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O livro como natureza-morta viva na era digital  E-mail
ERA DIGITAL - eventos virtuais e reais

                                                                               

                                                                            Maria Helena Martins      

                                                                               

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                              A verve argumentativa de José Antônio Pinheiro Machado tiraria de letra a minha comunicação se fosse o caso de uma contenda jurídica. Mas, como se trata de discurso de causídico travestido de Anonymus Gourmet e de uma mesa-redonda em lugar de um tribunal, acho até que nossas ideias podem se entrecruzar  sem  maiores atropelos.                     

 

                              Eu buscava, na internet, uma ilustração sobre o livro na era digital para dar conta do tema a desenvolver. Tive a sorte de deparar com a imagem acima. Bonita e forte. De imediato percebi que ilustrava com perfeição o meu feeling do tema, sem bem saber sobre o enfoque a dar. Mas logo associei-a a uma natureza-morta. Afinal, convencionalmente, naturezas-mortas representam seres inanimados, expostos para serem contemplados e não para uso ou consumo. Os adeptos convictos da era digital creem nesse destino para o livro. Ou pelo menos apregoam isso. No entanto, a descoberta dessa imagem provocou em mim uma curiosa sucessão de associações, de relações significativas na contramão desses vaticínios.  

 

                              A natureza-morta é um gênero das artes visuais que, antes da Renascença,  aparecia ocasionalmente como tema de afrescos e mosaicos. Desde a Antiguidade, tinha como propósito mostrar as qualidades de objetos, seres inanimados, suas formas, cores, composições e texturas. Mas é com o Renascimento que a natureza-morta emerge como um gênero independente.


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                                Desde que apareceram, o interesse dos abonados pelos quadros de natureza-morta vinha da intenção de decorarem suas habitações com representações de flores, frutas, animais domésticos, objetos seculares. Outro impulso à natureza-morta teria vindo da necessidade documental de se retratar as observações e descobertas, oriundas dos experimentos dos alquimistas medievais. Com o tempo, foram-se tornando foco de atenção específica dos artistas, quando formas, linhas e cores passaram a importar mais do que a representação naturalista. Não me detenho nos tantos pintores célebres que deram tratos especiais e consagradores à natureza-morta - de Caravaggio, a Cézanne, Picasso, Van Gogh, Matisse - , pois minha intenção aqui é outra.

 

                alt                                            http://fotos.sapo.pt/Lsr2LtzihiTpLD2zUjsq/

 

                                Para aproximar a natureza-morta do objetivo deste texto, devo relembrar os monges escribas, copistas e iluministas, nos mosteiros, seus trabalhos com a escrita e as tantas ilustrações, as iluminuras, nos livros que produziram na Idade Média. Sua finalidade era basicamente de transmissão de ensinamentos religiosos, com farto material narrativo-descritivo em ilustrações. Nessa arte, cenas e cenários eram compostos com elementos que, vistos separadamente, constituiriam naturezas-mortas inseridas nos livros com importante função de contextualizar espaço-tempo em que figuras humanas e seus feitos eram ditos e dispostos. Mas os livros que os monges produziam eram eles tidos e vistos como naturezas-mortas?  

 

                              Sem dúvida, os livros eram objetos de extremo valor material e espiritual, muito bem guardados em bibliotecas monacais e em castelos medievais, sendo cultuados por seus raríssimos e ricos proprietários. Tornaram-se fontes de sabedoria e sinal - simultaneamente - de religiosidade e poder. Algo muito bem caracterizado na obra de Umberto Eco, O Nome da Rosa, também lembrada por José Antônio Pinheiro Machado, nesta mesa-redonda.  

  

                              Esse romance importa, neste meu retrospecto diminuto, como exemplo de registro do contexto sócio-histórico, político-religioso, de concepções filosóficas da existência e das circunstâncias  do mundo medieval. Também importa como ilustração da representatividade do objeto livro e da biblioteca  como receptáculos de todas essas elocubrações, verdadeiras ou falsas, e suas relações com a realidade, em torno do que gira boa parte desse romance.  Lendo-o, o leitor iniciante descobre que o objeto livro pode conter uma vitalidade insuspeitada: desafiante, perigosa, divertida, mistificadora, reconfortante, esclarecedora, misteriosa, até mortal... Isso lhe confere uma característica muito especial: torna-o objeto de desejo.  Para alguns, sua posse é quase uma compulsão, como para certos monges medievais ou para certos bibliófilos mesmo em nossos dias.

