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Arte & Loucura

                                                      - Além da Letra

  

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Em primeiro plano, Hospital Psiquiátrico São Pedro - Porto Alegre

 

A realização, no último dia 22 de setembro, de Arte & Loucura: 4 Coleções em Diálogo - dentre seus tantos aspectos valiosos - se revela como excelente oportunidade para trazer a público manifestações surpreendentes de pessoas "invisíveis", como doentes mentais são muitas vezes considerados. Orientadas e incentivadas por profissionais habilitados no trato com as artes e com muita humanidade para tratar doentes mentais, pessoas que expõem sua capacidade criativa, enquanto apaziguam seus demônios e mostram um pouco de suas almas. (MHM)

 

Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro/RS*

                                                                               

Barbara E. Neubarth **

 

            Ao agradecer, quero dizer da minha alegria em compartilhar este Arte & Loucura: 4 Coleções em Diálogo, que fala de memória, patrimônio, salva­guarda, preservação, mas fala em especial de pessoas invisíveis, es­quecidas, ignoradas. E diz de quem, desafiado a es­cutar, desde dentro dos pátios lotados dos antigos manicômios, deu voz a pes­soas interna­das, erroneamente percebidas como sem desejos ou so­nhos.

 

            O Hospital Psiquiátrico São Pedro é inaugurado em 1884 na mesma esteira higienista que marcou a fundação de outros manicômios pelo mundo. Fui co­nhecê-lo em 1972, no que eu acreditava ser minha primeira e única visita. Contudo, a exposição do Museu de Imagens do Inconsciente em Porto Alegre, em 1987, me fez pensar em: Por que não, com instrumental das artes, abrir di­álogos com pessoas que caminhavam a esmo nos pátios do hospício? Em par­ceria com Rosvita Bauer, a artista plástica Luiza de Paula e a Terapeuta Ocu­pacional Luciana Moro fundamos, em 1990, a Oficina de Criatividade do São Pedro, que tem como uma de suas resultantes um Acervo esti­mado em 250 mil documentos. Criada como equipamento de reabilitação psicossocial da rede de saúde men­tal do SUS na Oficina, a expressão plástica serve ao resgate da subjetividade, sendo decisiva para consolidar uma inclusão possível, ao favo­recer trocas que levam à criação de novos sentidos.

 

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            Atentos a diferentes discursos, estabele­cendo vínculos, colocando desa­fios diante dos materiais e das linguagens ar­tísticas, ali são oferecidos desenho, pintura, colagem, a Oficina de Escrita, o grupo das Bordadeiras do São Pedro e o Espaço do Barro.

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            A produção artística tendo um caráter de resistência e a potência de produzir ra­chaduras naquilo que já está instituído. Desta maneira, o dispositivo oficina se coloca como laboratório de possíveis, onde o frequenta­dor pode se experi­mentar e a presença do acompanhante é mediadora entre matéria e sujeito, entre sujeito e seus pares, entre o sujeito e o novo.          A tessitura, entre o dentro e o fora, passa por estagiários de diferentes cur­sos, cuja presença junto aos frequentadores inscreve a diferença entre o apaga­mento e o convite à vida. Uma história feita de acontecimentos, enlaces, apro­ximações, deslumbramentos, inquietações, descobertas, dúvidas. Assim se dão, ali, os laços e os nós.

 

            Ao iniciar as atividades da Oficina, havia a convicção de que os traba­lhos pro­duzidos seriam reunidos em um acervo, tendo como norte o Museu de Imagens do Inconsciente (http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/berlim/index.html).

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            Era também intenção sensibili­zar a sociedade, através de um contra-discurso em rela­ção ao que se pensa sobre loucura e louco. E foram abertos espaços de diálogo e pesquisa com diferen­tes universidades, sendo a parceria com a UFRGS, a partir de 2001, através da saudosa profes­sora Tania Mara Galli Fonseca, a que até hoje per­dura. E a Tania trouxe, entre outros, a professora Blanca Brites, do Instituto de Artes.

