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CYRO MARTINS - os anos decisivos (1908-1951)

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Uma temporada carioca


Fábio Varela Nascimento**


 

Em 1937, quando Cyro entrou em contato com os donos e os colaboradores da Ariel, a melhor fase da editora já tinha passado. Entre seus autores ainda havia nomes relevantes e o Boletim continuava a ter boa distribuição, o mercado, porém, não lhe era mais tão favorável. Três anos antes, a José Olympio mudara-se de São Paulo para o Rio de Janeiro, dificultando os negócios da Ariel. Desde 1934, a José Olympio crescia e aumentava o número de títulos lançados – em 1936, ela atingiu a marca de 66 novas edições e se tornou a maior editora de obras de ficção do País. Com um poder de publicação e de circulação maior, a José Olympio tomou o espaço e os escritores da Ariel. Caminhando para o seu fim, na tentativa de emplacar um sucesso literário que rendesse, em 1937, a Ariel estava com as portas abertas a novos autores. Nesse cenário, Cyro poderia ser uma aposta positiva.

Ele não era exatamente um estreante. Campo fora saíra pela Globo. Suas tentativas de escrita também não se restringiram aos contos iniciais. Cyro escrevia sempre que podia e, antes da ida para o Rio, já tinha um projeto finalizado. Seu título era Sem rumo e Cyro não o guardava em segredo. Na edição de Rumo na qual saíram “Noventa e três” e a crítica de Samuel Putnam, havia um pequeno informe referente aos planos do jovem autor: “O escritor Cyro Martins promete para breve uma interessante novela – Sem rumo”(1). A notícia foi veiculada pela revista em fevereiro de 1936. Daquela data até o estabelecimento de Cyro no Rio havia corrido mais de um ano.

Sem rumo foi escrito em 1935(2) e desde então Cyro lutava para publicá-lo. No artigo “Notas sobre um autor bissexto”: Cyro Martins na literatura sulina, Mariana Chaguri recupera quatro cartas enviadas a Augusto Meyer pelo quaraiense entre 1935 e 1936. Esses itens da correspondência guardada no Arquivo Augusto Meyer, na Fundação Casa de Rui Barbosa, assinalam as tentativas de Cyro para se integrar no sistema literário gaúcho. Com algumas ressalvas, o tom predominante nas mensagens de 9 e 29 de agosto de 1935 é o da gentileza. Na primeira delas, Cyro louva Machado de Assis, editado por Meyer naquele mesmo ano. Na segunda, agradece os comentários a respeito do seu primeiro livro: “É grande a minha satisfação pelo que dizes do Campo fora. De há muito eu ansiava pela manifestação de algum de vocês, pois me entristeceu bastante a boicotagem que a crítica de Porto Alegre fez ao meu livro”(3). Cyro tinha consciência de que para ser considerado um escritor era preciso ser lido, comentado. Isso não estava acontecendo e ele aproveitava a oportunidade para desabafar.

Para ser escritor também era necessário editar. Esse tópico prevaleceu nas cartas de 29 de agosto e 21 de outubro de 1936. Em agosto, Cyro enviou Sem rumo para Augusto Meyer com um pedido claro – até indelicado: “Desejaria que o nosso amigo Erico, a quem tenho em boa conta [...] tomasse interesse pelo livro, de modo a ser editado ainda este ano”(4). Antes de recorrer a Meyer, “estimulado pelo surto regionalista nordestino”(5), ele testou, sem sucesso, editoras cariocas. Em outubro, indignado e com a confiança já um tanto abalada, Cyro voltou a contatar Augusto Meyer. Os originais de Sem rumo foram devolvidos “em seco, sem uma palavra, sem uma explicação, sem nem mesmo a delicadeza de uma tapeaçãozinha, para que a cousa não fosse tão violentamente chocante”(6). Cyro buscava entender o porquê de ignorarem a obra depois dos elogios de Meyer e o suposto interesse de Erico – não era boa, não venderia, não mostrava centros urbanos, prédios, era muito regionalista?

Na ausência de pareceres, correspondências e outros documentos, só resta elucubrar sobre os motivos que levaram a editora a ignorar Sem rumo. Não se sabe como foram as vendas de Campo fora, se a Globo obteve uma resposta positiva. Nada indica que o livro de contos de um estreante resultasse em lucro. Apesar da fome de publicação de Henrique Bertaso, o chefe da Seção Editora da casa, a empresa e principalmente seu dono, José Bertaso, faziam negócios e não queriam perder. Outro livro com chances de encalhe não seria aconselhável.

