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Cyro Martins no Club de Lectoras * E-mail
Fortuna Crítica - Artigos

 

                                                                                     

                                                                                               Carmen Maria Serralta **

 

Antes de tudo, agradeço à Maria Helena Martins, Diretora de Cultura, Humanidades e Literatura do CELPCYRO a honra e a confiança de estar aqui como integrante/representante do Club de Lectoras - “Las Virginianas” (assim também nos nomeamos), das cidades de Santana do Livramento e de Rivera (Uruguai), para celebrar os 80 anos da primeira publicação dos contos Campo Fora do escritor Cyro Martins e aplaudir a bem-vinda versão e-book – iniciativa e lançamento do Instituto Estadual do livro (IEL).

 

Gostaria de acrescentar à cordial e simpática apresentação de Maria Helena, alguns detalhes sobre o Club de Lectoras. O grupo nasceu nos idos de 82, composto por professoras e profissionais liberais, a maioria uruguaia e, nasceu, obviamente, do amor pela Literatura. “Las Virginianas” manejam-se indistintamente nas duas línguas de uso na fronteira – espanhol e português. Reúnem-se uma vez ao mês para o estudo de um autor escolhido por consenso.

 

Gostaria ainda de dizer-lhes o que nós – “Las Virginianas” - consideramos ser o verdadeiro “espírito do grupo” e o que define, queremos crer, nossa peculiaridade, se é que existe... Acontece que aos poucos - meio inconscientemente – fomos percebendo que em nossos encontros literários procurávamos, a par da leitura, algo que também tivesse a ver com a prática do “Savoir Vivre“, dos franceses. Em outras palavras - com a “Arte de aprender a Viver” –, o que se aproxima, parece-me, da busca de alcançar a felicidade. Mas creio que nessa tentativa de busca conseguimos criar momentos privilegiados de plenitude. Instantes fecundos e amenos. E tantas vezes advertimos, ao nos despedir, que saíamos “em estado de graça”. A fusão entre a boa literatura e a amizade tornou possível esse acontecimento.

 

Ademais, julgamos que a Literatura seja um modo de estender a percepção humana do mundo e uma forma de conhecimento que nos chega pela emoção, gozo estético, reflexão, fruição, etc. Em suma, pelo prazer da leitura.

 

Digo isso para que se possa avaliar o grau de envolvimento que tivemos com a feliz revelação dos contos de Campo Fora - proporcionada pelo Projeto Fronteiras Culturais realizado em Santana do Livramento/Rivera (2001), pelo CELPCYRO. A bem da verdade, até aquela data, jamais tínhamos nos proposto (como grupo) elaborar textos criativos. Desnecessário dizer que fomos arrastadas pelo universo – encantado - do inato contador de histórias que é Cyro Martins e a ele devemos momentos especiais de plenitude.

 

Escolhemos como referência três jóias literárias: “Sem rumo”, “Guri” e “Caty”. Jogamo-nos por inteiro à tarefa e produzimos três textos: dois em castelhano e um em português. Uma companheira fez a ilustração em aquarela e uma amiga de Rivera uniu-se ao grupo e compôs duas canções com letra em português em que sobressai a figura sensível do guri Nilo, e onde Quinca Serpa, o vendedor de moirões, surge como personagem coadjuvante. Por sinal, tivemos notícias, por registros verbais, de que o Quinca Serpa teria andado bem perto de Rivera. Parece mais do que plausível! A última vez que o vimos - estava lá no Caty, no quartel de João Francisco no conto “Caty” - a meio caminho, entre Quaraí e Livramento. E quem fala de Livramento fala de Rivera também, já que configuram, como muitos sabem, uma única cidade – porque indivisas – física e culturalmente. A fronteira, sua delimitação física, só aparece nos mapas oficiais.

 

As narrativas nos tocaram fundo de várias maneiras e sob vários aspectos. A começar porque sentimos, em sendo fronteiriças, que o autor falava de nós e para nós. Como gosto de citações, lembro o poeta André Breton quando diz em francês: “L’amour c’est quand quelquun vous donne de vos nouvelles”, ou seja, o amor é quando alguém nos dá notícias nossas. E foi exatamente o que ocorreu.


Admiramos o modo como o ficcionista recria em relatos, e em imagens nítidas e emocionadas - poeticamente perfeitas - o mundo da infância e juventude vivida nos vastos campos da fronteira. Cyro Martins realiza o resgate desse mundo por ele tão ternamente percebido. Penso logo em Poiesis, a palavra grega que, como se sabe, significa o fazer, a fabricação, a criação de um produto pela arte. De fato, o então jovem escritor transfigura pelo poder de seu processo criativo o cenário (geográfico e humano) que lhe é familiar, e assim afasta do esquecimento um tempo e um espaço ido e vivido - território de memória. E sabemos que a memória passa pela paixão – como se diz em outras línguas: by heart, par coeur – ou então ela não passa. Leio, como amostra do que acabo de dizer, um pequeno trecho extraído do livro Campo Fora: “O choro do vento nos oitões e a zoada do arvoredo despilchado de inverno enchiam o vazio do sol e da vida”.


