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O Amigo Cyro Martins* PDF  | Imprimir |  E-mail
Cyro Martins 100 Anos

Waldomiro Carlos Manfroi**


Quando Maria Helena convidou-me para falar de Cyro Martins como amigo, num dos eventos dos “Cem Anos do seu Nascimento”, percebi que ela me incumbia de uma tarefa singular. Singular porque, na minha manifestação precisava lembrar detalhes de foro íntimo entre duas pessoas que, por forças do destino ou outra conotação que se queira dar, se tornaram amigas. Por não saber bem então sobre o que devia falar, visto que outras pessoas abordariam sua extensa obra literária ou científica, voltei à carga para ver se entendia melhor sobre o que devia tratar a respeito do nosso pai Cyro Martins. Devo esclarecer que empreguei nosso pai, por lembrar, que assim chamávamos nosso ilustre terapeuta. Com a franqueza que lhe é peculiar, Maria Helena, então, me tranqüilizou, dizendo que não devia me preocupar, apenas gostaria que eu relatasse episódios da nossa amizade que se estabeleceu através dos anos. Em especial, das conversas que mantínhamos sobre medicina, sobre ensino médico e sobre literatura.

Se os esclarecimentos de Maria Helena deixaram melhor definida minha tarefa, nem por isso me tranqüilizaram. Pois, dei-me conta, naquele instante, de um detalhe sobre o qual não havia pensado: se cada amigo de Cyro contasse um pouco das suas vivências com ele, os relatos resultariam em inúmeras publicações, tal era sua generosidade. Para cumprir minha parte decidi, então, descrever alguns episódios que fortaleceram nossa amizade. E aproveitar para dizer que, embora distante fisicamente há 13 anos, Cyro Martins se encontra bem presente em cada situação difícil da minha vida.

Mas de que maneira poderia falar sobre a pessoa Cyro Martins e sobre nossa amizade, sem que meu discurso não tivesse nenhuma conotação, por menor que fosse, de capitalizar um pouco o imenso prestígio que Cyro Martins desfrutou e desfruta entre nós. Só pelo fato de participar, como um dos palestrantes, neste histórico evento, além de uma honra imensa, convenhamos, é uma oportunidade que me coloca mais próximo ainda do ilustre homem e amigo.

E, para início de conversa, devo dizer que minha presença neste evento, se deve porque Cyro conquistou grande parte de seu imenso horizonte sem perder a sensibilidade de continuar sendo o bondoso menino do Quaraí. Explico melhor. Cyro atingiu um singular patamar de destaque, regional e nacional, tanto na Psicanálise como na Literatura, ainda em vida, sem esquecer de suas origens e da sua gente. No seu fazer diário, conquistava um pedaço do horizonte, que era o limite do seu belo mundo, sem nunca deixar de levar consigo as lições de fraternidade, vivenciadas na infância, quando observava como se davam as relações humanas na política, nos negócios, nas revoluções, na venda de campanha do pai: Seu Bilo.

Tomei conhecimento do ilustre Psicanalista Cyro Martins, na década de 1960, quando um colega de faculdade me passou às mãos a primeira edição do seu livro Do mito à verdade científica. Não tive muito tempo para me aprofundar na leitura. As matérias da Faculdade, com suas provas inquisitivas, não me permitiam muitas fugas para outros saberes, como o que ali eram tratados. Muito menos, para voltar a me dedicar aos romances de outrora. Mas o pequeno livro ficou em minha mente, como algo bem distinto do que vínhamos estudando no Curso de Medicina, até então.

Bem, este não foi o motivo pelo qual podia se justificar uma amizade entre duas pessoas de épocas e vivências tão distantes no tempo e no espaço. Cyro Martins era um escritor e psicanalista famoso, que aparecia com bastante freqüência na televisão, nas rádios e nos jornais, para falar sobre novo livro que lançava. Via-o, ao longe, aos domingos, nos jogos do Grêmio Futebol Porto-Alegrense, porque nossas cadeiras ficavam próximas. Mas, também, não foi com o futebol que se estabeleceu nossa amizade. Podia ser. Na paixão pelo futebol acontecem tantos encontros...

Na verdade, tudo começou, em 1975, depois do meu regresso dos Estados Unidos da América do Norte, onde tinha passado um ano e meio para me aperfeiçoar na técnica da cinecoronariografia. Eu já havia definido minha caminhada: ia ser professor e pesquisador. Era jovem, otimista, trabalhador, idealista, alegre, casado, pai de três belos filhos. Tinha como limite para meu crescimento a dimensão da Pampa Gaúcha. Mas a vida começava a se mostrar um pouco diferente do que meus pais e o catecismo haviam me ensinado. “Na vida bastava ser honesto e trabalhador, o resto viria ao natural.” Não. A vida não era bem como minha mãe e a religião haviam-me ensinado. Assim que, em função dos meus trabalhos de professor, eu recebia o reconhecimento dos mais jovens, da sociedade e de outros pesquisadores, também, criava anticorpos. Vivíamos uma época de transição nas Universidades Públicas Brasileiras. A Cátedra Vitalícia, contra a qual a geração de Cyro Martins tanto lutara, estava sendo substituída pelas relações departamentais. Mas os tratos, na realidade, ainda obedeciam ao velho sistema da dependência hierárquica. Se meu espírito de pensador livre pedia rédeas rumo às novas relações departamentais, o limite de liberdade permanecia o mesmo da antiga relação. Meu pai que havia sido modelo e que me impulsionara à procura do saber, já não cabia nesse meu novo mundo, para pedir conselhos. Não sei se este duplo-nó se tornava visível para os colegas ou se foi o espírito de solidariedade de um deles que decidiu apenas me ajudar.

