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Os filhos do campo doce-amargo  E-mail
Fortuna Crítica - Artigos

 

José Francisco Botelho[1]

 

1.

Hoje, há quem diga que os gaúchos nunca existiram – porém, atesto que conheci esses fantasmas reais, quando era pequeno, nos recessos do Alto Camaquã, entre velhas estâncias abandonadas e taperas onde ainda vivia gente, naquele imenso, infinito universo-limite que é a Fronteira sul do Estado. Eram andarilhos que ora apareciam, ora sumiam ao sabor da geografia, no descompasso dos campos; alguns não tinham pouso fixo e eventualmente desapareciam para sempre, tragados talvez pelos desertos do vizinho Uruguai – ou pela morte. Eram crias de ofícios em declínio – coureadores, alambradores, esquiladores.  Eram muitas vezes iletrados – mas alguns deles sabiam recitar poesias métricas, contando os versos de cada estrofe na ponta dos dedos. Tinham sobrenomes que eram meras formalidades, pois a ascendência de todos eles era comum: a mestiçagem absoluta, a lacuna de origens certas, o vazio do campo. Eram filhos da solidão, do isolamento e de uma história que jamais se contou de forma apropriada ou completa; seus antepassados não eram heróis fundadores, mas trânsfugas, desertores e cuchilleros. Havia um certo orgulho não dito por essa falta de genealogias humanas, como se os verdadeiros homens fossem os filhos da terra – e não os filhos de outros homens, que eram por sua vez filhos de outros homens, e assim por diante. Um orgulho – digamos – adâmico. Eram, sem o saber, supersticiosos agnósticos, um pouco xamanistas, um pouco céticos, um pouco crédulos. Faziam cruzes de sal na soleira das portas em dias de tempestade; ou assestavam machadadas na cara do vento, invocando o nome de Santa Rita e outras entidades protetoras, cujo exato status teológico eles ignoravam, e com o qual não se importavam minimamente. Acreditavam em todos os espíritos que pudessem existir no mundo, e talvez em todos os santos plausíveis e implausíveis, e tinham crucifixos de madeira tosca sobre os fogões; mas jamais falavam em Deus, exceto em tom de ironia[2], pois sua crença era mágica, simpática, não religiosa; o fervor de um verdadeiro crente talvez lhes parecesse uma fraqueza. Pois Pois lhes desgostavam os exageros de qualquer tipo. Um tácito código de etiqueta – sim, etiqueta, pois foram as pessoas mais corteses que já encontrei – dizia que, mesmo quando se tem bons motivos para a histeria e o desespero, a conduta adequada é simplesmente esperar que o transe se dissipe. Ou esperar que tudo se esqueça. Ou esperar que a morte corrija todos os descaminhos da vida.

Eram, acima de tudo, homens quietos, homens ontologicamente quietos e calados. Falavam pouco, e desconfiavam de quem falava muito. Não eram dados a fanfarronices, ao alarde de proezas sexuais ou cavalares, ou a acessos de grossura arbitrária e folclórica – todo esse "ethos do bagualismo" era algo estranho ao local, uma imagem de espelho fajuto, uma caricatura que não fazia sentido. Discussões eram coisas raríssimas; o homem do campo preferia, em geral, que seu interlocutor tivesse razão[3]. O laconismo, o caráter perenemente contemplativo e aquilo que os ingleses chamam de understatement – a sutileza do dizer sem falar, a arte de deixar muita coisa nas entrelinhas, nos espaços brancos da fala, nas miudezas da entonação ou na economia de um gesto – eram traços que compunham aqueles peões, campeiros e paisanos que conheci há tanto tempo, e que vêm minguando.

Essas minhas memórias de infância explicam, talvez, meu carinho pela obra de Cyro Martins – em especial, o primeiro e basilar romance, Sem Rumo. Chiru, o protagonista, não é ainda o gaúcho a pé; mas, sim, o gaúcho apeando, ou o gaúcho tombando de seu cavalo (um cavalo que, a propósito, nunca foi seu). É o gaúcho que olha para trás, para a paisagem áspera, bela e inóspita onde já não tem lugar – e percebe que aquele, enfim, era o único lugar que poderia ter sido o seu. A cidade ainda não o tragou e ele vive, a bem dizer, nas periferias, nas orillas do campo, como se o descampado o expulsasse pouco a pouco, através de camadas sobrepostas de isolamento e exclusão. Mas ao longo de sua jornada para fora do mundo (de seu mundo), Chiru carrega consigo aquele orgulho não dito: seu pai foi um índio vago, um anônimo, filho da geografia do esquecimento.

