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Coluna CELPCYRO

COLUNA CELPCYRO


 

Com muita satisfação apresentamos o novo colunista da COLUNA CELPCYRO, Luiz Carlos Osório. Ele tem um número considerável de livros publicados (ensaios e ficção) e agora nos traz crônicas.  O Brasil já teve grandes cronistas ( Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos, Drummond, etc) que publicavam seus textos em jornais e revistas e depois os publicavam em livros. Osório inova, pois esses seus escritos nasceram para se constituirem em um livro convencional, mas os tempos são outros e suas crônicas vão compor uma coletânea on line no site CELPCYRO, para a apreciação de nossos leitores. Serão publicadas na sequência em que foram escritas. (MHM)


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Luiz Carlos Osório 

  Dr Luiz Carlos Osório é Médico Psiquiatra. Psicanalista titulado pela International Psychoanalytic Association (IPA). Grupoterapeuta com formação em psicodrama e em terapia familiar (na Itália). Autor de várias obras sobre adolescência, psicanálise, grupos, casais e família. Fundador da GUPPOS( Florianópolis, SC).Autor de várias obras sobre adolescência,psicanálise, grupos, csais e famílias. Professor convidado para palestras e cursos em entidades públicas e privadas do País e exterior.

 


 

 Uma explicação que se faz necessária

 Por que o título? Ora pois, o primeiro pensamento que me ocorreu foi que minhas opiniões podem não interessar a ninguém a não ser a mim mesmo. Ao alcançar os oitenta anos na linha do tempo de minha existência, senti uma imperiosa necessidade de relacionar as opiniões que colecionei ao longo da vida, menos para compartilhá-las com alguém do que pelo desejo de identificá-las com maior clareza e conectá-las com suas origens. Sim, porque opiniões não se formam ao acaso; elas provêm do que ouvimos de outras pessoas, do que lemos nos textos que compulsamos ou do que aprendemos com a própria experiência. Prometi a mim mesmo que se viesse a publicar essas opiniões seria apenas num formato virtual, fácil de ser ignorado como de ser deletado, sem atulhar a natureza com mais lixo como seria se editado em livro físico.

Luiz Carlos Osório 

Gramado, julho de 2020

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 CONVERSAS COM MEU UMBIGO I

A questão da natalidade


Nada mais adequado que iniciarmos por uma opinião sobre se devemos ou não nascer. Há um crescente movimento pelo antinatalismo entre jovens de hoje. Se antes era uma contingência do destino nos tornarmos pais e a esterilidade era vivenciada como uma incompletude em nossas vidas, hoje se discute o não ter filhos como uma opção oferecida pelos métodos anticoncepcionais disponíveis.

Sob as mais diversas razões e justificativas muitos optam por romper com o que parecia uma lei natural: a procriação da espécie. Os argumentos vão desde a preservação da autonomia individual até a alegação que o mundo está superpovoado e com tantos problemas que não consiste em um ato de amor colocar nele novos seres.

Bem, minha opinião é que vale a pena sermos pais. Talvez a tenha extraído menos de minha experiência como pai do que a como filho: meus pais sempre demonstraram que sua vida foi enriquecida com os filhos que tiveram. E se não pude dizer o mesmo como pai foi pelas contingências de um divórcio calamitoso que me privou da convivência com os filhos enquanto crianças.

Ter ou não ter filhos deve ser uma escolha de cada ser humano. Mas essa decisão é condicionada à possibilidade de que todos (e aqui me refiro especialmente aos que não tenham acesso aos conhecimentos e meios para fazer seu planejamento familiar) possam decidir a partir da conscientização sobre as consequências do ter ou não ter filhos e da possibilidade de que sejam sustentados se não possam fazê-lo.

Aborto? Para mim, inteiramente justificável em casos de estupro, malformações do feto quando detectadas no início da gravidez ou risco de vida da mãe. Mas ainda assim uma decisão da mãe quando o desejar, por razões suas, sejam quais forem. E sempre com o indefectível apoio do corresponsável pela fecundação.

Métodos anticoncepcionais? Se à mulher cabe a decisão de um aborto entendo que a anticoncepção é responsabilidade, sobretudo, dos homens. O uso da camisinha não traz consequências indesejáveis como possam advir para a mulher o uso de dispositivos intrauterinos ou da pílula. Logo...