 

                             Quando autênticos, os amantes dos livros sabem aproveitar ao máximo o que esses objetos proporcionam e compartilham suas propriedades. Nesses casos, suas bibliotecas, mesmo provocando certa reverência nos visitantes, são acolhedoras, exalam vivências, inspiram fantasias, sugerem descobertas possíveis ...

  

                              Não posso evitar um parêntese aqui, para lamentar o histórico desacerto com que os livros, a leitura e a formação do leitor têm sido tratados no processo educacional brasileiro. Desde quando as bibliotecas escolares eram abertamente transformadas em depósitos de livros e em espaços para recolher alunos insubordinados até quando a importância da leitura passa a ser alardeada pelos projetos modernosos e mistificadores. Muitos desses projetos, antes de  incentivarem a valorização genuína da leitura e dos livros, num processo coerente e continuado de formação de seus mediadores e de aproximação efetiva com o leitor, desperdiçam tempo e dinheiro com discursos vazios sobre a importância de ler, sem propiciar vivências, conscientes e reflexivas, prazerosas e humanizadoras  sobre a singularidade da experiência da leitura.  

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                           Volto à imagem inicial, mote deste texto. Mesmo sem saber sobre o conteúdo desses livros, pelo aspecto externo deles, seu porte, são sugestivos. Prenunciam histórias (sejam quais forem, ficcionais ou não), contendo conhecimentos possivelmente significativos. Capas, contracapas, lombadas, suas formas e cores levam-me à antevisão da textura de suas páginas, até à suposição de seu cheiro; despertam  minha  curiosidade, estimulam a imaginação, levantam suposições. Assim, a imagem acima, dificilmente deixa de se impor pela presença dos livros empilhados, meio displicentemente dispostos, mas sem dúvida puxando meu olhar de observadora para descobrir o que está escrito não só dentro deles, mas já em suas lombadas, numa foto talvez de propósito sem nitidez suficiente para uma leitura certeira. Fico, então, mais desejosa de saber quais seus conteúdos e já supondo sua importância.

 

                               E o tablet?  O tablet se escora, a meias, na pilha de livros - deslocado? Também nele não se lê o texto que está escrito. Mas se antevê uma escrita uniforme, sem maior atrativo, como o próprio objeto, no formato e na cor, tela e texto tudo insosso. Não há como fugir à comparação entre os dois conjuntos da imagem. As relações decorrentes das leituras sensorial e emocional superficiais que fiz são contudo suficientemente significativas.  Leituras forçadas pelo meu interesse de ocasião? Não creio.  Talvez se possa até dizer que o tablet se sobrepõe na imagem, mostrando-se à frente, com sua serventia, portabilidade, leveza, diante do peso dos livros; com sua capacidade de abrigar em seu sistema tantos e-books quantos aqueles livros todos e muitos mais... Mas fato é que a imagem está composta de tal forma que o olho do espectador, embora a anteposição do tablet e maior claridade sobre ele, se volta logo para o volume de livros, pluriforme  e multicolorido à esquerda, onde realmente há ideia de movimento, por mais periclitante, instável, que possa parecer o tablet.

  

                              Esse movimento é que me leva de volta à natureza-morta. Não à convencional, mas a uma natureza-morta viva - como Salvador Dali passa a identificar suas naturezas-mortas. Isso ocorre a partir do momento em que ele entende haver a presença, na realidade objetiva, de uma certa aura, imbuído que está da ideia de que a matemática e as descobertas científicas podiam ser incorporadas à pintura de naturezas-mortas, ilustrando como nosso mundo de objetos sólidos é composto de partículas  subatômicas em constante movimento.                                                                                         

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                              Não me passa pela cabeça uma comparação tão imaginosa quanto a de Dali. Mas a ideia de que o livro possa ser considerado uma natureza-morta viva de nosso tempo me ocorre. Trata-se de um objeto que tem sido, através dos séculos, valorizado como repositório da sabedoria humana. E sua sobrevivência física e seu conteúdo - seja qual for - se constitui em matéria dinâmica capaz de superar o tempo e o espaço em que foi produzido, persistindo e resistindo a inúmeras e infindáveis desditas da humanidade, através de constantes e sempre diversificadas leituras. Mais: penso que admitir o desaparecimento do livro, lembrando palavras de Roland Barthes, seria como admitir "uma forma de genocídio espiritual".  Impossível.