Em minha opinião, o pampa, matriz simbólica do Estado, foi muitas vezes incompreendido por aqueles que o celebram. A propósito, diga-se de passagem: a palavra "pampa" é uma daquelas que jamais se ouvirá naqueles redutos perdidos por onde passei quando guri[4]. Ninguém lá fala do pampa, ninguém se importa com o que seja o pampa; fala-se no campo, apenas, e, mesmo sobre ele, fala-se pouco. Borges escreveu que o Alcorão não menciona camelos, pois foi escrito por árabes; talvez ocorra o mesmo com o referido bioma, tão presente, tão imenso e tão avassalador que, para os que lá vivem, dar-lhe um nome mais específico do que "o campo" seria um capricho incompreensível. Quando trata-se de falar sobre a região cultural, "a parte do mundo em que vivemos", diz-se simplesmente: "a Campanha" (que pode também ser, simplesmente, o oposto de "a Cidade"). Mas seja como for: o campo, ou o pampa, foi muitas vezes mal compreendido, sim. A extensão sem obstáculos – pelos menos naquele pampa arcaico, sem arames – daria ao ser humano um status de "gênio comarcal"[5], algo como um semideus das planuras. Mas não é assim. Como observou a intelectual bajeense Elvira Mércio em um documentário recente[6], a imensidão do campo transmite não apenas uma sensação de poder, mas também (e principalmente) de invalidez. Desse paradoxo nasce o pathos presente em versos como estes, de Noel Guarany:

 

Porque o gaúcho, senhor,

que em toda a pampa existe

é o homem que canta triste

por isso eu nasci cantor.

Mais triste que urutaú

mais xucro que pantanal

meu verso tradicional

há de cruzar mil fronteiras

em toadas galponeiras

romances do meu rincão

num desabafo de peão

que aprende a cantar solito

quando de noite, ao tranquito,

dá medo da solidão.

 

A liberdade inspirada pelos horizontes da Campanha não é a do conquistador que vai pelo mundo fundando cidades em homenagem a si mesmo; mas, sim, a liberdade de um pedaço de pano levado pelo vento. É uma liberdade anônima, aniquiladora, temível. É a liberdade de Odisseu – a liberdade que, em última instância, faz com as identidades se diluam, os nomes e as origens se esqueçam, e que transforma todos em Ninguém.

Interpretado de outra forma[7], porém, o pampa dá origem ao mito do gaúcho triunfante, senhor do destino, protagonista da História. É o gaúcho positivista, um símbolo cívico, uma espécie de guerreiro progressista que avança, impassível, rumo a alguma finalidade superior e transcendente – a República, a Civilização, a Liberdade, etc. Tudo muito diferente daqueles índios vagos que conheci, sem nome e sem rumo, marginais, marcados pela melancolia e pela desolação dos espaços demasiado amplos. Nesse sentido, sempre achei mais convincentes os gaúchos lacônicos, sombrios e mal fadados de Cyro Martins. No mito cívico e triunfalista que hoje povoa desfiles temáticos e até propagandas de televisão, surge o gaúcho solar e sanguíneo; em Chiru, encontro o gaúcho noturno, fleumático ou saturnino, que sempre me interessou mais. Um gaúcho que, embora menos celebrado nas datas festivas, é de estirpe antiga na literatura. Noturnos eram os gaúchos de Tapera, de Alcides Maya; seres engambelados pelo destino, levados a matar uns aos outros por uma china, por uma desavença política, por um mal entendido. Criaturas que vão de arrasto no roldão da história, sem saberem para onde os leva a maré da vida. Assim era também, de forma intermitente, o Blau de Simões Lopes Neto. Relembro, sempre, o trecho final de O anjo da vitória como uma das epítomes do gaúcho sem rumo: "O meu bicharazito se empantufou de vento, desdobrou-se, batendo como umas asas... o mancarrão bufou, recuando, assustado... E quando dei por mim, andava enancado num lote de fujões. Comi do ruim. Vê vancê que eu era guri e já corria o mundo".

 

 

 

2.