E métodos anticoncepcionais sempre, sempre serão preferíveis ao acaso de uma gestação indesejada ou um aborto.

Bem, talvez a sexualidade humana do futuro torne opiniões como essas desnecessárias e obsoletas. Clonagem a partir das próprias células para quem, homem ou mulher, quer ter descendência? Não tão remota possibilidade nos tempos de acelerados progressos na tecnologia da reprodução humana em que vivemos.

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CONVERSAS COM MEU UMBIGO II

A questão da finitude


Vamos ao outro extremo da existência. Se temos opiniões sobre o que diz respeito ao surgimento da vida é óbvio que também devamos tê-las sobre seu término. As que vão abaixo já externei em outra ocasião numa publicação intitulada “Considerações nada mórbidas sobre a própria morte”.

Até os trinta anos, a própria morte - a não ser para os que tiveram a experiência de quase morte e retornaram à vida - é um conceito abstrato, que se presta a reflexões filosóficas, se tanto; mas depois dos sessenta passa a ser uma ideia que nos acompanha como a iminência de algo tangível e real, cada vez mais próxima. E quando chegamos aos oitenta não há dia em que não nos ocupemos dela em nossas mentes, o que não é algo necessariamente ruim, desde que para nos lembrar de viver intensamente cada dia como se fosse o último e usufruir os prazeres que a existência ainda nos proporciona, como o convívio com familiares e amigos queridos.

A vida cansa, é verdade. Não por acaso dizemos dos defuntos “finalmente ele descansou!” Imagine só acreditar que reencarnamos: toda aquela trabalheira de nascer, ficar dependente de outros seres humanos para sobreviver e ao final voltar a ser dependentes outra vez. Para mim autonomia é essencial e uma vida só chega!

Se ao menos se pudesse escolher a forma de morrer! Meu ideal de morte seria num acidente aéreo sobre o Atlântico regressando de umas férias na Europa. Um colega e amigo perdeu a vida com mulher e filha nessas condições, mas foi na ida para as férias. Desejaria que fosse no regresso, depois de usufruir minha última vilegiatura, como diriam os portugueses. E sem deixar para os parentes o incômodo de providenciar velórios, enterros e todos os demais rituais que cercam o óbito de alguém. Voltar ao seio da natureza no âmago do oceano, não é muito mais higiênico e poético?

A morte nunca me atemorizou. A pré-morte, sim. Isso de ficar preso a tubos que entram por todos os orifícios do corpo, num leito de hospital, com uma doença terminal... cruz-credo, como diria a tia Anastácia (lembram do sitio do Picapau Amarelo?).

Sou a favor da eutanásia. Infelizmente num estado terminal não teria recursos para viajar a países onde ela é permitida e lá me finar ao som, por exemplo, do coro a boccachiusa da Madame Butterfly. E depois ser cremado, obviamente. Nada de lápides, embora pense que numa lápide virtual poderia ser inscrito : “Soube ser um amigo leal”. Basta. É o que de melhor fiz na vida.

Tive algumas virtudes e muitos defeitos. Tratei de minimizar os defeitos e potencializar as virtudes. Se consegui, não sei. Também não faz diferença para a posteridade. Entre a primeira inspiração e a última expiração o tal périplo existencial de quem tem a consciência, como eu, de que não fez falta para ninguém nem acrescentou algo de realmente importante à bagagem dos seres humanos.

 

Vida da mente após a morte do corpo? Só se for para não desperdiçar toda essa bagagem de conhecimentos, pensamentos, sensações e sentimentos que colecionamos ao longo da existência. Mas, que valor isso teria noutra dimensão? Não, prefiro aceitar a finitude humana ao cabo de uma vida só. O resto é a fútil pretensão à imortalidade. Que a noção de Deus alimenta nos crentes. Mas isso é tema para outro texto.

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CONVERSAS COM MEU UMBIGO III

E o homem inventou deus à sua imagem e semelhança


Meus (improváveis) leitores decerto vão se decepcionar, talvez até se escandalizar, com o texto herege que agora escrevo aqui. Mas prometi a mim mesmo que seria honesto com eles e coerente até a medula com o que penso. Se há alguma vantagem que a idade nos traz é a autorização para deixarmos de ser “personas”, tirar a máscara para agradar a plateia e ser a pessoa autêntica que sempre escondemos atrás dela. Aliás - verdade seja dita - ao longo da vida pouquíssimas vezes precisei me ocultar sob o disfarce de um “falso self” pela pressão das circunstâncias. Se não ousei ser mais irreverente e transgressor foi por incompetência para sê-lo e não por falta de coragem.

