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Cyro Martins os anos decisivos - Fábio Varela

CYRO MARTINS os anos decisivos

Fábio Varela Nascimento

 

 

Ao atravessar a porta do Colégio Anchieta, naquele março que se mostrava quente e abafado na Porto Alegre de 1920, o pequeno “pagão crioulo” da campanha, que não conhecia o Pai Nosso e, muito menos, os jesuítas, mudou de forma irreversível o rumo de sua vida. A partir daquele momento, além daquela porta, não eram apenas as capelas, os padres, as missas matutinas e os estudos que o esperavam, não era só o guri livre pelos campos que começava a se tornar lembrança. Dentro do prédio escuro de dois andares que se postava com ar de respeito nos números 203, 205 e 207 da Rua Duque de Caxias, havia a educação que, até então, ele não conhecia. Dentro do internato, estavam, junto com a religião, a disciplina e a ideia humanista, o português, o francês, a aritmética, o latim, o inglês, o alemão, as ciências e a literatura. Lá, entre as salas de aula, o refeitório, a sala de estudos com o armário de livros, os banheiros, o dormitório e o plátano do pátio, se escondia um mundo completamente novo para o guri que saíra às pressas de sua cidade, chamada Quaraí, quase colada ao Uruguai, e viajara pelo Rio Grande do Sul de Sudoeste a Leste, balançado nos bancos duros do trem que fazia a linha Fronteira-Capital.

A entrada no Colégio Anchieta representou um ponto de inflexão na formação do menino Cyro dos Santos Martins, mas não foram poucos os caminhos e os descaminhos que o levaram, com 12 anos incompletos, à porta da escola que, em 1920, recebia sua primeira turma de internos. A viagem até o ginásio dos jesuítas começou antes e foi bem maior do que os 596 quilômetros que separam Quaraí de Porto Alegre.

A jornada teve seu início em outra sala de aula, sem um professor religioso e sem a disciplina do colégio interno. Ainda na campanha, aos 6 anos, no Garupá, interior da cidade natal, Cyro conheceu as primeiras lições. A docente responsável por esse contato inicial com o mundo das letras e dos números foi a Dona Gringa, uma “senhora de bigodes pretos, cerrados, crescidos, aparados, mas impositivos”. A descrição de Dona Gringa, feita por Cyro no livro Rodeio, quase cinquenta anos depois daquelas aulas, não mostra a lembrança dos ensinamentos da professora improvisada, que devia lecionar pelo motivo de que seu marido, Saturnino da Costa Leão, a Onça do Garupá, fosse o subintendente do distrito. A imagem de Dona Gringa, a imagem de seus bigodes eram as memórias que cabiam a um menino de seis anos, interiorano, facilmente impressionável e desacostumado com pessoas de fora do círculo familiar.

Dona Gringa, no entanto, não foi a única docente improvisada que cruzou pela formação de Cyro. Houve, também, Lucílio Caravaca. As lembranças que envolvem Lucílio são mais trabalhadas por Cyro e não estão contidas em apenas umas poucas linhas de sua obra. A figura de Lucílio deixou marcas mais profundas na memória e na produção do escritor e, assim, se torna mais fácil rastrear essa parte da formação de Cyro. Antes, porém, é preciso entender como o caminho do menino de dez anos se cruzou com o de outro professor arranjado.

Em 1916, Cyro fez a primeira mudança de sua vida, ficando distante pouco mais de 30 quilômetros do Garupá e dos bigodes de Dona Gringa. Nesse ano, o pai de Cyro, Appolinário dos Santos Martins, um comerciante e pequeno proprietário conhecido como Seu Bilo, levou a família – a esposa Felícia, os filhos Ivo, Cyro, Alda, Iná – e os agregados, como a Perfeita, o Leonço, o João Martim, para o Cerro do Marco, “uma elevaçãozinha modesta, típica daquela região do pampa”, em outra parte do segundo distrito quaraiense. Montado em um gateado velho, Bilo ponteava o clã dos Martins para outro lugar porque havia “acenos de fortuna inflamando sua cabeça”. No Cerro do Marco, perto da Estrada Real e de um corredor, Seu Bilo iria administrar um bolicho, um armazém, que, por sua localização próxima à estrada, também ofereceria pouso aos que viajavam pelos campos do interior. A mudança dos Martins foi uma decisão exclusivamente paterna, pois, naquele Rio Grande do Sul do início do século XX, era o patriarca o senhor dos rumos da família. O pai decidia, a mulher, os filhos e os agregados iam de arrasto, na cola da decisão.

Ainda que a atitude de Bilo pareça ditatorial, nas referências que fez ao pai, em textos de ficção e de não ficção que apresentam tom autobiográfico, não aparece nenhum déspota familiar. Cyro destacou que Bilo era um “homem de caráter prático e de cabeça imaginosa”, que percebia a mudança dos tempos e queria estar preparado para enfrentá-la. O caráter prático era essencial para uma pessoa como Bilo, que trabalhava com o comércio, atividade de fundamentos simples – dinheiro para cá, mercadoria para lá. Porém, é o traço da “cabeça imaginosa” que chama a atenção no desenho que Cyro faz do pai. Foi esse traço que os levou à saída do Garupá. Bilo tinha a cabeça inflamada pela possibilidade de fortuna. Não era a imaginação que efervescia em sonhos de riqueza e queimava a cabeça daquele chefe de família com mulher, filhos e empregados que dependiam de suas decisões? Aqueles sonhos não deviam ser egoístas. A prosperidade de Bilo não seria apenas sua, seria de Felícia, Ivo, Cyro, Alda e Iná; seria de Perfeita e de outros agregados. Para alcançar os acenos de fortuna, era preciso se mover e o movimento não poderia ser somente de Bilo. Era necessário que todos se mexessem e se adaptassem, pois o mundo familiar e o mundo externo, que transbordava os limites do Garupá, não eram mais os mesmos.

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NASCIMENTO, Fábio Varela. Cyro Martins – os anos decisivos (1908-1951). Porto Alegre: Movimento, 2019, p. 22-24.