Devo admitir que minha busca algo maníaca pelo pathos de um pampa noir nas páginas da literatura tenha algo de contraditório. Sempre antipatizei cordialmente com a obsessão referencial, e não costumo julgar uma obra por sua propriedade mimética ou por sua fidelidade relativa à letra da realidade; o que me interessa é propriamente a ficção e as formas como ela pode distorcer e refratar a realidade – às vezes, entrecruzando-se com ela. Quando mais jovem, segui  de forma mais ou menos fundamentalista o idealismo cético de Jorge Luis Borges. Para o escritor argentino, nem a representação do real, nem a originalidade baseada na subjetividade do indivíduo, garantem valor estético. Na poética borgeana, esse valor não está na relação com a realidade ou com o indivíduo separado do texto – é na Biblioteca infinita, na arte combinatória da intertextualidade, que a obra ganha densidade e sentido, e não na neblina caótica, cumulativa e indeterminada do mundo. Daí o valor conferido por Borges à trama – esse sinal ostensivo de artifício e simulacro. No âmbito dos universos imaginários, a trama oferece apenas aquilo que pode dar: não a decifração do real, mas uma limitada, severa e regrada honradez da ficção[8]. Hoje, enquanto escritor, admito que o Texto do mundo me fornece tanto repertório de motivos, ambientes e personalidades quanto o Texto da Biblioteca infinita; e prefiro encarar a relação entre ficção e real sob o signo do mistério, em vez de me ater a uma solução final. Interessam-me as intersecções, e não o decalque, entre realidade e ficção.

Mas uma coisa é certa: não pretendo julgar obra alguma com base em sua semelhança com o chamado "mundo real". Peço licença para puxar mais alguns exemplos saídos do cinema – um cinéfilo jamais consegue passar muito tempo, ou muitas páginas, sem falar de filmes. Recordo sempre que uma das piores produções cinematográficas sobre as lendas arturianas é precisamente um filme que tentou, desesperadamente, contar a história do "Artur histórico"[9] – enquanto que um dos filmes mais perenes e eficazes sobre o tema é o Excalibur de John Boorman, assumidamente a-histórico, baseado apenas nas idealizações da Idade Média surgidas durante o romantismo do século XIX.

Sendo assim, por que prefiro os gaúchos noturnos de Cyro (e de Maya, e de Simões) ao gaúcho solar, fanfarrão e autodeterminado de outras construções simbólicas? Pode-se argumentar que, sim, inconscientemente, busco aquelas figuras que se perderam na miragem da infância – mas creio que exista algo mais. Acredito que o mito noturno do gaúcho seja literariamente mais produtivo, pelos motivos que explicarei a seguir.

O gaúcho cívico e positivista pressupõe um passado utópico – e as utopias, do ponto de vista literário, parecem-me pouco interessantes. Não por acaso, a obra de Tomás Morus é mais lembrada por seu título do que por sua trama ou personagens; sabemos que a Utopia era uma sociedade perfeita, mas seus detalhes não impactam, perdem-se vagamente na memória; apenas o título permanece. A perfeição, creio eu, mata a imaginação; assim como o ufanismo sufoca o "grave mistério da vida", para usar uma expressão de Fernando Pessoa. Lembremos, também, de um outro fato estético: os paraísos da literatura, para funcionarem, devem ser breves. O Éden bíblico nos atrai porque é descrito em traços mínimos: é um jardim em cuja brisa vespertina Deus caminha. Estados de perfeição existencial, social ou metafísica são pouco afeitos à ficção narrativa, fundamentada no conflito: os deuses criam desventuras para que os homens tenham cantos que cantar, como escreveu Homero. O Paraíso de Dante é demasiado minucioso; a maioria dos leitores o ignora, preferindo o Inferno. Pois, ao contrário dos Paraísos, os Infernos são mais marcantes quanto mais detalhados e complexos. Não é o fogo do Inferno que nos assusta, mas sua prolixidade infalível, seu regramento infinito, a aplicação de uma ordem inflexível a cada detalhe na busca pela infelicidade perfeita. Não por acaso, os édens turbulentos e conturbados pintados por Hieronymus Bosch parecem mais um arrabalde adocicado do Hades; há uma certa histeria, uma certa insanidade nessas paisagens paradisíacas, que contradizem a ideia da paz eterna. De forma semelhante, os períodos de felicidade geral despertam pouco estímulo narrativo à posteridade: Antoninus Pius foi chamado o mais justo dos imperadores, mas a imagem mais eloquente é a de Nero dedilhando sua lira enquanto Roma arde.

