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A cidade estranha  E-mail
Coluna CELPCYRO - Colunistas

                                       

                                                                             

                                                                                                                José Francisco Botelho *                                                                 

 

    1.      Durante sua primeira e única visita a Porto Alegre, em 1949, Albert Camus decretou, em palavras hoje melancolicamente famosas na província: "A luz é muito bonita; a cidade, feia". Não nos assombremos demasiado com essa virulência: o filósofo pied-noir não costumava elogiar cidades. Em outra ocasião, classificou Nova York como "horrenda e desumana"; quanto a Buenos Aires, sentenciou-a como um lugar "de rara feiura". Mas, para a nossa Petite Poá (como a apelidou certo amigo meu, de humor conhecidamente ácido), Camus reservou ao menos uma observação simpática: a luz, a luz era bonita. E nem poderia deixar de ser; pois o grande estrangeiro chegou à pequena metrópole em um inverno de ciclone antitropical, quando a luminosidade destas bandas adquire aquela transparência particular, com crepúsculos de inapropriada beleza irrompendo atrás dos mananciais marrons. E isso que Dom Alberto não chegou a ver um amanhecer nos Cerros de Caçapava, ou a nitidez enigmática que bate às seis horas da tarde em um rincão de Hulha Negra; não, ele roçou apenas a superfície de nossas curiosas tradições meteorológicas. E isso foi o bastante para render, ao menos, uma frase memorável.

 

          O comentário sobre a feiura da cidade e a beleza da luz não foi o único: Camus também observou, com certa apreciação antropológica, o uso de "kapotes" (sic) pelos nativos. Ora, estava-se em um agosto anterior à era das mudanças climáticas; não apenas fazia frio, como os porto-alegrenses tinham, ainda, o costume de andar de ponchos. Não sei se, naquela época, ainda se usavam ponchos em Buenos Aires; é possível que Camus tivesse visto essa indumentária ibero-americana apenas em filmes de faroeste. Luz bela, cidade feia, um povo andando em capotes de bandoleiro: lugar estranho, talvez tenha pensado Camus, com indiferença, entre uma e outra crise de asma, antes de anotar: "Minha preocupação é ir embora e acabar com isto; acabar com isto de uma vez por todas".


2.
          Porto Alegre é uma cidade essencialmente estranha. Sua estranheza pode parecer uma espécie de hostilidade distraída, uma espécie de vazio: é fácil convencer-se de que este é um lugar que não deseja ser amado. Ela dá-se a conhecer de forma vagarosa, sem método; e quando, enfim, inspira simpatia ou afeto, é por uma espécie de epifania arbitrária, difícil de ser expressa em itens racionais. It grows on you, disse-me certa vez um estrangeiro, amante de Porto Alegre, após admitir que não havia se apaixonado nem à primeira, nem à segunda vista . It grows on you: o gosto por Porto Alegre tem algo de vegetal, involuntário e quase fatídico. É o tipo de afeição que cresce à maneira dos fungos; e geralmente vem acompanhada de dor.


          Talvez a estranheza porto-alegrense seja uma qualidade entranhada na própria ontologia do lugar. Em sua Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821), Auguste de Saint-Hilaire deixou passagens vagamente intrigadas sobre sua estada na cidade. Inquietou-o, principalmente, o frio: ele vinha do norte sul-americano e talvez não esperasse resfriar-se neste continente. Também o assombrou a maneira aparentemente absurda com que os moradores pareciam se resignar às baixas temperaturas. Não se construíam moradias aquecidas, como na Europa, e o inverno era aceito como uma espécie de fatalidade ‒ contra a qual os nativos armavam-se apenas com aquela mesma peça de lã rude, que Camus observaria mais de um século depois. Escreve Saint-Hilaire: “Acostumado, como já estou, às altas temperaturas da zona tórrida sofro muito com o frio. Ele tira-me toda espécie de atividade, privando-me quase da faculdade de pensar. Esse frio repete-se todos os anos. Toda a gente se queixa dele, sem contudo procurar meios eficazes de defesa contra o inverno. Apenas cuidam de agasalhar o corpo com vestes pesadas. Todos os habitantes de Porto Alegre usam em casa um espesso capote que, impedindo-lhes até os movimentos, não os impede de tremer de frio... Há aqui grande número de casas muito bonitas, bem construídas e bem mobiliadas, mas não há uma, sequer, que possua lareira ou chaminé.”


          Paralisado por aquele inverno seco e vítreo, Saint-Hilaire passava longos dias sem fazer nada, reclamando do tédio, do clima, do isolamento. Mas fez também alguns elogios ao local: gostava dos campos vizinhos, que o faziam pensar no Sul da Europa; e surpreendeu-se ao encontrar, neste confim, alguns apreciáveis salões de convívio: “Devo agora acrescentar que, se não há aqui tanta vida social como nas cidades europeias, não resta dúvida haver muito mais que nas outras cidades do Brasil. São frequentes as reuniões nas residências para saraus musicais, tocando algumas senhoras, com maestria, o bandolim e o piano, instrumento este em geral desconhecido no interior devido às dificuldades de seu transporte.” Havia bandolins e pianos nestes desertos, mas é de se imaginar que seus acordes não extraviassem o gosto dos ermos: talvez Saint-Hilaire tenha experimentando, antes de seguir viagem, a solidão metafísica que nos define e que não nos abandonou.