O homem inventou Deus porque tem medo da morte e não se conforma com sua finitude. Simples assim. E essa criatura - que supostamente teria criado o homem, mas na verdade foi por ele criado - carrega todas as imperfeições humanas, cruel e vingativo em suas ações e omisso quando se fez necessário. Se não, vejamos.

Que Deus é este, de infinita bondade como querem nos fazer crer, cujas criaturas padecem tanto? Por que uns nascem feios ou aleijados, numa sarjeta ou rejeitados por quem os pariu, enquanto outros vêm ao mundo bonitos, saudáveis e fadados a usufruir de todas as benesses do corpo e do espírito? Qual o crime do recém nascido para ficar à mercê de sua própria sorte e abandonado por quem o gerou? Por que tamanha injustiça?

Não há crueldade na inquisição? E omissão da Igreja, que se diz representante de Deus na Terra, quando na II Guerra Mundial tolerou e de certa forma foi cúmplice do nazi-fascismo que atormentou a humanidade?

E se Deus criou tudo, não criou também o pecado?

Tantas outras questões similares poderia aqui levantar para questionar a figura idealizada de um Deus que tudo sabe, tudo pode e é de uma infinita misericórdia. Mas quero me ater à questão proposta na afirmação de que criamos Deus para compartilhar de sua suposta imortalidade, para fugir de nossa impotência diante da finitude e reafirmarmos nossa augusta presença entre os bilhões de seres que habitam o planeta.

Quando alguém sobrevive a alguma tragédia que vitimou milhares de outras criaturas dá “graças a Deus” como se houvesse sido por Ele escolhido para continuar existindo. E os demais, por que não obtiveram essa graça?

Deus é a representação de nosso narcisismo, a extensão do Poder que ambicionamos para nos sobrepor aos demais.

Crer em Deus, seja em que religião se sustente essa crença, não tornou a humanidade melhor. Continuamos a matar em seu “santo” nome nas guerras que travam as facções religiosas. E ao invocá-lo nos livramos da responsabilidade de assumir nossos atos.

Não, não vou criar eufemismos para evitar ferir suscetibilidades, dizendo-me agnóstico. Sou Ateu mesmo, assim com maiúscula para sublinhar minha condição de indivíduo que não acredita nessa entidade divina com que através dos tempos o ser humano vem driblando seu medo do desconhecido e a certeza de sua finitude.

O respeito à natureza ou aos nossos semelhantes não pode se alicerçar no temor à vingança divina; precisa ser compreendido e praticado pelo prazer que nos proporcione e a consciência de que sem tal respeito não alcançaremos a Ucronia sonhada. Ucronia? Que palavra é essa? Justifico noutro texto a invenção desse neologismo.

Para finalizar, o que eu gostaria de perguntar a Deus se ele existisse?

Começaria pela pergunta que Vinicius de Moraes faz em uma de suas canções: “Se é para desfazer porque é que fez?”.

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CONVERSAS COM MEU UMBIGO IV

Implicâncias com as crenças alheias

 

Desde que me conheço por gente coleciono interrogações e implicâncias com Nosso Senhor. Nem sempre fui muito adequado em abordá-las com seus seguidores, sejam lá de que religiões fossem.

Lembro que estudando num colégio de confissão protestante escrevi uma crítica cinematográfica no jornalzinho do grêmio estudantil sobre um filme francês que abordava as dúvidas existenciais de um padre. Como os adolescentes intelectualóides de meu tempo, eu era metido a palpitar sobre temas filosóficos ou que tais. E como pouco soubesse dizer sobre os méritos técnicos do filme aproveitei para desancar a inconsistência da fé católica do personagem religioso com o ardor anticlerical que me acometia naqueles verdes anos.

Aplausos de alguns colegas e professores do colégio, que logo me viram como uma promissora reedição provinciana de Calvino ou Lutero. Mas tão logo, noutro artigo, disse que os protestantes haviam apenas trocado um deus de barbas brancas por outro de barbas ruivas. Choveram admoestações contra o sarcasmo de minha alusão às origens germânicas dos reformistas, que também eram as dos diretores da escola.

