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“A FELICIDADE É FEITA DAS MIUDEZAS DA VIDA...”  E-mail
Cyro Martins 100 Anos - Eventos

                                           

                                                                                                                    Walter Galvani*

Dita por mim, pela nossa vizinha, pelo porteiro do edifício, a frase soaria como uma destas pérolas populares que acabam se transformando em provérbios ao longo dos tempos, ou caindo no esquecimento, para ser trazida de volta à tona, por um antigo avô, atencioso com seus netinhos. Mas, saindo da mão de um dos mais preciosos escritores produzidos pelo nosso estado, como o é Cyro Martins, nos faz imediatamente pensar que a verdadeira sabedoria é uma destas coisas preciosas, que vivem esquecidas no baú dos pensamentos e, afinal de contas, é construída pelas miudezas da vida...

Assim é que, entregar-se à leitura de “Porteira Fechada”, “Campo Fora” ou “A Curva do Arco-Íris”, para ficar apenas nestes exemplos, ou seguir adiante pela obra de Cyro, é começar a remexer naquelas coisas valiosas que se guardam no sótão, junto com as fotografias da infância, para um dia nelas remexer e reencontrar o guri perdido que assentava o pé no pneu de um avião, ou a garotinha que segurava o telefone como se fosse o caminho secreto para o campo da felicidade. É isso que é, amigo Cyro, agora que você chega ao seu Centenário e nos delegou a tarefa de lembrá-lo. E vou explicar como foi que Cyro me nomeou posteiro para este encargo:

Vivi muitos anos bastante próximo da família dele, mais especificamente do “Seu” Arlindo de Deus Martins, que era de fato um escolhido “por Deus” e possuía uma biblioteca maravilhosa, de onde extraí para minha primeira leitura, “Porteira Fechada” que reli na semana passada, encharcado de emoção. Seu Arlindo era de Quaraí, e os descendentes de Cyro ou os estudiosos de sua obra, sabem o que significa aquele recanto da geografia rio-grandense em sua obra. Mais: foi na casa de Arlindo em Quaraí, que mais adiante conheci em Canoas, (para onde transportara sua imensa biblioteca), que se produziram as tentativas de salvar da morte, o pai, o seu Bilo. Já em Canoas, tornei-me íntimo do “seu” Arlindo e de dona. Dalila, pois meus colegas Túlio, Lineu e Léo e mais tarde o Paulininho, os filhos do “Seu” Arlindo, me franquearam o mundo maravilhoso da sua biblioteca. Ali comecei a ler os clássicos, ali descobri os grandes russos Dostoiewski, Tolstoi, Gogol, Gorki, Turguenev, ali tomei-me de intimidades com Eça de Queiroz, e conheci os primeiros livros de Cyro Martins.

Cresci, pois, no respeito a esse nome que mais adiante vim a conhecer pessoalmente, quando já trabalhando no “Correio do Povo” e na “Folha da Tarde” fui designado ou me auto-indiquei para entrevistá-lo. Foi quando conheci também a Maria Helena, incorporando-a ao meu crescente estoque de relações com o mestre.

Tenho alguns livros autografados por Cyro, pois a minha aproximação a isso me levava, o saldo de longos bate-papos, os encontros na Feira do Livro, embora nenhum tão eficiente e instrutivo quanto o “Para início de conversa”, de Abraão Slavutsky, que se era um “início”, ficou nos devendo a valiosa continuação.

É lá que está, busquei e encontrei à página 113, a explicação para a epígrafe deste pequeno trabalho: “A felicidade – disse Cyro – é feita das miudezas da vida... Cada vida tem seus grandes acontecimentos, proporcionais ao tipo de pessoa que se é. Mas, entre essa meia-dúzia, digamos, de fatos importantes, há intervalos de anos. Nesses intervalos transcorre o banal do quotidiano. E se esse quotidiano é ruim, até os picos existenciais se apagam, porque eles são constituídos pelo corriqueiro do dia-a-dia.”

E quanta riqueza no quotidiano de Cyro!

Imaginem, alguém que nasceu ao pé do mítico Cerro do Jarau! Só isso já o habilitaria para uma longa obra, cheia de mistérios e curvas, com a Teiniaguá Encantada refulgindo com o seu anel de pedra moura.

Cyro, em sua modéstia, só falava nesta sua “vizinhança” para lembrar que o armazém do Seu Bilo ficava por ali, junto ao arroio Garupá.

“... a velha venda, de chão batido – diria ele – paredes de ladrilho e coberta de zinco. (...) me lembro muito bem do fogo no chão, e do aro enorme da roda de carreta, que circunscrevia a lenha, as trempes, as brasas, a cinza e, naturalmente, as panelas e chaleiras bem no meio, tisnadas de fumaça. (...) a panela maior era a do feijão”.

E por aí segue a modesta lembrança do velho Cyro, indiscutivelmente ligada à riqueza das pequenas coisas, do dia-a-dia que o formou e o fez entender, muito antes que qualquer político, qualquer economista, o drama que vivia o campo gaúcho, a decadência da peonada que depois da gloriosa vida errante do ciclo do gado, encontrava agora a “porteira fechada”.

Depois que ele se manifestou, combatido e contestado, o velho pampa foi se esvaziando cada vez mais, transformando-se num enorme espaço, na maioria dos casos mal aproveitado e agora ameaçado de virar deserto pelo plantio de peças exóticas e daninhas, cujo benefício único será encher os bolsos de meia dúzia e beneficiar algumas multinacionais distantes, que preferem concentrar seu lucro nas terras altas do norte da Europa e exportar a parte suja da produção para os semi-desenvolvidos que acolhem os capitais com os olhos abertos da cobiça.