 

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Tânia Mara Galli Fonseca

 

 

            É quando nos perguntamos sobre o que se quer dessa coleção? O que vamos preservar? Para quem? Como viabilizar a organização de todo o material? Sensível ao produtor do Acervo - o frequentador da Oficina, despojado de pertences - suas carências nos levaram a crer que apenas esses tra­balhos plás­ticos seriam testemunhos de sua vivência e por isso não po­deríamos perder nada, nada deveria ser descartado. Como o espaço do hospital é grande, op­tou-se por guardar todo o material produzido, dis­pondo, assim, de uma com­pleta coleção dos trabalhos dos moradores do São Pedro que frequentam a Oficina desde 1990.

 

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            Diante do expressivo volume do material, num primeiro momento, separamos quatro coleções: Cenilda Ribeiro (3.011 documentos), Frontino Vieira (784 documentos) e Luiz Guides (5.446 documentos), já faleci­dos, e Natália Leite, que segue produzindo, para além dos seus doze mil tra­balhos.

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            O material passa a ser apresentado em exposições no hospi­tal e fora dele, fato bastante apreciado pela maioria dos frequentadores, conhecendo e se fazendo conhecer chega ao Rio de Janeiro e a São Paulo, na exposição Lugares do Delírio, com curadoria de Tania Rivera. A partir da exposição ImensaMente (2018), o ingresso do curso de Mu­seologia (UFRGS) qualifica a estratégia mu­seológica do Acervo.

 

            Mas será mesmo necessário preservar toda sua produção para pre­servar a sua memória? Quem trabalha na Oficina encontra diversos sentidos para isso. O olhar privilegiado de quem testemunha o processo de produção da obra per­cebe o quanto de cada sujeito ali se materializa e se amplia. Assim o Acervo, as pesquisas e as exposições cumprem um papel social de tes­temunho.

 

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            A linguagem simbólica, carregada de emoção e reveladora da própria condição humana, é material que aparece nos trabalhos realizados. Às vezes servindo de alívio para as dores, expressam tristeza, revoltas, an­gústias, mas também, de­núncias, proposições, vitórias, sensações de prazer ou desconforto. Atrás de cada gesto, cada marca, cada pince­lada, cada verso, em todas as linguagens, pode se esconder um enigma, a ser ou não decifrado. Pensar sobre esta rela­ção entre a obra e o autor pode nos levar a algo prosaico, mas cuja dimensão toca no ín­timo do humano e, por isto mesmo, deve ser respeitosamente prote­gido. Queremos falar de identificar - trabalho artístico e autor – até para res­ponder, simplesmente, quem fez este trabalho?

 

            Se, ao sujeito internado em um hospício, até lhe era permitido fazer al­gum de­senho,de outra parte, era comum negar-lhe a autoria. E os mui­tos papéis, de­senhados, escritos ou pintados, rolavam pelas enfermarias até seu completo desbotamento e abandono, sendo, tais produções, metáfora da própria vida de seus autores.

 

            Não foi sem muita luta que pessoas como Adelina Gomes, Aurora Cur­sino dos Santos, Bispo do Rosário, Fernando Diniz ou, no Rio Grande do Sul, Cenilda Ribeiro, Frontino Vieira, Luiz Guides, Natália Leite, entre tantas outras em dife­rentes manicômios do Brasil, alcançaram o reco­nhecimento a partir de sua produção artística.

 

            Ao pensar em questões como essa, desde o início, os profissionais da Oficina são movidos pelo desejo de deixar fazer, tendo como princípio o identificar cada produção, desde o risco naquele pedacinho de papel até o gesto feito no chão ou na parede. Nesta nomeação, abriu-se espaço para visibilizar o que de singular acontecia. Assim, frequentadores da Oficina, cada um ao seu tempo, através de sua prática, começaram a di­zer de si, para não cair no esqueci­mento.

