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Perspectivas da Relação Médico-paciente - Prefácio à 2a edição - 1981 E-mail
Estante do Autor - Ensaios


                                                                                                                               Cyro Martins

A relação médico-paciente, sem dúvida, vem se constituindo num tópico central da nossa profissão e ao mesmo tempo num problema que desafia nossa inteligência. Fora da psicanálise, nenhuma teoria explica em profundidade a natureza das influências recíprocas que ocorrem nessa relação. Trata-se, pois, duma questão fundamental, cada vez mais investigada.

Não me ocuparei aqui da teoria psicanalítica que fundamenta a filosofia clínica deste livro, pois o estudante de medicina e o médico que o lerem com atenção encontrarão, em quase todos os capítulos, passagens e comentários esclarecedores desta questão, principalmente no relativo à relação médico-paciente no grupo analítico.

A desenvoltura com que abordamos hoje o problema que dá título a este livro indica, por si só, que a medicina atual não apenas encontrou uma explicação racional para ele, senão que, concomitantemente, se operou uma mudança na concepção da imagem do homem. E isto porque se modificou o conceito da relação mente-corpo, coincidindo com uma alteração de atitude em face da imagem do homem e do existir. Acrescente-se a isso as vivências históricas do século.

É claro, entretanto, que não atingimos o nível de um saber definitivo, o que, seguramente, não representaria um ideal de cultura, porque fecharia o espírito humano para a história.

 

Qual será o sentido exato da definição da medicina como ciência e arte? Penso que essa definição se refere a uma dimensão do homem doente que ultrapassa os limites da tecnologia. É aí que falha a instrução médica, porque falta, para complementar o aprendizado profissional, esse algo que foge ao âmbito exclusivamente pragmático, qualquer que seja a especialidade, exceto, naturalmente, a psicanálise. Sem essa bússola, o clínico dificilmente conseguirá situar o paciente na sua ambiência social e muito menos penetrar na sua privacidade anímica. O que chamo de bússola, aqui, já foi chamado de "antropologia latente". Neste livro, salientamos a orientação que deve sobrepor-se aos fatos materiais e que tem como fim a busca do impalpável e invisível, sujeito, portanto, a não ser considerado científico.

Essa mudança de filosofia clínica, que leva a encarar o paciente do ângulo do psicossomatismo, infelizmente ainda está longe de se constituir uma praxe da prática médica. Nos centros médicos mais afamados, domina o fascínio da aparelhagem, que deveria ser usada como complemento das mãos e dos sentidos do médico, porém jamais como substituto onímodo da sua cabeça. Na assistência de massas, com raras exceções, impera o chute, abundantemente ilustrado pelo anedotário. Nos rincões mais distantes e atrasados, reina o tratamento puramente sintomático e o envio posterior, se o doente não melhora logo, para as cidades que dispõem de recursos, sobretudo raios X, que exercem uma atração hipnótica sobre as populações do interior. Naturalmente, esse fato obedece a mecanismos psicológicos profundos, mas não enveredarei por esse caminho, agora.

Todo esse complexo de circunstâncias provoca múltiplas reflexões. Delas nasceu este livro. E se a primeira edição esgotou em curto prazo é porque, mesmo os que acintosamente não querem saber dessa conversa fiada, sentem-se intimamente atraídos pela concepção realista da condição humana em geral e, como médicos, por esse enigma que é a pessoa do doente. A doença é relativamente de fácil diagnóstico. O paciente, porém, constitui um todo esquivo.

No referente à psiquiatria, faz aproximadamente cem anos que se intensificaram as pesquisas das causas orgânicas dos distúrbios mentais. Até aqui, esse esforço tem-se revelado infrutuoso. As enfermidades mentais contradizem a suposição de que, no homem doente, tudo depende de fenômenos biológicos caracterizáveis, mensuráveis, que teriam sua causa no estritamente orgânico.

O espírito que anima os autores deste livro, quiçá um tanto quixotesco, é o de difundir no meio médico brasileiro uma nova imagem diretriz da sua práxis no que diz respeito à relação médico-paciente e ao entrosamento psicossomático.