O gaúcho de Cyro, enquanto símbolo do pária perdido na desolação e no isolamento, filia-se também a uma outra linhagem, anterior à própria literatura gaúcha: a dos "solitários homens de Deus", cujas epítomes estão nos profetas misantropos e passionais do Antigo Testamento. God's lonely man, por sinal, é o título de um célebre ensaio de Thomas Wolfe sobre a temática da solidão[10]. Nesse texto, Wolfe associa o homem solitário ao homem trágico – aquele que experimenta, de forma mais intensa, a alegria do mundo, e que, por isso mesmo, está marcado pela beleza de sua transitoriedade. Melhor exemplo não há do que o Livro de Jó: um livro que trata do sofrimento e da paciência, sim, mas que é construído num fluxo sensual celebrando, de maneira ao mesmo tempo melancólica e efusiva, a "abundância da Criação" -  God's plenty, no dizer de Chaucer. Escreve Wolfe:

"Nisso, nada há de estranho ou de curioso (...) O escritor trágico sabe que a alegria está enraizada no coração da tristeza, que o êxtase é atravessado pelos veios escarlates do sofrimento, que a punhalada do desejo intolerável e a breve glória selvagem da posse são marcadas amargamente, no próprio instante da maior vitória humana, pela premonição da perda e da morte. Vistos e sentidos desse forma, as melhores e as piores experiências do coração humano são meramente aspectos distintos de uma mesma coisa, e estão entretecidas, urdidas juntas, na teia trágica da vida (...) A beleza vem e passa, perde-se no momento em que a tocamos, não pode ser preservada, não mais que a água de um rio corrente. Mas dessa dor e dessa perda, esse gozo amargo da posse passageira, essa glória fatal de um instante, o escritor trágico fará uma canção de alegria. E essa canção, ao menos, ele poderá guardar para sempre"[11].

Wolfe observa que o Novo Testamento é o livro do amor humano, enquanto o Antigo Testamento é o livro da solidão; nesse sentido, os gaúchos de Cyro Martins são como criaturas pré-evangélicas, distantes da redenção, soltas em um mundo áspero e vasto, crivado de injustiças às vezes incompreensíveis; contudo, como Jó, eles não renegam esse mundo que é seu. Aí ressurge outro aspecto que sempre me pareceu fascinante no mito do gaúcho noturno: numa espécie de gozo melancólico, num afeto despojado e sem esperança, aquele cenário não utópico é acalentado e querido. Vasto, impiedoso e enigmático, o mundo do descampado é como o Jeová do Pentateuco – e os gaúchos de Cyro são os solitários homens desse deus.

 

3.

Imperfeito, talvez incorrigivelmente imperfeito é o mundo onde Chiru, nosso protagonista, inventou de nascer. Um mundo em que meninos apanham de capatazes brutais; um mundo onde marido e mulher penam anos e anos sem uma verdadeira conversa; um mundo onde o voto a cabresto impera, onde os bons e bravos revolucionários jamais surgem na curva da coxilha; um mundo onde as mais intensas emoções humanas fenecem, incomunicadas. Contudo, tão logo é forçado a deixar para trás tudo aquilo, Chiru não pode conter-se: volta o rosto, com nostalgia.

" Mortas a cidade, a praça e a rua.  Meio morto, ele mesmo, massacrado. Um caco de gente. Mas certamente vivos e viçosos os pagos queridos. Queridos, apesar de tudo, apesar das tundas de Clarimundo".

Sim, apesar das tundas de Clarimundo – o capataz autoritário que, mais tarde, será igualmente injusto como feitor de obras– os pagos continuam viçosos. Na memória, apenas? Ou também na realidade – inacessíveis agora, perdidos em uma distância que já não se pode percorrer? Perante a impossibilidade de voltar ao passado, e a natureza precária, intolerável do presente, Chiru, o homem sem genealogia, sem dono e sem Deus, anseia por aquela liberdade não triunfante, a liberdade do comedor de lótus e do viajante perdido; a liberdade de Ninguém:

"Uma gana de voltar pelos caminhos andados... De ser outro, de ser como contam que foram os gaúchos andarengos de antigamente, de ser o que de certo fora seu pai, um índio vago".

Não é o gaúcho heroico que surge nesse trecho, mas o gaúcho sem origens nem destino certo, e também sem nome. Chiru quer ser outro: eis aí a fascinação do campo e do vazio, da extensão que tudo dilui e desbasta, áspera e incansável como aquele vento do sudoeste que tem o mesmo nome de uma perdida tribo de índios – o minuano.