Ao lado dessa hipótese pode ser colocada uma de viés político. Sem rumo tocava em assuntos delicados. Chiru, o protagonista, é um trabalhador rural que domina as lidas campeiras. Em determinado ponto da narrativa, ele precisa deixar o campo, único habitat para o qual estava apto. Indo para a cidade, sem instrução e preparo profissional, ele tenta se sustentar com bicos e subempregos. Em um casebre, ele, a mulher e o filho pequeno vivem rodeados pela miséria, sem perspectivas de melhora. Quando se aproximam as eleições municipais, os situacionistas começam a comprar votos e a distribuir presentes. Chiru consegue algumas vantagens, mas seu encantamento pelo candidato da oposição, Doutor Rogério – médico que atendia os pobres sem receber e lhe ajudara na doença do filho –, faz com que o personagem caia ainda mais em desgraça.

Sem rumo não tratava apenas do êxodo rural e do abandono, por parte do poder público, dos indivíduos. A obra carregava críticas à República Nova, na qual muitas práticas eram idênticas às da República Velha. A Globo apoiara a Revolução de 1930 e era parceira de Getúlio Vargas desde seus tempos como presidente do Estado. Seria melhor para os Bertaso e para a editora que a relação com o então presidente eleito de forma indireta continuasse amena. Além disso, em 1937, os ânimos políticos voltavam a se exaltar. Eleições estavam marcadas para 1938 e os nomes dos candidatos – José Américo de Almeida, Armando Sales de Oliveira, Plínio Salgado – já apareciam um ano antes. Embora Vargas prometesse apoio ao primeiro, todos sabiam que o seu preferido era, na verdade, ele mesmo. Alimentadas pelos embates entre comunistas e fascistas que se davam no plano internacional, as tensões entre a esquerda de Luís Carlos Prestes e a direita integralista continuavam no cenário nacional, apesar de a ANL ter sofrido um baque com a tentativa frustrada de 1935. Em meio a um contexto político tão exacerbado, talvez não fosse bom negócio para a Globo colocar na rua uma obra que trouxesse críticas ao status político e fosse assinada por um escritor que se identificava com as ideias da esquerda.

 

 

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(
leia trecho de Sem Rumo)

 

Há outra possibilidade para Sem rumo não ter levado o selo da Livraria do Globo. Essa possibilidade também ronda o campo da elucubração e, ainda que pareça desabonar a figura autoral de Cyro, deve ser ventilada. Os responsáveis pela Seção Editora podem ter chegado à conclusão de que Sem rumo não era uma obra bem realizada. Não existe nada que abone essa ideia. Entretanto, tendo em vista alguns pontos problemáticos de Sem rumo, é plausível levantar tal hipótese.

Embora todo o envolvimento com a edição do novo livro, a carreira literária não era o principal motivo da ida de Cyro para o Rio. Em primeiro lugar, vinha a formação profissional. Antes de 1937, o Rio de Janeiro já contava com alguns nomes totalmente envolvidos na divulgação das questões referentes à neurologia e à psicanálise. Desde 1928, havia, na capital, uma sucursal da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP) – a matriz teve origem em São Paulo, um ano antes. Também em 1928, Júlio Porto-Carrero, médico pernambucano radicado no Rio que atuava no Hospital Nacional de Psicopatas, ministrou, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a aula inaugural do Curso de Psicanálise Aplicada à Educação. Porto-Carrero era o secretário da filial carioca da SBP e, conforme indicações(7), deve ter entrado em contato com a obra de Sigmund Freud, através do psiquiatra Juliano Moreira e do neurologista Antônio Austregésilo, em 1918. O envolvimento de Porto-Carrero com os ensinamentos do austríaco foi intenso ao ponto de o brasileiro aprender alemão para ler, traduzir e se corresponder com Freud. Em termos de psicanálise, até 1937, ano de sua morte, Porto-Carrero foi, no Brasil, o profissional com as contribuições mais significativas na área: escreveu Ensaios de psicanálise, de 1929, A psicologia profunda ou Psicanálise, de 1932, e revisou a tradução de Totem e tabu, de 1934.