Historicamente, o romance, o conto, a ficção digamos assim, tem se adiantado aos compêndios políticos e econômicos. Não há como negar, o poeta, o escritor, este sim carrega no semblante as virtudes, os sensores que lhe permitem “ver” o futuro. Quando escreve, com simplicidade e firmeza, com estilo e conteúdo, acaba sendo o primeiro a ser atingido pelos petardos da reação. Os que não querem ouvir as verdades, perseguem costumeiramente quem tem a coragem de dizê-las.

Esta foi a grandeza de Cyro Martins.

Um homem capaz de construir no silêncio do seu consultório, na intimidade da sua casa, um mundo que precisava ser mostrado, para ser discutido, compreendido ou talvez revirado.

E com que simplicidade agia! Ainda esta semana, me dizia o escritor Luis Antônio de Assis Brasil, como foi difícil “arrancar” de Cyro sessenta linhas para o Instituto Estadual do Livro que decidira publicar algo remexendo no baú dos escritores, para um programa de divulgação que levava o autor ao interior do estado.

Esta simplicidade quase quixotesca não impediu contudo, que Cyro Martins fosse um dos mais sofisticados integrantes da escola de psicanálise, onde sua formação em Buenos Aires funcionou de maneira claramente didática e provocadora para os rio-grandenses.

Cyro escritor, Cyro médico, Cyro psicanalista, Cyro observador da vida econômica e social do estado, Cyro amigo, muitas facetas de uma só figura que hoje nos espanta e encanta e nos faz pensar no tempo perdido: por que não “exploramos” melhor o Cyro? Pois é...

No respeito a um grande amigo, por vezes deixamos passar a chance de conhecer melhor nossa própria vida e destino, ou o lugar onde se habita. Generoso, porém, Cyro Martins deixou o legado de sua obra.

Basta aproximar-se dela, agora ou sempre, aproveitando o centenário que se começa a comemorar, a existência de uma boa coleção de seus livros em disponibilidade em livrarias ou bibliotecas, ou na editora Movimento, que obedecendo à cabeça privilegiada e a mão operosa de Carlos Appel, consegue manter este elo entre o que se produz industrialmente ou se comercializa, com a qualidade e a cultura que se quer e deve preservar.

Cyro nasceu em Quarai em 1908, filho de Apolinário e Felícia dos Santos Martins. Freqüentou o Colégio Municipal, onde foi aluno do professor Caravaca, seu personagem futuro em “Rodeio” e “O Professor”. Em 1920, deixou a região da “Campanha”  e veio para Porto Alegre, estudar no internato do Colégio Anchieta. Este período pode ser relembrado em “Um menino vai para o colégio”. Exemplar.

Aos 15 anos, portanto, em torno de 1923, escreveu seus primeiros contos e cinco anos mais tarde ingressa na Faculdade de Medicina.

Seu primeiro livro de contos, “Campo Fora”, é de 1934, ano em que morre seu pai. No ano seguinte, numa conferência, utiliza pela primeira vez a expressão “gaúcho a pé”.

No ano de 1937 vai estudar neurologia no Rio de Janeiro e em 38, já em Porto Alegre, presta concurso para Psiquiatria do Hospital São Pedro. Participa da fundação da Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal e vê publicado seu primeiro romance, “Enquanto as águas correm”, pela Globo, nossa grande editora, então dirigida por Erico Veríssimo.

“Porteira Fechada”, seu segundo romance e para muitos o maior deles, sai em 1944.

Em 49 faz sua formação psicanalítica em Buenos Aires.

O terceiro romance da chamada “Trilogia do gaúcho a pé” sai em 1954: “Estrada Nova”.

Escreve até o “Páginas Soltas”, de 94, seu último livro.

Falece a 15 de dezembro de 1995 em Porto Alegre.

E agora, para encerrar, ouçam o capitulo XXII, que, aliás, poderia se chamar “Paz nos campos”, final de “Porteira Fechada”, livro que li e reli, emocionado, para lembrar bem de Cyro. E atentemos para a paisagem linda, mas desprovida de humanos. Como ficaram os campos do sul...

“A tarde desse dia, nos campos, caiu serena, sem um frêmito. O sol descambava devagar, refletindo-se nas sanguinhas cheias, cantantes, irisando as espumas de sapo, reluzindo nos capinzais crescidos, nos fios de aramado, na chapa das lagoas. Pendia sobre a campanha uma claridade tênue de céu lavado. Os animais saíam para os altos a sorver o frescor das passagens úmidas. Perdizes assobiavam contentes entre as moitas, bandos de avestruzes vagavam, catando bichinho à flor da terra.

Longe de Boa Ventura, lá no fundo duma estância, numa invernada de dez quadras de sesmaria, lotada de bois, defrontavam-se três taperas: a do Bentinho, a do João Guedes e a da Gertrudes. Sobravam algumas árvores, algumas pedras e os sinais de moradia humana no chão. Nada mais. Os bois gostavam de lamber aquela terra.

Aquilo agora era um rincão despovoado. Não se avistava um vulto de campeiro, não se ouvia um latido de cachorro numa porta de toca, não tremulava um pala endomingado, não chiava uma carreta, os arados não rompiam a terra.

Mas, que engorde dava aquela invernada! Para um fim de safra, então, já com caídas para o inverno, não havia campo que se lhe igualasse. Seiscentos novilhos pastavam folgadamente entre as altas cercas de sete fios e madeirama de lei que a tapavam.

O sol entrou sem grandes esplendores. A noitinha caiu suavemente.

Que paz naqueles campos!”

 

Obrigado

Walter Galvani

 

Porto Alegre, Solar dos Câmara, 16 de agosto de 2007.

 

* Jornalista e escritor, membro da Academia Rio-grandense de Letras, assessor da Pro-reitoria de Extensão da PUCRS - Porto Alegre.