Bem, depois disso deixei de lado por longo tempo minhas idiossincrasias com o carolismo, até porque vim a casar com a sobrinha de um arcebispo e em nome da harmonia familiar arrefeci meus ímpetos iconoclastas Casamento desfeito, o furor anticlerical reapareceu vez por outra, quiçá abrandado pela queda da igreja católica no ibope das religiões. Mas os questionamentos persistiram. E as implicâncias também. Mesmo quando saía do território da realidade e imergia no da ficção, como em um texto romanceado (“Mudar Juntos”), onde criei uma alegoria lúdica através de conversas fantasiadas do personagem com figuras de nosso imaginário sobrenatural, nomeadamente deus e o diabo.

Isso me recorda a boa e ingênua irmã Teofrida, enfermeira chefe do serviço de radiologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, nos idos dos anos sessenta. Irmã Teofrida, a quem o Deus em que acreditava a castigou, não por ter pecado contra a castidade, mas por não tê-lo feito: morreu com um câncer de colo de útero, segundo as estatísticas proporcionalmente muito mais comum entre as castas e virgens irmãs de caridade do que entre as mulheres que pariram.

Irmã Teofrida que dizia que meu pai era um homem tão bom que Deus, na sua misericórdia, haveria de fazer uma exceção e permitir-lhe o acesso ao paraíso. Ao que meu pai irreverente lhe respondeu: - “A senhora deseja que eu me afaste de meus amigos depois da morte, já que todos vão estar no inferno? E já pensou como um homenzarrão como eu iria ficar ridículo de asinhas de anjo?”.

Irmã Teofrida, em certa ocasião indo comigo pelos corredores da Santa Casa ao encontro de meu pai no Serviço de Radiologia, quando passou pela porta da capela me deu tal puxão pela manga do avental que quase me derrubou, na tentativa de me fazer ajoelhar e acompanhá-la na reza. Pobre Irmã Teofrida! Já que não conseguira converter o pai, quem sabe converteria o filho. A frustramos os dois, sem dúvida.

Na geração de meu pai, ele e outros descrentes, usavam um eufemismo: diziam-se agnósticos em vez de ateus como eram. Uma hipocrisiazinha para não ofender pacientes e amigos que não aceitariam vê-los, homens bons e caridosos que eram, como hereges engrossando as hostes de Belzebu. 

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CONVERSAS COM MEU UMBIGO V

O homem e suas instituições 

 

Os homens criam suas instituições para abrigar suas crenças, ideologias e propósitos sociais; mas por que será que nelas ingressam com seus piores defeitos e deixam fora delas suas melhores qualidades? Isso acaba por transformá-las numa verdadeira caixa de pandora albergando todos os males do mundo.

É curioso que no mito, quando Pandora deixa escapar os males do mundo fica dentro da caixa a esperança, que também pode ser vista como um mal da humanidade, pois traz uma ideia superficial e quase sempre equivocada acerca do futuro.

Será que estamos nos iludindo com a falsa esperança que um dia alcançaremos a era das ucronias (olha o neologismo de novo – já, já noutro texto explico do que se trata) e o melhor do ser humano finalmente virá à tona para sepultar toda a maldade existente?

Se as instituições são o continente de nossas imperfeições humanas, como a tendência dos grupos sociais é institucionalizar-se para viabilizarem seus objetivos, será que todo o processo de institucionalização é nocivo?

Não acho que se possa dizer isso. A instituição - seja ela a família, a escola, uma empresa ou o próprio Estado - é o arcabouço, o esqueleto do corpo comunitário, o que, enfim, o sustenta e possibilita o exercício das funções sociais que dão sentido ao périplo existencial de todos nós. No entanto, me parece que as instituições, assim como os seres humanos, “adoecem”. E a doença institucional se instala a partir do momento em que ela, a instituição, passa a operar como mero instrumento para o exercício do poder. Em outras palavras, quando o meio passa a ser um fim em si mesmo.

 A instituição psicanalítica é um microcosmos onde podemos examinar tudo isso que considero o caráter perverso das instituições. Quando nela ingressei ingenuamente achei que ali estaria a salvo de todas as picuinhas e maldades que presenciara nas organizações a que até então pertencera. Tinha uma visão idealizada dos psicanalistas como seres que por dedicarem sua vida a examinar o que se passava na sua e nas mentes alheias estavam imunizados contra sentimentos malsãos como inveja, ciúmes, ódios, falsidade, desejos de eliminar rivais ou competidores. Ledo engano! Em nenhuma outra entidade encontrei tanta hipocrisia e tanta politicagem rasteira visando causar opróbrio ao próximo. Foi por isso que me afastei da instituição para exercer meu ofício de psicanalista fora do círculo asfixiante e do controle da cúpula dirigente da sociedade psicanalítica.