Assim como o gaúcho ganha densidade literária ao se tornar um pária ou um náufrago, da mesma forma o passado mítico, do qual a figura do gaúcho emerge, só se torna convincente se o consideramos como uma memória refratada, talvez ilusória, porém geradora de reais emoções humanas. Existe uma qualidade mágica em tudo aquilo que passou e que não mais voltará; como escreveu Borges, "todos sentimos ter um dia possuído algo infinito, que se perdeu". Obviamente, já não se sustenta a crença na existência real de um passado benigno e heroico em que o monarca das coxilhas realmente dominava seu feudo, a natureza, enquanto pelejava pela liberdade humana. Mas este é precisamente o aspecto brilhante do romance de Cyro Martins. Ele não descreve aquela existência do peão no campo como algo utópico; ele a descreve com todas as suas contingências e imperfeições, com as agruras do poder e da dominação, com a luta da sobrevivência nos duros invernos e sufocantes verões; porém, ao mesmo tempo, essa origem imperfeita é delineada em nuanças de nostalgia, pois sabemos, desde a primeira página, que tudo aquilo irá acabar. Desde a primeira linha, sabemos que Sem Rumo - e toda a trilogia do gaúcho a pé - tratará dos estertores de um mundo; e isso nos faz contemplar esse mundo injusto e brutal sob uma luz melancólica, talvez enganadora, porém de inegável efeito sobre aquele nosso lado que deseja tudo o que passou e tudo o que jamais voltará.

Por isso, é tão apropriado que o protagonista dessa obra surja, nas primeiras páginas, como um menino. Sua infância foi marcada por surras, solidão e injustiça; mas foi a sua infância. Um personagem do filme argentino O segredo dos seus olhos diz que podemos mudar tudo a nosso respeito, menos nossas paixões; tampouco podemos mudar de infância – uma das coisas que serão sempre irremediavelmente nossas. O drama de Chiru é precisamente que sua infância foi seccionada do resto de sua vida, de maneira irreversível. Por aquelas estradas onde antes cruzavam os tropeiros, veio vindo, num gingado sinistro, o Caminhão, ameaçador, ao mesmo tempo desengonçado e invencível, parecendo um monstro mítico como o behemoth da Bíblia. É interessante notar, por sinal, que o caminhão surge sempre como uma criatura autômata – jamais vemos quem o dirige. Assim, o veículo torna-se personalizado; é o próprio adversário que vem esmagar um mundo sob as rodas. (Curiosamente, artifício idêntico foi usado por Steven Spielberg em seu primeiro e talvez melhor filme, Encurralado – sobre um homem perseguido em uma infindável rodovia por um caminhão demoníaco, cujo motorista jamais dá as caras). Expulso daquele universo invadido e fragmentado, Chiru vira barqueiro, vira obreiro, vira um habitante desajustado da civilização urbana – mas parece apenas ir descendo os círculos concêntricos de um inferno real, e sua única possibilidade de "rivedere le stelle" é olhar não para o alto, mas para trás.

A propósito disso, recordo um poema do Livro de Horas, de Rainer Maria Rilke:

Senhor, dá a cada um a sua própria morte.

O morrer que lhe vem daquela vida onde teve seu sentido

e onde conheceu o amor e a dor.

 

Segundo Claude Lecouteux, imperava na cultura europeia medieval a crença na boa morte e na morte má. A boa morte era aquela que vinha naturalmente da vida que se termina – em geral, a morte de velhice, quando as energias espontaneamente se esgotam e o ser humano "entrega a alma com mansidão". Já a morte má – pela violência, pela doença, pelos acidentes – cortava a vida antes do tempo, e gerava fantasmas[12]. Embora menos violenta do que gradual, a morte do mundo de Chiru encaixa-se evidentemente nesse última categoria. E dessa morte – talvez causada por doença congênita – surge a legião de fantasmas de carne e ossos que habitarão as páginas da trilogia de Cyro. Apesar das simetrias entre a injustiça passada e a presente, permanece o fato de que o mundo da infância de Chiru desapareceu, e seu conhecimento de mundo já não funciona neste, onde é agora forçado a sobreviver. O passo desabrido do tempo negou ao gaúcho a sua morte; obrigou-o a acabar não em um estrondo, mas em um suspiro de desalento, como no verso de Eliott; cortou-o para sempre daquele mundo também imperfeito e brutal, mas que foi seu: o mundo e a vida onde ele conheceu, em iguais e enfáticas medidas, o amor e a dor.