Cyro deve ter entrado em contato com essas obras ainda na Faculdade de Medicina, sozinho ou com a ajuda de Celestino Prunes, o professor que se interessava e tentava fazer com que os alunos se interessassem pelos assuntos psicanalíticos. Independente dos caminhos que levaram Cyro aos trabalhos de Porto-Carrero, um fato se impõe: o interesse do jovem. Segundo informações de Abrão Slavutzky(8), Cyro gostava do modo de escrever de Porto-Carrero. A prática docente na cátedra de Medicina Legal da Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro ajudava o autor a clarear e a expor suas ideias. Além da clareza, Porto-Carrero parecia ter compreendido com mais propriedade os conceitos freudianos. Na biblioteca do Acervo Cyro Martins, há dois exemplares de A psicologia profunda ou Psicanálise. Um deles, o mais antigo, traz o nome de Cyro e a indicação de data, 12/1932. O outro é uma edição publicada, provavelmente, depois de 1933 e, ao contrário do primeiro, tem, nas páginas iniciais, marcas de leitura feitas com lápis vermelho e azul.

Se tivesse escolha, Cyro estudaria com Porto-Carrero, mas em 1937 apenas a especialização em Neurologia, com Antônio Austregésilo, era viável. Austregésilo não era um profundo conhecedor de psicanálise. Em um trabalho sobre os pioneiros da ciência no país, Marialzira Perestrello compartilha sua impressão a respeito dos escritos de Austregésilo: “pouco leu Freud de primeira mão”. Mesmo que isso fosse verdade, Austregésilo, em estudos neurológicos, já gozava de certa fama. A própria Marialzira ressalta seus “trabalhos sérios de neurologia” e os “inúmeros livros dirigidos ‘aos nervosos’”. Perestrello ainda afirma que ele “foi um dos médicos que entre nós teve o valor de ‘deixar uma escola’ na medicina brasileira”(9).

Na altura de 1937, a “escola” de Austregésilo completava vinte e cinco anos. Desde 1912, ele era o catedrático de Neurologia na Universidade do Rio de Janeiro e muitos alunos haviam passado pelas suas mãos. Como Cyro conhecia os estudos de Porto-Carrero, não estranharia que também conhecesse os de Antônio Austregésilo. Se, no campo literário, Augusto Meyer lhe abrira algumas portas, outro gaúcho pode ter feito o mesmo papel quanto à neurologia. Entre 1930 e 1932, Dyonélio Machado cursara a especialização com Austregésilo. Até junho de 1937, no entanto, Dyonélio estava preso e sem condições de ajudar ninguém. Assim, os caminhos apontam para outra pessoa: Martim Gomes. O autor de A creação esthética e a psychanálise não era uma figura distante de Cyro. Tal qual o rapaz, Gomes, nome constante nas páginas do Correio do Povo, viera de Quaraí e se dividia entre a medicina e a literatura – dois de seus romances saíram pela Livraria do Globo: As loucuras do Dr. Mingote, em 1933, e A flor da tuna, em 1938. No primeiro ano da Faculdade de Medicina, provavelmente sabedor da origem do professor, o calouro assistira a uma conferência sobre psicanálise proferida por Gomes(10). Tempos depois, na parte final do curso, Cyro foi seu aluno na disciplina de Clínica Obstétrica.

Martim Gomes estava fora dos dois centros brasileiros de estudos psicanalíticos – Rio de Janeiro e São Paulo. Isso, contudo, não o impediu de gozar certo reconhecimento na área. Sua tese de doutoramento, intitulada La rêve et la selection des idées, foi publicada no Rio em 1927(11). Marialzira Perestrello o considera um dos pioneiros da psicanálise no Brasil(12), tanto pela sua atuação anterior a 1937 quanto por suas publicações em periódicos franceses. Ela também o cita por ele ter servido de referência a um dos ensaios de Júlio Porto-Carrero. Anos mais tarde, Cyro diria que Martim Gomes era “um homem curioso, inteligente, que defendia a psicanálise, mas não lhe apreendera o espírito”(13). Talvez Gomes não tenha apreendido “o espírito” da psicanálise. No entanto, ele compreendia os jovens inteligentes, curiosos e desejosos de ascensão que lembravam ele próprio em outros tempos. Podendo ajudá-los de algum jeito, ajudaria.

