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Memórias Inundadas de Sentimentos | Imprimir |  E-mail
Escritores Gaúchos - Vitrine

Memórias Inundadas de Sentimentos*

 

Eliane Tonello**

 

 

 

É final de outubro, os raios inclinados do sol evidenciam o colorido dos jardins e os longínquos campos de pasto. A semana fora com chuvisco, alternada com curtíssimos períodos de sol, quando as roupas puderam balançar ao vento no varal de nylon azul. Os sabiás já apresentam suas diferentes melodias, saltitam entre um galho e outro das limeiras.

É dia 31, dia de colheita.

A mãe, já com alguns fios de cabelo brancos, respira ofegante quando se movimenta para jogar o lençol na cama. O almoço que fez para a família não agradou. Mas, calados, eles limparam o fundo das panelas sobre a toalha xadrez. Um por um, levam o prato até a pia e saem. A mãe tira a sesta e depois, a passos curtos, passa por entre as parreiras e vai até a lavoura, não muito longe da casa. O cachorro, Lobo, com fama de valente, a acompanha, assim como a gata de nome A Cor da Gata. A cada passo a mãe pensa que seria a primeira vez que não recorreria às mãos habilidosas da parteira que auxiliara no nascimento de quase todos os filhos. Agora, a cidade é outra. Só há dois meses tinham feito mudança, preferia ser atendida no hospital.

A mãe só observava os filhos transportando a palha que em breve iria ser amassada na lona e eu, no meu mundo de caverna, sinto somente barulhos, batidas.Fico encolhidinha, com o dedo na boca e me acalmo. Essas batidas intercaladas e contínuas ecoavam na terra, quando meu pai, com o manguá, antigo instrumento utilizado pelos camponeses em colheitas, batia na palha seca, onde estalavam as sementes de fava.

Há alguns dias a mãe vinha indisposta, com dificuldade até para dormir, e eu, impaciente por estar bem próxima de suas costelas. Agora, passada meia-tarde, a mãe sente os olhos escurecerem e a dor intensifica no baixo ventre. Enquanto procura se apoiar nas sacas de sementes escorrem-lhe gotas mornas e avermelhadas por entre as pernas. Sinto uma sensação estranha pelo corpo, uma pressão no peito e na cabeça. O ar fica escasso. Acho que está encerrando meu tempo por aqui. Prontamente a lona e o manguá são recolhidos junto com as sementes e, em apenas um lance, são jogados sobre a carreta de tábuas lisas. Os animais, experientes, já se encontram em prontidão, até parecem intuir que eu estou prestes a nascer. Com passos mansos percorrem o caminho lomba abaixo, delicadamente, chegam bem próximos da casa. A mãe prepara-se para descer apoiada em um dos meus irmãos que a leva até o chuveiro. Na espera, juntamuma toalha clara que fora reservada e na mala verde e branca colocam roupas grossas. Iniciamos longo percurso com curvas, elevações e baixadas. O tempo pareceu eterno e o desconforto imensurável. Enfim, chegamos à cidade onde os paralelepípedos cobrem a estreita avenida. A sala de parto estava à nossa espera. Nesse momento, com uma forte pressão na cabeça, sinto que, de agora em dianteseria por minha conta. Retomo as forças e, com a máxima rapidez para a corrida inicial, dou aquele impulso. A luz bate em minha retina,incômoda; o respirar arde profundamente. Mergulho num mar de angústia e choro. Sinto frio, mas logo o arrepio cessa sob um lençol quentinho. Sinto medo enquanto a enfermeira desobstrui minhas narinas e desliza com pano macio em meu corpo. Entre umsussurro, me sinto como se estivesse perdida, tento pegar o céu. Só me acalmo quando reconheço a voz da minha mãe, no acalanto dos braços dela, momento que nunca mais voltará. Ela se emociona quando nossos olhares se encontram. Ao notar a cruz na parede, suspira e beija minha bochecha rosada. Com a voz sussurrada pergunta: “está com fome?” O seio surge na minha frente. De início ignoro-o, mas, aos poucos, encosto nele e percebo que o bico está ótimo. O sono vai chegando e nós duas adormecemos. Dizem que o sono extingue as mazelas naturais e as dores do coração. Dormir, talvez sonhar!

Na madrugada, choro e enquanto ninguém aparece chupo o dedinho. Ouço barulhos, só mais tarde entenderia que era o sono profundo da minha mãe. Com fome, choro mais alto e fico com raiva. Só a enfermeira escuta, me pega no colo e leva até a fonte do prazer. Com o tempo aprendi que desta forma ele, o leite, viria quentinho. No silêncio da madrugada, repouso no cheiro dos braços da mãe. Só no ar matutino, no cantar do galo, que somos despertadas para o começo de uma nova vida. Já é o dia de todos os Santos!

 

*Trabalho apresentado na Jornada anual de 2015 da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul (SPRGS)

 

** Eliane Tonello

Psicóloga CRP 07/21706, Psicoterapeuta, Especialista em Psicologia Hospitalar,

Coordenadora do Comitê de Psicologia da Saúde e Hospitalar na SPRGS, Escritora.

Atendimento: Avenida Palmeira 27/605 e GAEPSI -   eliane.tonelo@gmail.com