 Algo dentro de mim morreu como psicanalista e isso é irreversível. Uma profunda, enorme decepção, como quiçá tenha sido a dos cristãos ao ver o rumo que o Vaticano estava dando à primitiva fé, a começar pela busca e ostentação de riquezas, tão em confronto com a simplicidade de Jesus, talvez o primeiro e mais notável socialista. Acompanhei a caça às bruxas que se processava na minha sociedade, onde à força dos argumentos se contrapunha o argumento da força. A instituição se mostrava o terreno propicio para acolher maledicências, injúrias, calúnias, desprezo e humilhação aos oponentes, enfim, verdadeiro caldo de cultura para o mais desprezível comportamento humano. E a opressão e tirania ideológica a que os candidatos a psicanalistas são submetidos acaba por torná-los eles mesmos, por identificação, os tiranos e opressores na medida em que assumem cargos diretivos nas sociedades psicanalíticas.

 Aquilo que chamamos a formação psicanalítica é um “rito de iniciação”. E qual é a função de um rito de iniciação senão buscar homogeneizar o grupo social através da cooptação dos mais jovens aos valores da geração precedente?

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CONVERSAS COM MEU UMBIGO VI


"Num momento especialmente inspirado, Luiz Carlos Osório oferece reflexões filosóficas - que levam a pensar no desperdício de vida que resulta ser nossa existência, num cotidiano insonso, mecânico, insalubre, amortecedor de fantasias, embotador de criação..." (MHM)

UCRONIAS (até que enfim elas!)

 

Só as viagens da imaginação permitem que se navegue sem rotas pré-determinadas nem destinos convencionais. Portanto, decidimos, capitaneando nossa nau, sem naufrágios ou tragédias que lhe alterem a chegança aonde a fantasia a conduz, ancorar onde o espaço se fez tempo para gestar o futuro nos alicerces do passado.

Utopias?... Não! Ucronias, isso sim! É um momento ideal, não um local paradisíaco o que estamos sempre a buscar. Ur não está na Caldéia, onde o mito o colocou, e sim num tempo passado, presente ou futuro, em que a felicidade deixou de ser ilusão para se tornar a realidade de um instante, tão passageiro como definitivo porque assim o quisemos nesse brincar constante de ‘esconde-esconde’ que fazemos com a vida, para que a possamos reencontrar com a mesma e repetida surpresa no dobrar as esquinas de quaisquer idades.( leia mais)

Realmente a globalização acabou com as utopias, como apregoam os arautos da pós-modernidade. Não há hoje canto do mundo onde se possa viver em paz, alienados dos embates que a estupidez humana protagoniza, da burocracia que nos atormenta e consome parte significativa de nosso périplo vital à imolação cotidiana no altar dos Deuses Econômicos, que presidem todos os universais cultos do mercado de consumo, passando ao largo de tantos outros males que infernizam a contemporaneidade. Não há mais espaços territoriais onde se possam implementar sociedades que tangenciem a perfeição na fruição existencial alicerçada no gozo da liberdade pessoal, sem colidir com o direito alheio.

Restam, contudo, as ucronias, projetadas no tempo e não mais num ‘topos’ geográfico. Um devir que hoje é abstração ficcional, mas amanhã poderá se constituir em realidade vivenciada, se a conação humana, este sincretismo entre vontade e ação, providenciar sua concretização.

Por enquanto sonhemos. Fantasiemos um tempo futuro em ucronias, assim como o fez Júlio Verne, antecipando na ficção o que o progresso tecnológico veio a tornar possível na realidade. E não só criemos hipóteses de prováveis conquistas no campo do conhecimento humano que ampliem o universo material, como também nos permitamos imaginar rotas evolutivas que acrescentem valor intrínseco à condição humana.

