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Projeto Porteira Fechada e Boa Ventura: Gaúchos na Av. Paulista: encontro na Casa das Rosas  E-mail

                                                                               

                                                Maria Helena Martins*


Trânsito pior que o usual e muita chuva bloqueavam a Av. Paulista no dia 19 de fevereiro de 2016,  às 19h00. Eu estava certa de que chegaria atrasada para nosso esperado evento, na charmosa Casa das Rosas, uma das últimas mansões dos senhores do café (1935).

 

Por isso maior foi a satisfação vendo uma plateia paulistana visivelmente interessada em me ouvir, naquele ambiente acolhedor. Por um instante imaginei como seriam os saraus daquela época; e mais: rememorei o sarau de Arca de Impurezas que alí realizamos, idealizado por Liana Timm, com a participação da artista Cida Moreira.

 

Agora era a vez de PORTEIRA FECHADA E BOA VENTURA- INTERAÇÃO DO ROMANCE DE CYRO MARTINS E DO FILME DE GUILHERME CASTRO, projeto do CELPCYRO iniciado em 2015 e que chega a 2016 em expansão.


Cabia-me iniciar o encontro abordando Porteira Fechada, sendo que Guilherme Castro, diretor de BOA VENTURA, projetaria  o filme e falaria a respeito, finalizando o evento um debate com a platéia.  O que segue resume minha fala.


Supondo haver pouco conhecimento sobre Cyro Martins, sobre sua obra e o contexto sociocultural e político sul-rio-grandense, da primeira metade do sec. XX, achei oportuno apresentar panorama desse período. Nele se insere parte significativa da obra de Cyro Martins, especialmente a chamada trilogia do gaúcho a pé: Sem Rumo (1937), Porteira Fechada (1944), Estrada Nova (1954) .


Foi um tempo em que o Estado do Rio Grande do Sul buscava se firmar no cenário nacional ( vide ascensão de Getúlio Vargas ao poder político - 1930-1945), ainda com a ressaca de revoltas e revoluções, esforços e dúvidas quanto a pertencer efetivamente ou não ao território brasileiro. Nunca esquecendo que isso só acontecera, no papel, em 1777 ( Tratado de Santo Ildefonso) e que a Revolução Farroupilha (1835-1845) reabriria feridas e remarcaria aspirações de um povo em luta por autonomia, levando-o da tentativa de separação à dita opção por ser brasileiro.


Trata-se da saga do gaúcho, homem do Pampa, essa grande extensão de terra que toma a maior parte do Rio Grande do Sul, praticamente todo o Uruguai e boa parte da Argentina. Uma região de terras férteis de grandes planícies e pequenas colinas (coxilhas), onde o gado se criava solto e sem cercas, cujos habitantes não tinham fronteiras, a não ser os limites de suas vontades e forças. Não à toa Jorge Luís Borges, entre poética e realisticamente, considerou que “ la dura vida impuso a los gauchos la obligación de ser valientes”(1944) e que o nosso João Simões Lopes Neto , bem antes (1912), já dizia ser esse “o tempo do manda quem pode ...”, em que “ cada um tinha que ser um rei pequeno”.

 

Assim, nas primeiras décadas do séc. xx, boa parte da literatura no Rio Grande do Sul deu vazão ao gauchismo, ou seja, ao elogio do gaúcho como “Monarca das coxilhas” e “Centauro dos pampas”. Daí ter causado certa estranheza o aparecimento de Porteira fechada, que viria a se tornar o romance em que o protagonista – João Guedes –, à semelhança de seus pares na realidade, se transforma na figura emblemática do gaúcho a pé: o homem pobre do campo que perde seu torrão natal, seu cavalo, sua lida campeira e é empurrado para a periferia das cidadezinhas próximas, abandonado pela sorte e miserável, sem serventia, marginalizado.


Sem dúvida, o mérito do romance não se limita `a gravidade com que esse quadro dramático de degradação é apresentado por Cyro Martins. Há toda uma contextualização social, política e cultural e um rico painel de figuras humanas compondo o cenário ficcional a partir da realidade sul-rio-grandense vivida e interpretada pelo autor.


Criado na campanha gaúcha, de onde saiu aos 11 anos (1919) para estudar no Colégio Anchieta, em Porto Alegre, Cyro Martins passou a adolescência e a juventude sempre retornando aos pagos, acompanhando as transformações pelas quais passava o povo e a vida no campo, que assinalavam um crescente descenso no modo de subsistência econômico-financeira – dos donos de campo aos peões. Mas foi quando se formou um medicina e retornou à Quaraí, sua cidadezinha natal, na fronteira com Artigas, no Uruguai, que Cyro Martins deparou o estrago maior que acontecia na região. Passou a exercer a prática da medicina na zona do pobrerio, refúgio dos desvalidos do campo, onde a miséria humana parecia não ter limites.
Se sua veia de escritor, despertada ainda na adolescência, muito se nutriu da observação da realidade campeira, é certo que sua intensão de se dedicar ao estudo e ao tratamento da alma humana se fortaleceu nessa temporada de três anos clinicando em Quaraí.


Daí a consistência realista e dolorosa da criação ficcional de Porteira Fechada. A opressão contextual, a derrocada familiar e a consciência da desumanização avassaladora, pela qual é tomado João Guedes, fazem-no personagem inesquecível. Ainda que atravesse o romance como uma figura que se esgueira pela vida. Até mesmo porque seu drama é apresentado pelo autor na figura de um sujeito recatado. Com linguagem simples, em sua pouca fala o toque fronteiriço se insere naturalmente, reveladora desde as lides campeiras a valores de um homem singelo que é levado a cometer a hýbris, a transgressão dos limites humanos.


Perpassa as personagens femininas uma sabedoria terra à terra; são pouco falantes, mas perspicazes. Não à toa, Maria José, mulher de João Guedes, já antevendo a desgraça, confessa: “Meu marido é a máquina de costura”.


Mas é mesmo João Guedes quem centraliza a atenção na leitura. Personagem criado com empatia e veracidade como um anti-herói, apresentando facetas e dúvidas, fraquezas e desvalia que o despem frente ao leitor, de modo a impulsionar a leitura e, simultaneamente, a suscitar o desejo de que seu drama acabe, antes que essa leitura se torne penosa demais.


Desse modo, à revelia das preferências dos tradicionalistas, Porteira Fechada se tornou best-seller; João Guedes passou a ser visto como protótipo do “gaúcho a pé”, o qual, dizem até, teria sido “o avô do sem terra”, numa referência ao participante do Movimento dos Sem Terra (MST), nos seus primórdios.


O que , entretanto, sustenta a qualidade literária de Porteira fechada é sua coerência interna, que se fundamenta na composição harmônica de componentes como memória, imaginação, fantasia e humanismo construídos sobre alicerces seguros da elaboração da linguagem e da construção da narrativa.


Embora o inequívoco afeto pelo universo gaúcho, Cyro Martins foi coerente na literatura como na postura intelectual em face do gauchismo. Seu regionalismo foi “dissidente”, na visão da crítica. Não se tornou aficionado de CTGs; nem se punha de bombachas e alpargatas, mateando e ouvindo o cancioneiro guasca, como alguns de seus leitores, ingênuos, o imaginavam. Era um “realista esperançoso”, como dizia. Acima de tudo, foi um humanista.

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* Coordenadora do Projeto "Porteira Fechada e  Boa Ventura - interação do romance de Cyro Martins e do filme de Guilherme Castro" , 2015.