteira, assim como separa, une. Nenito fora batizado e registrado em Rivera, no Uruguai. Neno, em Santana do Livramento, no Brasil. Mas ninguém sabia ao certo onde um e outro nascera. Eram filhos do pampa, daquela largueza de terra que linha demarcatória nenhuma contém, nem detém. E assim se criaram. Gente guaxa, de palavras poucas, olhares contidos, mas de coração aberto para as amplitudes do mundo.

Nenito era espigado, magro, de rosto comprido e nariz afilado. Usava uma barbicha que no queixo virava um triângulo por debaixo. Tinha voz aflautada, gostava de cantar, era o sucesso do famoso bolicho "El Guapo", numa rua de Santana que terminava em Rivera, ou começava nesta e terminava naquela. Quando cantava o "Caminito", as morochas suspiravam, e as ruivas e loiras também. Um estrago, o Nenito!

Neno era retaco, usava uma barba meã de tamanho só na junta entre as bochechas e a pescoço. Não cantava: declamava. Sua versão do poema de Aureliano de Figueiredo Pinto, "Bisneto de Farroupilha", era famosa. Sobretudo quando dizia o "Amigos, quando eu me for/ao país do eterno olvido/fica aqui este pedido/antes que a morte comande:/ponham-me ao peito, sem chucho/o santo trapo gaúcho/da tricolor do Rio Grande".

Como os dois amigos andavam sempre juntos, para serem declarados personagens literários só lhes faltava um Rocinante. Mas na verdade não era necessário: os dois, de per si, valiam um causo. E assim procederam, conforme vou contar.

Pois os dois deram-se na telha de ir ao Fórum Social Mundial, na Venezuela. Assim disseram, assim fizeram. E num belo dia de janeiro do ano da graça de 2006 lá estavam os dois albergados no hotel "Don Quijano", em travessa da Avenida do Libertador. Conscientes de representarem os povos fronteiriços da comarca ao norte do Rio da Prata, ou da comarca ao sul do Guaíba, quando souberam que o presidente Hugo Chávez ia falar ao povo, decidiram se enfarpelar para a ocasião. Mas os paletós e calças que tinham levado estavam em pior estado que os ponchos dos antigos Farrapos depois de dez anos de guerra: amarfanhados pela viagem, embolorados pela umidade, que em Caracas chovia para Noé nenhum botar defeito. Fazia-se mister uma tinturaria.

Perguntaram ao dono do hotelito donde se encontravam, um certo Señor Alonso. E ele, mui prestativo, logo les explicou: indo por aqui, e por ali, e dobrando à esquerda mais adiante e à direita logo depois, a tinturaria se encontrava. E assim se foram. Mas... acontece que El Señor Dios dispõe, e o Diabo contrapõe... A dupla, com paletós e pantalonas à mão, se embarafustou pelos labirintos de Caracas, e neles se perdeu.

Indo pra cá, vindo pra lá, decidiram perguntar. Foi quando Nenito se adiantou, e vendo uma plácida señora de costas, bateu-lhe ao ombro, e perguntou: "por favor, donde se encuentra una tintorería?".

Quando a senhora voltou-se, o queixo de Nenito só não caiu porque no caminho esbarrou na mão de Neno, que tentava segurar o próprio. A senhora tinha olhos verdes, destes que convidavam ao mar, e cabelos castanhos, que convidavam a conhecer montanhas e vales, e as montanhas e vales ali estavam, em formas altaneiras mal contidas por rendas baratas e panos de segunda mão, mas se o continente era precário, o conteúdo era fenômeno. Se olhos devorassem, a senhora ficaria reduzida a ossos pelo brilho da mirada de Nenito e Neno. É verdade que uma ruguita ali, outra ali, mostrava que antanho seu esplendor fora maior; mas um quê por ali ainda pairava, mostrando que restara esplendor de sobra para encher a alma de um vivente.

"Trabajo en una tintorería", disse, com voz de Cinderela. "Vengan conmigo", disse logo, com voz de Rapunzel. E lá se foram eles, troteando como cavalitos pampeiros, pelas ruas, vielas, nos rumos ascendentes dos cerros de Caracas. Sobe daqui, desce dali, vai pela rampa, desce a escadaria, por onde passava o trio provocava basbaques, que, com olhos compridos, admiravam a sorte dos acompanhantes e as formas balouçantes da companhia.

Mas lá pelas tantas Neno, de hábito mais desconfiado, cochichou a Nenito: "e se for um assalto?". Nenito deu de ombros: "vamos a ver, che". Para desanuviar, perguntou o nome dela. "Me llamo Maria", foi a resposta, "pero me llaman de Pan de Azúcar", completou, num bater de cílios, o que deixou Neno alvorotado e Nenito suspiroso.