O problema intrigante corpo-mente ou, se preferirmos termos místicos, alma e corpo, sempre existiu. E talvez venha de mais longe do que se supõe a cogitação sobre qual das duas áreas, se a psíquica ou se a somática, está subordinada à outra. O certo é que, no passado, corpo e mente eram considerados entidades independentes. Esta cisão desapareceu no momento em que o homem, numa virada sensacional na história do pensamento científico, passou a ser enfocado como objeto de estudo das ciências da natureza. Provavelmente o passo fundamental das ciências do homem tenha sido a passagem do seu objeto de investigação, da condição de criatura da divindade, à de produto da evolução das espécies.

Evidentemente, não cabe neste prefácio que me alargue em considerações deste teor, que beiram o filosófico. O que importa assinalar é que, tanto podem existir doenças de base orgânica primária quanto doenças primariamente psíquicas. Porém, cada vez mais nos capacitamos de que a maior parte dos distúrbios da saúde se origina de anelos frustrados, vertidos dos instintos e tolhidos no seu fim pela moral dominante, que é do indivíduo e da sociedade ao mesmo tempo.

Esta breve explanação não implica o esquecimento dos incríveis males que afetam milhões de interioranos, por este Brasil afora. Males, cuja natureza por demais conhecida e proclamada, nem precisam ser rememorados. O adjetivo "incríveis" que emprego é para salientar esse absurdo criminoso, sobretudo se considerarmos os meios higiênicos e profiláticos existentes hoje, jamais imaginados em séculos passados. E ainda será oportuno salientar a eficácia de terapêuticas fundamentadas biologicamente. E mais os prodígios da cirurgia.

Nos centros populacionais sob os cuidados desses meios profiláticos e curativos, as doenças se individualizaram de maneira considerável. Foi visando principalmente esses setores mais civilizados que fiz, basicamente, as ponderações deste prefácio. Portanto, não incidi em nenhuma controvérsia acadêmica, alienante da realidade objetiva da nossa gente miserável, das multidões a que assiste a chamada medicina de massas, na sua tarefa ingrata, mais ou menos inconsciente, de reificação do paciente.

Para esta edição, muitos dos colaboradores refizeram seus artigos, retocando-os nos pontos que julgaram necessários de alguma alteração e ampliando-os em outros aspectos. Um número menor, entretanto, não quis mexer nos seus textos, por entendê-los ainda válidos. Evidentemente, têm razão, embora o coordenador, no seu empenho de oferecer uma obra de maior fôlego, em todos os sentidos, os estimulasse a retomar seus trabalhos. Quanto ao artigo do quintanista — "Estudante de Medicina Frente ao Paciente" —, ele achou que, como se trata de um depoimento relativo a uma determinada fase do nosso ensino médico, não deveria nem poderia ser alterado, quer na essência, quer na forma.

Por outro lado, aparecem nesta edição novas colaborações. O dr. Martim G. Graudenz escreve sobre "Aspectos Psicológicos da Paciente Mastectomizada", tema de suma importância na atualidade e abordado aqui com sabedoria, baseado numa ampla experiência.

 

Luiz Carlos Osorio contribuiu para o enriquecimento do livro com uma notável página sobre a relação médico-adolescente.

Outro dos novos colaboradores é o professor Amilcar G. Gigante, que aborda com agudeza e extraordinário conhecimento de causa "Perspectivas do Exercício da Medicina no Brasil". Fazia falta uma página com essa visão do exercício profissional para fechar o livro.

Por minha parte, acrescentei dois trabalhos de minha autoria. Um concernente à "Psicodinâmica da Consulta Médica" e outro sobre "Relação Médico-Paciente na Situação de Grupo-Analítico". Senti que se impunha que eu escrevesse sobre esses temas, dada a minha condição de psicanalista e de psicoterapeuta de grupo.

Dessa forma, o nosso livro reaparece com um novo vestido e um novo corpo. O fato da primeira edição ter esgotado rapidamente, já que se trata de obra científica, com um setor limitado de leitores, indica que sua publicação foi oportuna e necessária.

                                                                                                                                                                                                                                                                                      Porto Alegre, 23 de março de 1981.

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Leia textos do livro original e os acrescentados na edição comemorativa de  2010:

Perspectivas da Relação Médico-Paciente - 30 anos. Cyro Martins e Colaboradores. Porto Alegre, ARTMED, Reedição Ampliada 1970-2010.