E noutro momento, em narração sensível e densa, concisa e sentida, o escritor comove ao mostrar a forma como o guri Nilo viu pela primeira vez a cara da morte. “O guri recolheu, na esperteza campeira dos olhitos alarifes, toda a viva emoção daquele instante supremo na vida do gaúcho”.

“Todos estavam calados. Ele também. Não indagava nada. Olhava no mais. (...) Esse dia o guri não brincou”.

E o que dizer da força de evocação que o narrador Cyro Martins provoca inserindo e prendendo o leitor dentro da paisagem (seja ela física ou humana)? Partilhamos com ele o gosto de sentir, por exemplo, o cheiro da terra e do capim molhado, os odores do suor do cavalo, dos arreios e pelegos, da cozinha com seus lentos cozidos, e tantos mais...

E dos sons? Verdadeira sinfonia pastoral - ressonâncias da natureza e dos animais, feita de silêncio e canto, cantos da terra e dos céus, da chuva e dos ventos.

 

E quanto às paisagens? Agora, no sentido literal de espaço físico - até onde alcança o nosso olhar. O escritor, qual mestre pintor, aguça a percepção e a emoção do espectador diante de uma realidade exposta com fineza e precisão como nesta frase: “Alta manhã. Impulso de seiva nos pastos, nas ervas e nas árvores, brotando no ardor violento das fecundidades verdes. Horizontes limpos, circunferenciais, rasgados em luz.”

             

Todo o universo da fronteira (tipos humanos com seu imaginário, geografia, costumes, etc.) surgiu inteiro e intacto diante de nós da leitura dos 14 contos que compõem Campo Fora.

 

Festejamos também em Cyro Martins a transposição espontânea, sem artifícios, que faz do falar típico da Campanha para o texto literário. E valorizamos, veementemente, a preservação desse linguajar, resultante do contágio de duas línguas, que terminou criando outra linguagem: uma linguagem híbrida própria do tempo e lugar. Pinço, quase ao acaso, um exemplo:

"Na certa que era coisa arreglada (...) E não era debalde. Havia muitos arrolhados atrás das moitas, de relógio na mão. E mais um: “Potreada buenaça. Botaram olada grande, aqueles. Pegaram um fundo inteirito ainda. E que pingaços! (...) Invitavam o instinto guerreiro dos índios".

Hibridismo que, diga-se de passagem, também caracteriza os habitantes da fronteira e se explica pela interpenetração de uma língua na outra, leia-se, de uma cultura na outra. Situação favorável à criação de um “eu duplo” - um “doble chapa”. (Doble chapa é aquele cidadão que possui dupla nacionalidade, vocábulo que vem de uma época em que os carros eram emplacados nas duas cidades). Esse cidadão - nem só brasileiro nem só uruguaio, que é o “fronteiriço”, tem o privilégio de não apenas conviver com duas culturas, mas de vivê-las na intimidade que somente a experiência do cotidiano pode proporcionar. O que parece ser bom e ser óbvio pela simples, mas não irrelevante razão, de que a incorporação de uma outra cultura representa um acréscimo de experiência e conhecimento, e uma abertura para o mundo - hoje plural e multipolar.

Além da valorização do texto pelo texto, a afinidade com o escritor Cyro Martins - reforçada por uma realidade comum, aliás, por ele magistralmente exposta - serviu, entre outras coisas, para nos fazer voltar no tempo e repensar a situação de pertencimento àquela particular região. E a partir daí, assumimos, com renovado olhar, os elementos que culturalmente nos constituíram no passado e, ainda, de alguma forma persistem. Fomos levadas a afinar nossa consciência de fronteiriças, também pelo viés da reflexão literária. E partimos para outras leituras afins: O Príncipe da Vila - do próprio Cyro Martins - é um bom exemplo, entre outros.  

Cyro Martins, já nesta primeira obra de juventude, desvia com brio o meramente regional e alcança a dimensão do universal. O motivo é claro: ao tratar da sua gente e do mundo que a cerca, aborda - com nobreza e simplicidade - os grandes assuntos de vida e morte. Lança um olhar compassivo e realista às pessoas e ao lugar que o viu nascer e fala não apenas sobre eles, mas também, e, sobretudo, através deles. Ainda por cima, encontramos muita riqueza poética em seu texto. Poesia em prosa, verdade, mas mesmo assim, poesia. E sabemos que a poesia é atemporal por excelência: não se esgota no aqui e agora.

Essa circunstância (do universal e do atemporal) que faz a distinção entre os grandes escritores e os outros dá a Cyro Martins presença definitiva no âmbito da literatura, garantindo-lhe o interesse dos leitores de hoje e dos que hão de vir. Em termos humanos, nada se parece tanto à ideia de “vida eterna” do que as obras de arte que resistem ao tempo. Sem hesitação, colocamos o livro Campo Fora no patamar das coisas que perduram. Creio que de um autor não se pode pedir muito mais.

 

                                                

               *Palestra realizada na sede do Instituto Estadual do Livro ( IEL)

evento CYRO MARTINS - 80 Anos CAMPO FORA - P. Alege -16 de abril de 2014 - IEL


* Carmen Maria Serralta é tradutora e escritora, autora de A fronteira onde Borges encontra o Brasil- vestígios de uma travessia. Porto Alegre. Movimento.