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Cyro Martins e Alcides Maya

Léa Masina*

        O regionalismo e a literatura foram questões que sempre me ocuparam. Nos serões da infância, depois do jantar, meu pai lia em voz alta, para a família. Lia capítulos, ou fragmentos de que gostava, e comentava conosco fatos e lembranças derivados das narrativas, quase sempre relacionados a gaúchos, usos, tradições, costumes, lutas e suas circunstâncias. Dele também ouvi os embates de Salambô, de Flaubert e os episódios de Os Lusíadas, de Camões. Mas o que gostava era ler ou dizer de memória coplas do poema Martin Fierro, de Hernández. Este, em especial, bem como outras estórias regionais, escutei com frequência na casa de minha avó, que vivera em estância para os lados da fronteira uruguaia. Esses hábitos familiares despertaram-me cedo para a cultura gaúcha. Mas cresci com a noção de que a nossa literatura restringia-se a narrar façanhas guerreiras, hábitos e modos de vida da campanha, demorando-se em amplas descrições de cenários com umbus, sangas, coxilhas, por onde circulavam cavalos, quero-queros, prendas, chinas, peões, soldados destemidos e brigões. Tal convicção reiterou-se na escola, com Darcy Azambuja, Roque Callage e outros escritores cujas obras aqui circulavam nas décadas de 50 e 60.

        Anos mais tarde, fui trabalhar no Instituto Estadual do Livro, órgão da Cultura destinado a preservar, incentivar e divulgar a literatura sul-rio-grandense. E, para minha surpresa, descobri no meu trabalho vertentes literárias ricas e urbanas. Foi no IEL que li pela primeira vez os romances de Cyro Martins e pude perceber o quanto esses livros diferenciavam-se da grande maioria dos chamados escritores regionalistas. Além disso, lá conheci o Dr. Cyro, pessoa fascinante pela simplicidade e pela empatia que demonstrava no trato com as pessoas. Nos Encontros de Escritores com Estudantes de Segundo Grau, projeto em que eu trabalhava, acompanhei o escritor em eventos no interior do Estado. E nos tornamos amigos. Nessas ocasiões, hospedados em pequenos hotéis, ou até mesmo em um quartel, como ocorreu quando fomos a Santiago do Boqueirão, Cyro era sempre o mais animado. Depois das palestras para os alunos, convocava os parceiros para jantar, adorava um bom churrasco, uma boa mesa e um vinho adequado. Viajar com ele, além do prazer da companhia, era sempre aprendizado. Por isso, havia como que uma disputa entre os funcionários do IEL para decidir quem seria o seu parceiro nessas empreitadas.

        Mas o que diferenciava as histórias de Cyro do Regionalismo então dominante só vim a compreender mais tarde, quando decidi pela obra do escritor Alcides Maya (1878-1944) como objeto de estudo para dissertação de Mestrado e, depois, tese de Doutorado que realizei na UFRGS. A escolha foi sugerida por meu professor Guilhermino Cesar, autor de “História da Literatura do Rio Grande do Sul”. Interessava ao Mestre revisar a obra do grande Acadêmico de Letras, outrora muito valorizada, mas esquecida a partir dos anos 50. Procurei entre amigos alguém que conhecesse a obra de Maya e encontrei dois grandes admiradores: Cyro Martins e Carlos Jorge Appel. Aproximei-me de Cyro e dele recebi generosas sugestões e muitos textos para ler. Mais tarde, através dele e de sua filha Maria Helena, tornei-me amiga de Carlos Appel, grande professor de literatura e editor de Cyro pela Editora Movimento. Anos depois, Appel, realizou a façanha de liberar direitos autorais e publicar a ficção de Alcides Maya. Nos estudos que então realizei, reconheci a afinidade entre os dois escritores: em suas obras, eles não se detém na louvação dos atributos míticos do gaúcho, a coragem, a valentia, o destempero. Ambos rompem com esses arquétipos e suas obras deixam ler o desamparo do homem do campo e as condições de subdesenvolvimento das áreas rurais. Para Maya, o peão-soldado não consegue enfrentar as mudanças do pampa e a ausência de guerras para exercer sua militância. Para Cyro, leitor de Maya, o gaúcho ameaçado pelas transformações da campanha, engrossa cada vez mais os cinturões de misérias que cercam as cidades. Cyro é um escritor politizado. E leva adiante, na ficção, o que Maya observou e escreveu por intuir. Maya era um acadêmico, escrevia com ardência narrativa e linguagem empolada, elitizada e barroca. Cyro era médico e conhecia de perto as mazelas e a pobreza do rancheirio que cerca as estâncias e povoa as estradas, em torno dos bolichos e das vendas. Sua obra, classificada pela crítica como “Romance de 30”, é imbuída de consciência social. Ler seus textos significa conhecer de perto a natureza e as razões de questões sociais importantes que há muito assolam o Estado e o país. As personagens de Cyro, da “Trilogia do Gaúcho a Pé” às de “O Príncipe da Vila” e “A Dama do Saladeiro” não servem como estereótipos ou clichês: são personagens ímpares, singulares, que se instalam na memória dos leitores para nunca mais sair.

        Cyro Martins percebeu, muito cedo, o que diferenciava sua visão do mundo gauchesco do Regionalismo como escola ou movimento que reiterava de modo anacrônico valores regionais. Ele o expressou em vários momentos, através de palestras, entrevistas e ensaios. E nunca esqueceu que a função do escritor é dar voz aos que não a tem.

        Porto Alegre, agosto de 2020

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*Léa Masina, Doutora em Literatura Comparada, Crítica Literária e Ensaísta.