 

            Cada participante constrói seu percurso particular. Há aqueles que, como Del­fina, escrevem, mesmo sem saber o alfabeto. Há quem, se de­dique, a rasgar papéis, tecidos, jornais, como Rita, em um movimento que iniciou na infância, ou a fazer círculos, como Dona Iva, mesmo que a tinta do pincel acabe e até que fure o papel. Para eles, o que se produz é uma possibilidade de autoria, um Fui eu que fiz, uma maneira de fazer furos nos espaços totalitários de dis­curso, criando chances de uma narrativa por vir.

 

            E assim os pequenos riscos, na medida das possibilidades de cada um, podem se repetir como no movimento de um balanço, cuja grande sa­tisfação está no seu vai e vem, ou também podem se transformar em projetos artísticos mais audaciosos. Alguns escolhem o desenho, outros, a pintura, a escrita, o trabalho na argila ou na colagem. Ainda outros preferem o vídeo, a fotografia, a perfor­mance ou uma mistura entre to­das essas linguagens. Ao desenvolver seu es­tilo, obra e frequentador muitas vezes se fundem, passando a um re-conheci­mento. Frontino Vieira pintava abstratos, em delicadas pinceladas com guache, que se assemelham a ideogramas da escrita japonesa.

                    

 

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            Desenhos e pinturas podem transbordar, sem limites, conteúdos reprimi­dos e uma vida de desen­contros. Marlene/ Madalena encontra no bordar um mergulho apaziguador. Risca sobre tecidos de algodão e, ao segurar a linha e a agulha, ela também se segura, se assegura.

 

            Os pequenos acontecimentos no suceder dos dias, a partir da aceitação da diversidade, foram dando passagem para a força do imaginário, o que quer que isso signifique. Assim, surgiram os aviões do Ernesto, os relógios sem pontei­ros do sr. Luiz Guides,

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as bolsas da Maria da Glória, os ho­mens de barba do Romeu, os vestidos costurados e bordados pela Ar­manda Nagel, os desenhos-escritura da Cenilda Ribeiro,

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as Vestes Falantes da Solange, os escritos da Marina ou a singeleza da vida no campo representada pela Natália. Entre os muitos outros.

 

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            As mais diferentes produções demonstram a importância do lugar Ofi­cina na vida daqueles que ali estão pela força de seu desejo. Suas mar­cas, os avisos da tristeza ou da raiva, estão lá como gestos de resistên­cia, reservatórios de singularidades e multiplicidades. Apesar das dificul­dades, há uma energia, dada pela força pulsante da criação que, no lu­gar Oficina, tem promovido fe­cundos encontros.

 

            Assim, ao fazer um desenho, seja para guardar, mostrar ou oferecer, es­tes su­jeitos se inscrevem na história para além de um número de regis­tro de prontuá­rio. Nos cabendo, em tudo isto, o lugar de testemunhar a força de uma vida, que ainda é capaz de se fazer, mesmo entre escom­bros. Ao preservar seus trabalhos no Acervo assumimos compromisso de nos colocarmos na condição de fiel, o guardião dos tesouros.

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* O evento - realizado numa live,dia 22 de setembro último, faz parte da programação da 14ª Primavera de Museus (IBRAM) e conta com a participação das instituições Museu de Imagens do Inconsciente (RJ), Museu Bispo do Rosário (RJ), Museu de Arte Osório Cesar (SP) e Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro (RS).

Esse Encontro é uma realização do NuTAL, do Curso de Museologia/FABICO e do Museu da UFRGS, com apoio do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI/UFRGS), do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (PPGMUSPA/UFRGS) e do Grupo de Pesquisa SÉPIA (UFRGS/CNPq).

 

 

** Barbara E. Neubarth: Doutora. em Educação (UFRGS). Bacharel em Artes Visuais (Instituto de Artes/UFRGS). Especialista em Psicoterapia de Orientação Analítica (CELG/Faculdade de Medicina/UFRGS). Psicóloga da Secretaria de Estado da Saúde/RS), no Hospital Psiquiátrico São Pedro, fundadora e coordenadora da Oficina de Criatividade e seu Acervo (1990-2019), atual voluntária do serviço. Membro do NuTAL/UFRGS.

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Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade/ IPHAN/ 2017