Ao contrário das etapas anteriores da formação de Cyro, a especialização em Neurologia não deixou pistas. Não há históricos de disciplinas e notas ou listas de leituras. A rotina não poderia ser muito diferente daquela dos tempos da Faculdade de Medicina – aulas teóricas e práticas se sucediam. Antônio Austregésilo tinha trânsito em várias clínicas do Rio de Janeiro e seus discentes visitavam-nas para tratar de pacientes e fazer estudos de caso. O Hospício Nacional dos Alienados, localizado na Praia Vermelha, era um dos espaços onde Austregésilo, chefe da Seção Pinel na instituição, e os candidatos a neurologistas mais atuavam. No Hospício Nacional havia o Pavilhão de Observação, criado para a assistência aos doentes e para as atividades acadêmicas. Durante o período de curso, Cyro deve ter passado a maior parte dos dias na Praia Vermelha, mas suas excursões à procura de conhecimento provavelmente o levaram além das imediações da Urca. Desde a época da faculdade, ele ia aos hospitais em busca de algum docente ou de algo para aprender. No Rio, seu comportamento não mudaria. Quando não estava no Pavilhão de Observação da Praia Vermelha, ia até o Castelo, no Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia, onde funcionava, em uma das enfermarias, a Clínica Neurológica, instalada anos antes sob os cuidados de Austregésilo. O Sanatório de Botafogo, outra instituição fundada com o auxílio do professor, também entrava no roteiro de excursões do aluno.

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*NASCIMENTO, Fábio Varela. Cyro Martins – os anos decisivos (1908-1951). Porto Alegre: Movimento, 2019, p. 193-198.


Leia depoimentos de estudiosos da literatura sobre Sem Rumo

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* Cyro Martins - os anos decisivos (1908-1951). Fábio Varela Nascimento. Porto Alegre, Ed Movimento, 2019.
** Fábio Varela Nascimento. Pesquisador e Doutor p autD
1SOBRE UM ESCRITOR REGIONALISTA. Rumo: revista mensal, Porto Alegre, p. 24, fevereiro de 1936.
2MARTINS, Cyro. Prefácio. Sem rumo. Porto Alegre: Movimento, 1997, p. 11.
3Cito a carta reproduzida em: CHAGURI, Mariana Miggiolaro. Notas sobre um escritor bissexto. Literatura e Autoritarismo, Santa Maria, n. 20, p. 107, maio de 2012.
4Cito a carta reproduzida em: CHAGURI, Mariana Miggiolaro. Notas sobre um escritor bissexto. Literatura e Autoritarismo, Santa Maria, n. 20, p. 109, maio de 2012.
5Cito a carta reproduzida em: CHAGURI, Mariana Miggiolaro. Notas sobre um escritor bissexto. Literatura e Autoritarismo, Santa Maria, n. 20, p. 109, maio de 2012.
6Cito a carta reproduzida em: CHAGURI, Mariana Miggiolaro. Notas sobre um escritor bissexto. Literatura e Autoritarismo, Santa Maria, n. 20, p. 111, maio de 2012.
7CASTRO, Rafael Dias de. Correspondência de Júlio Porto-Carrero a Arthur Ramos: a Sociedade Brasileira de Psicanálise e a preocupação com a tradução dos termos psicanalíticos, décadas de 1920 e 1930. História, ciências, saúde: Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, Out./Dez. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&;;pid=S0104-59702015000401451. Acesso em 27/04/2017. Ver Nota 1 do texto.
8Em entrevista realizada no dia 1º/03/2017, no seu consultório, em Porto Alegre.
9PERESTRELLO, Marialzira. Primeiros encontros com a psicanálise: os precursores no Brasil (1899-1937). Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 35, n. 4, p. 198, 1986.
10A informação sobre a presença na conferência de Martim Gomes foi dada por Cyro em depoimento a: PERESTRELLO, Marialzira. Primeiros encontros com a psicanálise: os precursores no Brasil (1899-1937). Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 35, n. 4, p. 205, 1986.
11Informação retirada do site do Museu Virtual da Psicologia no Brasil. Disponível em: http://www.ufrgs.br/museupsi/biomartimgomes.htm. Acesso em: 1º/05/2017.
12PERESTRELLO, Marialzira. Primeiros encontros com a psicanálise: os precursores no Brasil (1899-1937). Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 35, n. 4, p. 205, 1986.
13PERESTRELLO, Marialzira. Primeiros encontros com a psicanálise: os precursores no Brasil (1899-1937). Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 35, n. 4, p. 205, 1986.

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