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] José Francisco Botelho é jornalista, escritor, tradutor, mestre em Letras pela Ufrgs e autor da coletânea de contos A árvore que falava aramaico, premiada pela Biblioteca Nacional.

[2] Dou o exemplo de uma anedota oral, cuja origem desconheço. Durante alguma revolução qualquer, um "paisano" havia preparado a defesa de certa ponte, cujo acesso era almejado pelos adversários. Gabou-se diante de um amigo: "Por essa ponte, não passa ninguém". O outro provocou: "Não passa nem Deus?" A resposta final: "Deus até passa, mas passa ferido".

[3] Essa determinação às vezes comovente em jamais contrariar o interlocutor surgia, de forma acentuada, em discussões sobre o clima. Lembro de ter certa vez feito uma experiência um pouco desonesta. Comentei a certo paisano antigo: "Dom José, parece que chove hoje". E ele assentiu: "Ah, chove". Pouco tempo depois, como se o diálogo anterior não houvesse ocorrido, eu disse de supetão: "Parece que não chove hoje, Dom José". E ele: "Ah, não chove". Essa pequena e contraditória conversação inspirou, anos mais tarde, o conto Os Gringos, que está em minha coletânea A árvore que falava aramaico (Asterisco, 2011).

[4] Outra palavra que não será ouvida: prenda. A companheira do gaúcho é a china – palavra que, naquele contexto, não tem qualquer acepção de permissividade sexual. Os castelhanos criollos chamavam os indígenas (especialmente os charruas e minuanos) de chinos, por causa dos olhos amendoados.  As zonas rurais de Bagé e Alegrete contêm o maior índice de miscigenação entre brancos e índios no Brasil. A ausência inicial de mulheres europeias fez com que o "eterno feminino" na fronteira se encarnasse na índia ou na indiática; e, mais tarde, na indiática amulatada, com largas ancas e cabelos negros e compridos. A tal "prenda" veio como tentativa tardia de europeizar a china da Campanha. E a china, ridicularizada na metrópole como mulher grossa e sem refinamento, acabou sinônimo de prostituta (em Porto Alegre, apenas; jamais em Bagé). Mas sejamos fiéis; fiquemos com a china. Para maiores informações, consultar o texto China, escrito por Sapiran Brito, secretário de cultura de Bagé, e publicado no jornal O Minuano de 28 de setembro de 2012.

[5] Para Claude Lecouteux, o gênio comarcal, na "pequena mitologia" europeia, é a entidade que habitava determinada região agreste, antes da chegada dos humanos, e que exercia sobre determinado pedaço de terra uma espécie de império sobrenatural. ConsultarLECOUTEUX, Claude, Demonios y genios comarcales en la Edad Media. Medievalia, Palmas de Mallorca, 1999.

[6] Trata-se de "Bah!ia", de André Constantin e Daniel Herrera, sobre as semelhanças culturais entre baianos e gaúchos. (Poucos lembram que os baianos também chamam o pão francês de cacetinho). Foi exibido pela RBS na série Histórias Curtas, em 20 de outubro de 2012.

[7] Quase escrevi "mal interpretado", por simples força da linguagem. Mas me atenho à filosofia de Pirro e Sexto Empírico, que buscavam ao máximo a suspensão do juízo. Existem, evidentemente, infinitas interpretações possíveis para o pampa. A minha é apenas uma delas.

[8] Beatriz Sarlo discorre sobre o assunto com muito mais propriedade do que eu. Consultar: SARLO, Beatriz, Borges: um escritor na periferia. São Paulo: Iluminuras, 2008.

[9] O filme – péssimo – é King Arthur, dirigido por Antoine Fuqua em 2004.

[10] Thomas Wolfe, romancista americano da primeira metade do século XX, é autor de Look homeward, angel, Of time and the river e outras obras. Não confundi-lo com o quase homônimo Tom Wolfe, autor de A fogueira das vaidades.

[11] WOLFE, Thomas. God's lonely man. Acessado no site http://pt.scribd.com/doc/92628371/God-s-Lonely-Man-Thomas-Wolfe em 15 de outubro de 2012.

[12] LECOUTEUX, Claude. História dos vampiros: autópsia de um mito. Unesp, São Paulo, 2003.