O regionalismo dissidente de Cyro Martins |
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Zilá Bernd Professora Doutora em Letras (língua e Literatura Francesa pela USP, pesquisadora, escritora, Presidente pro tempore da Associação Brasileira de Estudos Canadenses - ABECAN, reconhecida internacionalmente por seus estudos interdisciplinares e interculturais em língua francesa, é também autora da primeira dissertação de mestrado sobre a obra de Cyro Martins (O gaúcho a pé: estudo do romance social de Cyro Martins - 1977). Já então revelava seu olhar arguto para a nossa literatura e nosso contexto sócio-cultural, como se percebe no texto que transcrevemos a seguir.
O conceito tradicional de regionalismo abrange “toda a ficção vinculada à descrição regional e dos costumes rurais desde o romantismo” (1973, p. 7-24). Contudo, no momento em que aflora a consciência de subdesenvolvimento, a partir dos anos 30 e mais claramente após a Segunda Guerra Mundial, o termo regionalismo reveste-se de um caráter ambíguo passando a englobar textos de características muitas vezes divergentes.
Valemo-nos para esclarecer o conceito, das considerações de Darcy Ribeiro para quem a consciência nacional pode assumir duas formas: a) consciência ingênua (ou consciência de atraso): que não contesta a ordem vigente, caracterizando-se pela resignação; b) consciência crítica: reflexo do entendimento da realidade como problema; a pobreza e o atraso passam a ser vistos como enfermidades sanáveis.
Transpondo essa dicotomia para a literatura do Rio Grande do Sul, verificamos: a) um regionalismo que chamamos de tradicional, essencialmente evocativo de um passado de glórias, que enaltece a figura do gaúcho a cavalo, monarca das coxilhas; b) um regionalismo que chamamos de dissidente que, rompendo com o tradicional, introduz como principal eixo temático a denúncia social e elege como protagonista a figura do gaúcho exilado do campo para a periferia das cidades; o gaúcho a pé, como foi denominado pro Cyro Martins.
Dentro do regionalismo tradicional, consagrador da ordem vigente, destacam-se autores como Alcides Maya e Darcy Azambuja. Na amostragem do regionalismo dissidente escolhemos os autores mais representativos do romance de trinta sulino, isto é, aqueles que passaram a descrever o real não mais a partir de uma ótica que corrobora o sistema, mas que o denuncia: Pedro Wayne, Aureliano de Figueiredo Pinto, Ivan Pedro de Martins e Cyro Martins.
O novo rumo que tomará a literatura sul-riograndense a partir de 1930, preocupa-se em denunciar o início do processo de marginalização do gaúcho ocasionado pela mecanização das fazendas e pela migração desordenada do homem do campo para as cidades. Verifica-se, assim, o surgimento de um veio de dissidência na literatura regionalista: a emergência de uma consciência social que não significa descrença em nosso passado legendário; é justamente em nome dessa legenda que eles se insurgem contra os fatores que a deprimem. Obras, hoje injustamente esquecidas, como Xarqueada (1937), de Pedro Wayne, Memórias do Coronel Falcão (1937), de Aureliano de Figueiredo Pinto, Fronteira Agreste (1943), de Ivan Pedro de Martins, passam a descrever o real, não mais através de uma ótica que corrobora o sistema, mas que, ao contrário, o denuncia. No dizer de Moysés Vellinho, Cyro Martins, seguindo a trilha de Ivan Pedro de Martins, expressa em sua trilogia do gaúcho a pé, “a falência completa de toda uma população” (1960, p. 165).
Não se observa mais a preocupação dos autores da fase do regionalismo de base tradicional em preservar o passado mítico, alicerçado na figura do monarca das coxilhas. Essa herança heróica passa a ser contestada, verificando-se no plano social a agonia desse personagem. Surge então uma geração empenhada que, assumindo uma postura crítica, procura reavaliar a sociedade e as relações de poder que degradam a figura do gaúcho. Em realidade a trilha percorrida pelos regionalistas dissidentes corresponde a uma versão sulina do romance de trinta que se impõe no plano nacional com autores que alcançaram grande repercussão como Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego.
Centraremos os exemplos dessa guinada, que caracteriza regionalismo dissidente, na figura do autor que talvez seja o mais lídimo representante dessa vertente: Cyro Martins, autor da trilogia do gaúcho a pé, composta por Sem rumo (1937), Porteira fechada (1944), e Estrada nova (1954), obras que melhor evidenciam o trânsito de uma consciência ingênua a uma consciência crítica da realidade, inaugurando o regionalismo dissidente.
