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Porteira Fechada (1944), de Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ficção

 

 

                                                       

                                                            

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                                                                    João Guedes, ilustração de Nelson Jungbluth


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             João Guedes talvez seja a personagem mais representativa do gaúcho a pé, expressão que o autor encontrou para designar o homem do campo que perdeu o cavalo, a terra e se viu marginalizado na periferia da cidade. Uma visão ampla         desse processo está na "trilogia do gaúcho a pé" - Sem rumo (1937), Porteira fechada (1944), Estrada nova (1954) - romances em que a realidade e a ficção se cruzam para melhor caracterizar o drama humano e social. Em Porteira fechada, encontramos João Guedes. A opressão contextual, a derrocada familiar e a consciência da desumanização avassaladora por que é tomado fazem de João Guedes personagem inesquecível. Até mesmo porque tudo isso é apresentado pelo autor em linguagem simples, numa dramaticidade contida e contundente, profundamente significativa de valores para o homem singelo do campo. O fragmento que segue revela o insight do "destroço da sua vida". ( Maria Helena Martins )

 

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Estavam ali reunidos, num boliche de fim de rua de cidadezinha, quatro indivíduos que se emborrachavam juntos quase todas as noites e que não eram amigos. A noite estava abafada e os seus rostos mais pesados que habitualmente.

Havia qualquer coisa grave suspensa sobre eles. Mostravam-se mais ensimesmados que em qualquer ocasião. Mas nenhum deixava transparecer a causa das suas apreensões. Cada qual vivia para si o seu drama.

 

Guedes, o homem de olhar bom, barbudo e encurvado, que se achava sentado defronte ao capitão, meditava na sua história, no destroço da sua vida. Cada anoitecer o encontrava mais desgraçado.

 

Ele não contava o princípio da sua decadência pelo dia em que se mudara pra cidade. Datava-o do dia em que, indo a trote pela estrada, evitando as pedras para poupar o cavalo, sem avistar ninguém, nem no corredor nem nos campos, os seus olhos ardidos do solaço deram com um rombo no aramado. Perto, viu uma ponta de ovelhas esparramadas na encosta duma coxilha. Quase sem pensar, deu de rédeas ao cavalo e entrou na invernada. Contou uma pontinha de ovelhas, entre as quais as suas vistas campeiras destacaram logo um capão lanudo e gordo. Repontou-as no rumo dum baixo, onde corria uma sanga de barro. Ariscas, algumas sentavam. Deixava que se escapassem, como um refugo proposital. Por fim, sobraram o capão e uma ovelha velha. Foi aí que cerrou perna, esquecido de tudo. A ovelha logo debruçou entre as macegas, estafada. Mas o capão tinha graxa e gambeteava com agilidade, forçando-o a bruscas esbarradas. Queria atropelá-lo contra um barranco. Lastimava-se de não trazer consigo um laço. Não desanimava, porém. Pelo contrário, encarniçava-se cada vez mais, embora começasse a sentir canseira e a notar que o montado se esfalfava. E nessa teimosia foi correndo sanga abaixo, como nos tempos de guri arteiro, e ziguezagueando, até chegar ao ponto em que o animal apenas troteava. Boleou-se do cavalo, então, e saiu num frenesi, errando manotaços na lã crescida e crivada de flechilha do capão rome. Enraivecera-se. Por nada desistiria da caça. Num dado momento o animal meteu as mãos num buraco e caiu. Ele, correndo muito perto, rolou por cima e não teve tempo de agarrá-lo. Desesperado, apedrejou-o, como que apedrejasse um bicho desprezível. Acertou-lhe na cabeça. O capão testavilhou e rodou logo adiante. Suado, exausto e furioso, João Guedes arrancou da faca e sangrou-o como quem sangrasse um inimigo.

 

Quando se viu na estrada, à noitinha, carregando a presa atravessada na garupa e sentindo a ardência no peito, dor na lagarta das pernas e suor gelado na testa, horrorizou-se do que fizera e jurou jamais repetir semelhante façanha. Entretanto, instigado pelas próprias necessidades e pelo conluio encorajador com o Fagundes, recaiu uma e outra vez, até o flagrante em que foi preso.

 

Fazia agora dois meses que se achava em liberdade, porém se considerava mais prisioneiro que nunca. Tinham sido dois meses terríveis, esses. Perdera a filha, vendera o cavalo, vendera os arreios, Maria José secava dia a dia, passavam fome. Na véspera, percorrera a cidade à cata duma changa qualquer. Tratara a limpeza dum sítio por oit mil réis. Compreendia que não era serviço pra um homem da sua idade e no seu estado. Talvez caisse no meio das ervas... Depois disso, qual seria o seu próximo passo?

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Cyro Martins, Porteira Fechada.
Porto Alegre, Movimento, 1993, 10ª ed. p.98-99.
(1ª ed - 1944)



Trilogia do gaúcho a pé:  Sem rumo (1937), Porteira Fechada (1944) e Estrada nova(1953).

 

Links Relacionados:
- Antecedentes do gaúcho a pé - Cyro Martins

 O drama dos homens sem terra - Décio Freitas

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Revista Eletrônica CELPCYRO Número 7 - Número Especial sobre Porteira fechada

Revista Eletrônica CELPCYRO-Vol 2 - ISSN 2177-6598 - Artigos

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