          (Sobre as tais "casas bonitas", mas sem lareiras, mencionadas pelo francês, teremos de acreditar em seu testemunho: décadas de demolição institucionalizada deixaram poucas, ou nenhuma, para trás.)

3.
          Naturalmente, na época em que Saint-Hilaire esteve aqui, a solidão era não só metafísica: também era física, mesmo. O povoamento era escasso, e a linha reta da planície tornava evidente a rarefação humana. Essa vastidão esmagadora do mundo é uma espécie de vento que desbasta o espírito e o torna, de certa forma, ascético. Hoje, a solidão física minguou e, em muitas partes do estado, já não existe. Contudo, tais desolações não pertencem somente ao tempo, mas à alma dos lugares e às gerações que os habitam. De certa forma, Porto Alegre herdou (assim como herdaram os gaúchos em geral) a solidão cismática e cismarenta dos primeiros povoadores europeus ‒ e mesmo dos ameríndios que cruzavam o pampa aparentemente infinito.


          Nesse sentido, no entanto, Porto Alegre sofre de um isolamento duplo. Apesar dos churrascos, apesar do inverno, apesar dos fantasmas dos ponchos, apesar até mesmo do ainda ubíquo chimarrão, que tanto a distinguem de outras capitais do país, o fato ‒ para alguns surpreendentes ‒ é que Porto Alegre não está no pampa. Na Campanha e na Fronteira, vive-se em uma espécie de solidão gregária: o nosso espelho invertido está logo ali, além do cerro de Aceguá. Já Porto Alegre está suspensa entre Bagé e São Paulo; entre Uruguaiana e o Rio de Janeiro. Parece haver, nessa capital extraviada, um contraditório e ansioso querer ser e não ser, uma força centrífuga que a confunde e abala. Mas são essas excentricidades que a tornam única, e fatalmente nossa.


4.
          "Porto Alegre, antes, era uma grande cidade pequena. Agora, é uma pequena cidade grande", escreveu Mário Quintana. Foi mais ou menos essa a impressão que me assaltou nos idos de 1998, quando, emergindo da Campanha profunda, vim morar na capital. Espantaram-me as marcas de uma modernização retrógrada e destrambelhada ‒ inexplicável cruzada destrutora, cuja determinação cega ainda não se esgotou. Os vestígios da cidade anterior, ainda vivos com suas aflitas memórias, resistindo no anonimato e no desespero, me causavam uma tristeza contemplativa que, em outros momentos, poderiam ter rendido um soneto, ou dois. Mas o caráter ferozmente intermediário da cidade me deixava paralisado; sentia nela um excesso de realidade que era, ao mesmo tento, irreal; às vezes me assaltava a impressão de ser um fantasma de ninguém, vivendo em lugar nenhum. Tentei várias vezes colocar tudo isso no papel, mas, durante anos, foi inútil: Porto Alegre era para mim, no mapa do universo, um ponto inescrevível.


          But it grows on you. A Grande Estranheza de Porto Alegre cresceu em mim e gerou símbolos. Não "símbolos bárbaros", como os de Manoelito de Ornellas, mas símbolos discretos, que a custo se percebem e que apenas após muitos anos de convívio se deixam soletrar. O isolamento porto-alegrense se transformou em uma reveladora idiossincrasia, apontando a vida fluida, arbitrária, pungente e insolúvel das culturas. As esquinas de beleza vestigial, nas ruas malferidas, sob a luz dolorosamente límpida do semitrópico, tornaram-se imagens de uma renitência inconsciente, talvez vegetativa, mas mesmo assim valorosa. A cidade estranha despertou em mim o amor pelas coisas quebradas, desprezadas e incorrigíveis. Além disso, Porto Alegre me ensinou a voltar para casa, para o extremo sul, com outros olhos, com olhos experimentados em uma solidão agora consciente, que já não era mera fatalidade, mas uma espécie de escolha. Ela me ensinou a ser, de fato, este ninguém; me mostrou que eu próprio sou mais um ponto inescrevível no mapa do universo, e não poderia deixar de sê-lo. Passei então a escrever sobre ela, não como escritor realista, não para descrevê-la, não para elogiá-la ou desprezá-la, não para renegá-la ou abraçá-la, mas para transformá-la em metáfora e impô-la a uma outra realidade: ela é o cenário favorito de meus contos fantásticos. Purgatório, reencontro, redenção.

 

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* Nasceu em Bagé (RS), em 1980. É jornalista e escritor. Colabora com periódicos como Superinteressante, Aventuras na História eBravo! . É mestre em Letras pela UFRGS e autor do livro A árvore que falava aramaico, obra finalista do Prêmio Açorianos de Literatura/Conto de 2012. Tradutor de Contos da Cantuária, de G.Chaucer ( Cia das Letras). Saiba mais em Escritores Gaúchos