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Fisgando o sangue na alma: algumas reflexões de Cyro sobre a escrita

Juarez Guedes Cruz


Lembro, neste breve comentário, o Cyro-professor. Não o mestre de psicanálise, dimensão já bastante documentada, mas o Cyro professor de escrita. Relembro uma entrevista por ele concedida ao Jornal Universitário de Porto Alegre, em agosto de 1988. Na citada matéria, Cyro Martins comenta ser difícil realizar uma boa obra ficcional se a produzimos logo após uma primeira impressão causada por fatos da realidade presente e imediata. Embora possa ser válido, adverte ele, recolher notícias publicadas em um jornal como ponto de partida para um texto literário, é preciso deixar que o sobressalto causado pela novidade passe por um tempo de elaboração interna para que o texto adquira um conteúdo de “sangue-nervo” e um grau satisfatório de literariedade. Só assim, com esse espaço reservado à maturação e decantação da vivência, pondera Cyro, o sangue poderia ser “fisgado na alma”. Aconselha-se, portanto, ‘afundar’ antes de escrever, deixar-se conduzir pelo fluxo dos sentimentos e pensamentos. Se tivermos calma e paciência, o processo da escrita interna (que precede o ato de colocar no papel ou na tela do computador) liberta-se da lógica formal e, no poço sem fundo do inconsciente, torna-se literatura. É como diz Cyro em um trecho de A criação artística e a psicanálise:
"É aí, nessa confluência da sensibilidade receptiva com a torrente interior dos meios expressivos, pré-verbais ou verbais, que adquirem categoria de singularidade as suas características pessoais. É o triunfo do indivíduo sobre o impessoal. E também a prevalência do arbitrário poético sobre o sentido técnico das palavras".

 

Em Na curva do arco-íris, ao falar sobre a relação do autor com os personagens que cria, Cyro também toca nesse ponto quando comenta que tal espaço de elaboração interna chega a tornar-se tão livre das amarras da lógica e do planejamento que o personagem "..vai, aos poucos, perdendo a humildade de escrava, de criatura sem vontade, vai pescoceando, esticando a soga, parando p’ra comer pastos verdes da beira do caminho, o autor não quer se precipitar, não quer ser tirano, e ela vai tomando corpo e agarrando o freio nos dentes, até que endurece o queixo e nos arrasta para os rincões da imaginação que somente os gaudérios conhecem". 

Tais depoimentos, penso, enfatizam a necessidade de deixar-se levar, no processo de criação, pelo não-intencional, pelo não-racional, coisa que só se atinge criando um espaço de trabalho onírico entre a primeira impressão e a expressão escrita. E isso, diga-se para evitar confusões, nada tem a ver com a identidade do Cyro psicanalista. Na mesma entrevista citada anteriormente, ao ser perguntado a respeito da influência da psicanálise em sua produção, respondeu: " Ajuda no sentido que me poupa de cometer certos erros psicológicos que outros escritores cometem. Mas tenho sempre um cuidado natural, sem estar prestando atenção para isso, de usar nas minhas escritas de ficção a psicologia intuitiva, que é a psicologia de todo o escritor, e de evitar que transpareça no texto uma base científica. Um leitor psicanalista, psicólogo, psiquiatra, e nós somos todos psicanalistas, poderá tirar conclusões destes trechos, dos caracteres de determinados personagens, mas isso se tira de qualquer livro, porque isso é a vida. O importante é que o escritor consiga transfundir nas suas páginas aquilo que palpita como vida".

Em 'O vórtice mágico', Cyro descreve um precioso momento de apreensão estética e imediata da realidade objetiva e subjetiva, quando foi tomado por um "...universo de turbilhões, onde as perspectivas não se ajustavam às medidas comuns. Diluíra-se, no encantamento súbito, a minha noção do cotidiano". Mas, veja o leitor, Cyro escreveu esse texto, ‘O vórtice mágico’, mais de quarenta anos depois da vivência estética que lhe deu origem. Claro que nem o próprio Cyro aconselharia esperar quarenta anos. A vida é breve. Mas é de bom alvitre abdicar, durante a gestação de uma página literária, da urgência. Deixar que a vida onírica inconsciente trabalhe descansada. Ali estará o sangue-nervo. E aí está uma das lições que Cyro deixou para quem escreve ficção. Posso até imaginar o olhar carinhoso, o gesto largo, o sorriso e as palavras: calma, espera um pouco, antes de botar no papel.

 
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