Pois são chegados os tempos de que se falavam. Não é um lugar onde a felicidade habite, um oásis onde a condição humana encontre seu repouso após tanto espernear e ranger de dentes gerações afora. Nada que lembre a terra prometida, utopia nenhuma. É como uma construção, sim, mas de séculos transcorridos e não de espaços ocupados. E o momento é esse, o que temos para usufruir o que nos é dado pelo dom de existir.

Já não há sentido em falar-se de individualidades quando a concórdia se instala; não que se esteja a abolir identidades, mas com o advento daucronia prescinde-se de assinalar singularidades. Tal como com os corpos celestes, quando na infinita dança cósmica em que se agitam, já não importa que configurações tenham - se estrelas ou planetas, cometas ou meteoros, nebulosas ou galáxias - ao atentarmos para a fantástica teia de relações que estabelecem para compor a harmonia que transcende suas realidades físicas.

Nos umbrais daucronia tudo é cambiante. E, como dizia Demócrito, ‘só o que permanece é a mudança’, por isso nunca estamos a atravessar o mesmo rio, acidente geográfico de águas que passam e lhe alteram o curso, como os momentos vividos alteram o curso de nossas existências. Já não seremos os mesmos depois de encontros onde laços afetivos se teceram para redirecionarem nossos destinos.

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CONVERSAS COM MEU UMBIGO VII

A questão político-ideológica

 

“Os sistemas, quer educativos quer políticos, não se transformam miraculosamente; só se modificam quando há uma transformação fundamental em nós mesmos. O indivíduo é de primordial importância, não o sistema; e enquanto o indivíduo não compreender o processo total de si mesmo, nenhum sistema, seja de direita seja de esquerda, trará ordem e paz ao mundo”

Se há uma opinião que endosso inteiramente é essa expressa num fragmento de uma obra do filósofo hindu Krishnamurti. Mas, convenhamos, é pouco pragmática e distante da possibilidade de torná-la viável na época em que vivemos. Por isso a deposito no compartimento da mente que destino a minhas ucronias.

Quando me encontrei com esse texto outras influências sobre meu pensamento político já haviam ocorrido, todas elas convergindo para o rechaço ao autoritarismo, provenha de onde provier. Por isso, ao contrário de muitos jovens contemporâneos meus, nunca me deixei seduzir pelo canto de sereia das promessas do socialismo de estado, ainda que abominasse o capitalismo em todas as suas variantes.

As palavras carregam o sentido imanente do que se propõem representar. O capitalismo privilegia a acumulação de capital, o que inevitavelmente desemboca nos males dele decorrentes: ganância, corrupção, luta pelo poder, etc. O socialismo privilegia o social e desde logo me inclino para as perspectivas que oferece na práxis política.

Como dizia Krishnamurti, os sistemas não se transformam miraculosamente e parece que as revoluções não conseguem abortar os vícios e defeitos dos sistemas políticos que querem substituir. Assim, a autocracia, o desprezo pelos direitos alheios e a crueldade do czarismo permaneceram no comunismo soviético.

O comunismo sempre me pareceu uma perversão do socialismo. Quando hoje constatamos a falência do comunismo na matriz soviética e suas replicações pelo mundo afora e lembramos as abomináveis consequências dos regimes nazifascistas contra os quais, aliás, o comunismo se insurgiu, a conclusão é que não há nada pior que uma ditadura de direita que uma de esquerda. E vice-versa.

Os líderes comunistas eram tão cruéis, déspotas e sanguinários como os czares que os antecederam, mostrando que a História não dá saltos.

O comunismo nunca foi socialista. O poder continuava nas mãos de uns poucos e consequentemente as benesses financeiras também.
“Malgré tout” o mundo continua avançando em direção a um socialismo expurgado dos defeitos da práxis de suas origens. Passinho pra frente, passinho pra trás. Mas humanizando-se e sob a liderança de mentes mais sábias e éticas. Assim o vemos na Nova Zelândia, nos países escandinavos e até em nosso pequenino vizinho Uruguay.

O capitalismo só dividiu os lucros entre os mais ricos, nunca realmente beneficiando aos mais pobres. Daí o interesse dos capitalistas em açambarcar o poder que lhes garante a continuidade dos privilégios e dos ganhos financeiros.

Churchill disse certa vez que a democracia era a pior forma de governo, com exceção de todas as demais. Pois se as palavras carregam o sentido imanente do que se propõem representar, como assinalávamos acima, por trás da ironia do eminente estadista está uma verdade: a democracia não é a melhor forma de governo por se tratar da tirania do povo (demo – povo; cracia – tirania), o que é diferente de demarquia (demo – povo; archos-governo). Logo, governo do povo, pelo povo e para o povo não é democracia e sim demarquia, para sermos fiéis à etimologia.

