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DEPOIS DAS TEMPESTADES

Fabio Varela Nascimento


            Nos dias de férias, sem pacientes, Cyro devia aproveitar as horas na Galeria Chaves para ler e escrever. Após Enquanto as águas correm, ele dirigiu seus esforços literários para um outro romance, de mais fôlego do que o último. É provável que, naquele janeiro, ele já tivesse conversado com os editores da Livraria do Globo acerca das possibilidades de uma nova publicação. Um rastro dessa tratativa se encontra na Revista do Globo de 25 de janeiro de 1941. Nas páginas 22-23 e 54-55, havia um texto com o título de “Revelação”, identificado como “Um conto de Cyro Martins”.

No primeiro par de páginas, a história de Carlos, jovem estudante de medicina, se espalhava por quatro colunas, sendo que as duas internas se ajustavam à ilustração de um homem de terno alinhado, com a mão em uma árvore e o olhar perdido nos céus. O desenho até poderia evocar o sentido da palavra revelação, mas tinha pouca ligação com o texto caracterizado como conto. Para Carlos, moço de quartos de pensão sem fatiotas bonitas, a revelação vem do plano terreno, não do celeste.

Interessado em ir a uma aula sobre o sistema nervoso, Carlos vai para a Faculdade de Medicina. Sem encontrar o professor ou os colegas, ele anda pelo prédio e chega ao necrotério. Entre os corpos, julga ver um rosto familiar. Depois de instantes duvidosos, Carlos reconhece o Compadre, “o negro imbecil, carregador de viandas da pensão de dona Carlota”[1]. A figura do Compadre faz com que Carlos lembre de cenas da antiga moradia. Em uma delas, ele e outros jovens entediados aproveitaram certo domingo chuvoso para rir do Compadre e da Comadre. Atuando como padre, juiz e testemunhas, os rapazes fingiram um casamento. Deficientes, sem noção da realidade, o Compadre e a Comadre acreditaram na farsa e passaram a viver como casal. Naquele domingo, o episódio causou gargalhadas nos guris. Ao ver o cadáver do Compadre, no entanto, Carlos é tomado por remorso e amargura. A partir desse momento, aflora um Carlos reflexivo e sensível. Ele pensa que, em um dia ou outro, uma turma de alunos estaria atenta “à lição do professor sobre a anatomia daquele cérebro. E trinta cérebros jovens estariam adquirindo conhecimentos úteis à custa de um único que, em vida de seu possuidor, de nada lhe valera”[2]. Olhando para o outro, Carlos olha para o seu interior. Ele se vê como um sujeito a quem sobrava “compaixão pelo mísero, pelo que fora pisado pela sorte implacável”[3]. Os instantes com o Compadre também serviram para que Carlos entendesse o que era estar só – observando os caminhos da vida – e para que se distinguisse como alguém “enriquecido na capacidade de sentir”[4].

“Revelação” carrega várias revelações: o corpo de um conhecido, a compaixão, o momento solitário e a sensibilidade de Carlos. A história que tem direito a uma ilustração e a quatro páginas – as duas últimas estão apertadas entre os anúncios das edições da Globo (As vinhas da ira, de John Steinbeck), das fitas e papeis carbonos Helios e das pílulas desinflamantes De-Lussen – ainda revela uma nova etapa da escrita de Cyro. Mesmo que Carlos faça referências à família interiorana, o enredo se passa no espaço urbano. A pensão e o prédio da faculdade são ambientes típicos da cidade que se pretende grande e têm frequentadores característicos: jovens estudantes, muitas vezes pobres, raramente abonados. Nos tempos do curso de medicina, Cyro circulava por esses ambientes e, ao retratar seus frequentadores, retratava uma parte de sua vida. Assim, a publicação de “Revelação” indicava não só um deslocamento da ficção de Cyro para o espaço urbano, mas também um movimento do autor em direção ao texto autobiográfico.

O leitor ocasional que comprou um exemplar da Revista do Globo em janeiro de 1941 e o leitor que teve contato com a literatura de Cyro após os anos 1970 – quando ele, junto a Carlos Jorge Appel, proprietário da Editora Movimento, reestruturou sua obra – poderiam considerar “Revelação” um conto. A narrativa se constrói ao redor de um personagem, possui certa concisão e se passa em um reduzido corte de tempo. Entretanto, recorrendo aos livros publicados por Cyro antes de 1970, é possível localizar “Revelação” inserido em um contexto narrativo maior. Em Mensagem errante, de 1942, o primeiro capítulo da segunda parte – “A capital” – traz a mesma história publicada em 1941. O episódio é significativo e desperta interesse por causa da pista que fornece. Se o início de “A capital” saiu em janeiro de 1941, duas hipóteses plausíveis podem ser levantadas: Cyro devia se dedicar ao romance desde 1940 – talvez, desde a publicação de Enquanto as águas correm, em 1939; no início de 1941, a equipe editorial da Globo já conhecia, pelo menos, fragmentos do material que viria a compor um futuro romance.

“Revelação” deixa transparecer que, no novo projeto, Cyro lançava mão dos tons autobiográficos de forma mais saliente do que fizera até então. Em Campo fora, havia algumas lembranças infantis referentes à campanha. No conto “Alma gaudéria”, por exemplo, a passagem “Um gaúcho quieto comentou: vai se acabá, mesmo!”[5] relembrava a sentença proferida por um tio no anoitecer de um domingo – e de uma pretensa época –, quando as festas, a fartura e as alegrias da campanha chegavam ao fim. Em Sem rumo, as atitudes, as reflexões sociais e humanas do Doutor Rogério eram, em certo grau, as de Cyro. Em Enquanto as águas correm, o médico jovem que acompanha, pelo hospital no qual Isidro está internado, os outros dois clínicos experientes, lembra o Cyro recém-formado e suas tentativas de aprender a prática da profissão com Robertinho e Salánky.

Embora discreta, a pulsão autobiográfica de Cyro já se manifestava. Por que ela ganhou força entre 1939 e 1940? Seriam os efeitos da guerra que testemunhava de longe, da estabilidade alcançada pelo ingresso no São Pedro, da chegada aos trinta anos, da paternidade que se aproximava? Cyro era um homem sensível e todos os acontecimentos à volta mexiam com ele. Nenhum deles, no entanto, tinha tanto peso quanto a paternidade. Era óbvio que sua vida se modificaria de modo irreversível com o nascimento da criança. Além de ter sob sua responsabilidade a criação de um menino ou uma menina, ele precisaria assimilar que sua relação familiar atingiria outro nível.

 

NASCIMENTO, Fábio Varela. Cyro Martins – os anos decisivos (1908-1951). Porto Alegre: Movimento, 2019, p. 242-244.



[1]MARTINS, Cyro. Revelação. Revista do Globo, Porto Alegre, n. 288, p. 54, 25/01/1941.

[2]MARTINS, Cyro. Revelação. Revista do Globo, Porto Alegre, n. 288, p. 55, 25/01/1941.

[3]MARTINS, Cyro. Revelação. Revista do Globo, Porto Alegre, n. 288, p. 55, 25/01/1941.

[4]MARTINS, Cyro. Revelação. Revista do Globo, Porto Alegre, n. 288, p. 55, 25/01/1941.

[5]MARTINS, Cyro. Campo fora. Porto Alegre: Movimento, 1991, p. 22.