Campo fora, de 1934, livro de estréia, embora ainda muito preso aos cânones tradicionais, onde pode ser detectado forte intertextualidade com a obra de Alcides Maya, evidencia já, em alguns contos, o embrião de uma próxima cisão do autor com a frase heróica do conto gauchesco. É, entretanto, na trilogia que se pode acompanhar a construção de um projeto ideológico. Os três romances se estruturam sobre o mesmo eixo: a denúncia do processo de marginalização do proletário rural que, despilchado do cavalo e da distância, torna-se um gaúcho a pé. Os três enfocam os cinturões da miséria que se formam em torno das cidades em conseqüência das migrações do proletariado rural que dá início á constituição do contingente que hoje chamamos de sem-terra.
Sem rumo e Porteira Fechada cujas ações são fixadas em 22 e 38 respectivamente, mostram as personagens principais provindas das classes subalternas, totalmente despolitizadas sem nenhuma consciência de classe. Nestes romances as personagens que detêm a visão crítica da realidade são os intelectuais, o que caracteriza uma postura elitizante do autor. Entretanto, esta postura será abandonada no principal livro da trilogia: Estrada nova. Aí se verifica um amadurecimento político do autor, reflexo de um momento histórico (fins da década de 40) onde se observa a progressiva conscientização das massas populares. Tal amadurecimento é comprovado pelo aparecimento, pela primeira vez na ficção martiniana de uma consciência crítica em uma personagem da camada subalterna: Ricardo.
A classe dominante – fazendeiros – atua nas três obras com a mesma característica: se por um lado o despovoamento dos campos fortalece economicamente o fazendeiro, por outro, esvazia seu poder político. Essa perda é enfatizada em Estrada Nova onde Teodoro, o proprietário rural, termina tendo que realizar a mudança para a cidade, da mesma forma que Janguta, o peão, pois não suporta mais a triste paz que passa a reinar nos campos.
Desse modo, a obra de Cyro Martins é exemplar, no panorama da literatura rio-grandense, do regionalismo dissidente, com as seguintes características:
1º) surgimento de uma consciência crítica:
esta consciência é marcada pela não-aceitação da ideologia dominante e a proposta de construção de uma novo realidade: a criação de uma sociedade solidária, fundada no amor, onde a grande massa carente da população brasileira encontre sua redenção;
2º) busca de novos caminhos:
a revitalização da prosa rio-grandense a partir de 30, na qual sobressai a figura de Cyro Martins, decorreu dos reflexos tardios da revolução modernista em nosso Estado. Essa revitalização se verifica não só no plano da temática mas também no da linguagem. O autor cria uma semântica do protesto onde o vocabulário gauchesco já gasto é utilizado como moderação;
3º) construção de uma literatura comprometida:
a importância da produção literária de Cyro Martins aumenta na medida em que o autor se afasta da gratuidade e se encaminha para a responsabilidade. Comprometido tornou-se Cyro Martins, assim como os demais autores cujas obras se inscrevem no regionlaismo dissidente, no momento em que optou pela temática da denúncia, da crítica à linha de ação das classes dominantes da época e do sistema político que recusou-se a implementar a tão esperada reforma agrária.
Esta escolha permitiu ao autor tornar-se coerente com seu ideal político e humano. O trânsito da gratuidade (consciência ingênua) ao comprometimento (consciência crítica) foi a saída encontrada pelo autor diante da crise em que se encontrava nossa literatura devido à complexa exaustão do temário gauchesco voltado para a glorificação de um gaúcho heróico que já não mais correspondia à realidade vivenciada em nosso Estado. Em Cyro Martins e nos demais integrandes do Regionalismo dissidente, a intencionalidade, contudo, não sufocou a livre criação artística; o aproveitamento das raízes autênticas da tradição gauchesca não inibiu o vanguardismo da mensagem e o registro histórico não preponderou sobre o valor estético.
Referências: BERND, Zilá. O gaúcho a pé: estudo do romance social de Cyro Martins. Porto Alegre: UFRGS, 1987. Dissert. de Mestrado, mímeo.
CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. Argumento, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1, out 1973. P. 7-24.
CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: regionalismo e literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
MARTINS, Cyro. Campo fora. Porto Alegre: Globo, 1934, p. 92.
_________. Estrada Nova. São Paulo: Brasiliense, 1954, p. 204.
_________. Sem rumo. Rio de Janeiro: Ariel, 1937, p. 188.
_________. Porteira fechada. Porto Alegre: Globo, 1944, p. 248.
---------------. Visão cítica do regionalismo. Feupa, Porto Alegre, 1, p. 48-58, set./nov./ 1944.
MARTINS, Ivan Pedro de. Fronteira agreste. Porto Alegre: Globo, 1944.
RIBEIRO, Darcy. Cultura e alienação. IN …. Teoria do Brasil. 2. Ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1975.
VELLINHO, Moysés. Itinerário de um romancista. In: …… Letras da Província. 2.ed. Porto Alegre: Globo, 1960. P. 165.
WAYNE, Pedro. Xarqueada. Rio de Janeiro: Guanabara, 1957. |