 

O Estado: a violência que vem de cima


O Estado, que nasceu com o propósito manifesto de gerir a “res publica”, sempre esteve vocacionado para o exercício da dominação de uns poucos sobre muitos e em proveito dessa minoria que detém o poder. Desde a mais remota antiguidade, seja qual for a ideologia que o inspire ou o regime que o sustente, tem ele se caracterizado, em última instância, pelo estabelecimento de oligarquias privilegiadas e de maiorias exploradas, negligenciadas ou, quando menos, colocadas a serviço dos interesses de quem está no poder.

Para exercer em toda a plenitude essa prerrogativa o Estado criou dois braços armados: o exército (teoricamente para uso externo, para defender a tal da soberania nacional,mas no âmago das nações também para sufocar movimentos revolucionários que se oponham à oligarquia no poder) e a polícia (para uso interno,teoricamente para a manutenção da ordem pública e segurança dos cidadãos “de bem”, mas nem sempre capazes de discriminá-los dos delinquentes; quando não os próprios policiais engrossando a fileira desses).

Exército e polícia foram criados à sombra da cultura da violência e não há como negar que ao longo de sua história tem se esmerado em praticá-la com requintes de crueldade. A tortura, “invenção” que remonta aos primórdios da humanidade, permeia a práxis dessas duas instituições “desde sempre”. Sem esquecer que também a Igreja, por motivos pios, a exerceu com extraordinário denodo nos tempos inquisitoriais, quando poder secular e temporal misturavam-se e eram sustentados a “manu militari”.

Em suma, desde as monarquias teocráticas da Antiguidade até as democracias representativas pós-Montesquieu, o Estado vem exercendo sua função repressora através de práticas explicita ou implicitamente violentas e contra as quais cidadãos pacíficos ainda não contam com recursos para a elas contraporem-se.

“E a Justiça?” indagarão os leitores, ”não é justamente sua mais nobre função a defesa dos fracos e oprimidos”? Ora, a justiça, ao longo de sua evolução, parece ter aprimorado seus recursos para garantir ao acusado o mais amplo direito de defesa, mas pouco acrescentou para proteger e aliviar os padecimentos das vítimas. E quando chega a fazê-lo, pelo efeito procrastinatório das medidas em favor dos direitos dos acusados, muitas vezes as vítimas nem mesmo tem o benefício do resgate de sua dignidade ofendida ou ressarcimento de prejuízos sofridos por já haverem deixado o mundo dos vivos!

Talvez uma das peculiaridades dos tempos em que vivemos é a “democratização”da violência, com a proliferação de poderes paralelos ao Estado e que o confrontam com igual fúria e sofisticação destrutiva. As organizações terroristas e a máfia, em seus múltiplos desdobramentos, aí estão para confirmá-lo. Mas quando se espera que o Estado providencie o esvaziamento da violência retaliatória para sustar essa disseminação planetária de práticas homicidas vemo-lo aprimorando seus instrumentos repressivos, estimulando a escalada de violência que aflige o espírito humanitário que ainda resiste, em bolsões isolados, à sanha genocida do Estado e seus delinquentes contraventores.


Sindrome do avestruz (crônica de uma tragédia anunciada)


A sociedade brasileira está refém do crime organizado. Todas as tentativas de controlá-lo até agora foram infrutíferas. As vítimas da violência institucionalizada em nosso meio ultrapassam às dos conflitos no Oriente Médio. O feminicídio e o extermínio de grupos vulneráveis, como crianças e idosos, é a ponta do iceberg dessa tragédia que se abate sobre uma população que vive atemorizada com se estivéssemos numa guerra civil de vastas proporções como a que atinge asnações do Oriente Médio.

A bandidagem impera e armada pelo narcotráfico impõe-se às forças policiais e militares impotentes diante de tanto poder de fogo. Com as devidas ressalvas a situação compara-se a da guerra do Vietnam, onde com todo seu poderio bélico os Estados Unidos capitularam diante dos vietcongs. Lá, uma retirada e uma derrota humilhante. Aqui, o que nos espera?

 

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* Luiz Carlos Osório é médico psicanalista e escritor.