Eis que já chegavam. Ela tomou os paletós e calças, entrou na tinturaria – uma porta em que nada estava escrito. Os dois ficaram meio apalermados na calçadita estreita, e desconfiados que não veriam mais as roupas. Mas ela saiu, dizendo que em duas horas estaria tudo pronto, e eles poderiam passar para pegar. "Son 25.000 bolívares, adelantados", e os dois pagaram sem discutir.

Ela entrou e saiu de novo, desta vez com vários cabides nas mãos, onde pendiam fardas militares limpas e passadas, envoltas em plástico. Com aquele mesmo bater de pestanas que deixara os dois numa mudez eloqüente, perguntou-lhes se podiam ajudá-la a levar aquela carga até o quartel próximo. "Claro", disseram ambos em uníssono, como se estivessem num jogral. E lá se foi de novo o trio, só que com a moça de mãos abanando na frente, e os dois carregadores com o fardo, atrás.

Seguiu o cortejo por novas vielas e sendas. E toma daqui e quebra dali, chegaram. No portão do quartel, o sentinela os deteve. Chamou o sargento, que foi taxativo: naqueles trajes, decentes, mas sumários, a senhora não podia entrar, seria um alvoroço na caserna. Mas os muchachos podiam passar e entregar a carga. Neno e Nenito maquinalmente entraram portão à dentro, e agora com o robusto sargento à frente ao invés da linda Pan de Azúcar, foram em direção ao prédio principal. Lá os recebeu o oficial de dia; tomou das fardas, e ia puxando uma propina do bolso quando os dois agradeceram, dizendo que eram "gente Del Foro Social", o que provocou muita admiração no militar. "Así que están a conocer Caracas por adentro, como no", disse-lhes ele, comovido pelo interesse dos dois por sua cidade. "Más o menos", foi a resposta da dupla perplexa.

O oficial pediu ao sargento que conduzisse "los amigos" até a saída. E perguntou-lhe por Pan de Azúcar. O sargento explicou-lhe que ela não pudera entrar, pois poderia haver uma confusão no quartel. "Bueno", disse o oficial, "díle entonces que me espere en el café, que em media hora me voy. Y lleve nuestros compañeros en seguridad hasta su destino".

Assim foi dito, assim foi feito. O sargento voltou com eles até o portão, deu o recado à senhora, que se dirigiu ao café próximo, não sem antes agradecer vivamente à sua antiga escolta, estendendo-lhes a ponta dos dedos num gesto de fina elegância. Neno apertou aqueles dedos com delicada firmeza. Nenito, numa mesura de monarca pampeano, beijou-os com um certo ardor. E assim se apartou o trio, com os viajantes agora acompanhados por dois soldados de fuzil a tiracolo que não só os acompanharam até a tinturaria, como, depois de pegarem as roupas devidamente asseadas e "planchadas", ainda os conduziram ao "Don Quijano". Lá chegando, despediram-se, e quando a dupla agradeceu, os recos disseram: "Estamos contentos por ayudar la gente Del Foro".

À noite, depois de ouvir o discurso do Presidente Chávez no Gymnasio Poliédrico, quando os dois perambulavam pelas ruas em festa, com seus paletós escovados, cada um tinha suas próprias conclusões sobre o acontecido. "Veja só, hermano", casquinava Neno. "Fomos ao fundo de Caracas acompanhados por uma dona airosa, e voltamos escoltados por dois recrutas". Completava: "Aquilo foi cortesia do oficial ou ele queria ter certeza que íamos embora?".

Nenito não tinha propriamente uma conclusão. Só olhava para os cerros de Caracas, antes cobertos pelas paredes coloridas das favelas, agora tremeluzindo num festival de pequenas luzes que espelhavam o pisca-pisca da Via-Láctea.

Essa diferença eles mantiveram para sempre. De volta aos rincões de sua terra, Neno contava para todos o estranho e cômico causo com eles ocorrido, de perseguirem uma dona, transformados em carregadores de fardo ou fardas alheias, uma dona que tinha um apelido engraçado: Pan de Azúcar. E ele se ria à vontade. Se era Nenito o contador, o causo não diferia muito, mas terminava diverso, numa noite em que as luzes da terra e as estrelas do céu se confundiam umas com as outras. E ao dizer o nome de Pan de Azúcar, se era de dia, seu olhar ia até o horizonte da pampa desabrida, se era de noite, perdia-se nas sombras e luzeiros distantes. E ao invés de rir, suspirava.

Assim é a vida, assim são os homens: tão parecidos quão diferentes.

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