Tudo começou numa manhã de sábado, depois de uma calorosa discussão na sessão “Anátomo-Clínica”, que acontecia uma vez por mês numa das enfermarias da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Ao sairmos da acalorada discussão, sem preâmbulos, um colega sugeriu-me que fizesse análise. Sem me deixar oportunidade para perguntar algo mais, bateu nas minhas costas e saiu.

Nossa, que pedido, pensei. Eu nunca havia me detido para analisar esta possibilidade. Então, fantasias estranhas povoaram minha cabeça. A primeira, sem outras concorrentes, salientava-se: Estarei tão mal assim que até os outros se dão conta? Puxa, mas não deve ser tanto. Eu estudo com prazer, vibro com o que faço e com meu progresso, amo minha família. Amo a vida. Confuso, decidi falar com um professor mais velho. Ele me conhecia a mais tempo, na formatura eu fora o orador da turma, ele o paraninfo. Na ocasião, havíamos trocado idéias sobre os textos dos nossos discursos antes da cerimônia do “Juramento de Hipócrates.”

Depois de me ouvir, o professor explicou-me o que pensava sobre o assunto. Também fazia análise. Ajudava muito. O caminho da docência era apaixonante, mas árduo. Para quem decidisse escolher esta profissão, a análise era muito importante. Sempre se fica melhor do que se é. Nada mais do que isso. Começa o quanto antes. Tenho um nome para te indicar: Cyro Martins. Toma aqui o telefone dele.

Mas de que maneira eu podia escolher Cyro Martins? Torcer aos domingos, muito próximos, sem ele saber da minha existência, era uma coisa. Como paciente dele, era outra. Todos sabiam que não era possível a convivência do analista com seus pacientes, fora das sessões de análise. Mas o que fazer então?

Como não encontrasse resposta, decidi deixar para discutir com ele. Vesti o melhor terno e gravata. Conversamos. No final da entrevista, Cyro me disse que começaríamos em grupo e, conforme fosse me conhecendo, caso houvesse necessidade, passaríamos para o individual. Tratou-me com tanto afeto que não tive coragem de falar sobre as cadeiras do futebol. O tempo se encarregaria de dar a solução mais adequada, pensei.

E assim fomos progredindo no nosso relacionamento. Em cada semana, aprendia com o grupo a identificar e a diluir demônios, a conhecer melhor o porquê do agir de outras pessoas e do meu agir. A conviver, a entender, a respeitar, a dominar raivas. Eu não sentia necessidade de lhe perguntar se precisava tratamento individual ou não.

Sentia-me tão bem que tinha medo de estragar o que estava muito bom. O grupo falava, lamuriava, suplicava. Pai Cyro, sentado em sua poltrona a tudo e a todos acompanhava com um olhar repleto de atenção e de neutralidade. Intervinha, raramente, e  o grupo ia encontrando os possíveis caminhos.

Mas, mesmo que Cyro quase não falasse no grupo, eu passei a conhecê-lo cada vez mais e melhor, através de seus primeiros livros de ficção: Sem rumo, Porteira fechada, Estrada nova. Por intermédio da vida de seus personagens, percebi que Cyro conhecia muito bem o mundo das minhas origens. Ao contrário do que havia imaginado antes de conhecê-lo, ele não era aquele misterioso homem que tinha o poder mágico de aparecer, com alguma freqüência nos veículos de comunicação. Era só um dos nossos, do interior. Não fora, não daria vida tão autêntica aos “gaúchos a pé”. Vozes aos desgarrados das periferias da cidade e cores tão naturais aos acidentes geográficos por onde circulava essa gente toda. E era diferente dos escritores que eu já havia lido até então. Ele dava voz e vida a outras pessoas da campanha: voz e vez também aos perdedores. Aos que sobraram das transformações das fazendas de gado. Pessoas pobres com quem eu havia convivido na infância e na juventude. Pessoas que eu nunca havia encontrado em livro algum. Nos textos que lera até então, sobressaiam os heróis, o ufanismo da natureza, a fala dos vencedores. Vencedores da política e dos negócios. Através das personagens do Cyro, fui ouvindo o eco da sua voz e conhecendo quem era aquele grande homem. E, ao entendê-lo melhor, meus receios de uma maior aproximação entre nós, foram se atenuando.

Por meio dos livros, fiquei sabendo também que seu Bilo, o homem da venda de campanha, era o pai do Cyro. Para nos aproximar um pouco mais, meu pai também tivera uma venda de secos e molhados, de ferramentas a remédios, numa pequena vila do interior de Palmeiras das Missões, Pinhal, onde morei dos 6 aos 16 anos. As personagens que circulavam pelas duas vendas eram motivo de atenção e de curiosidade de nós meninos. Embora três décadas nos afastassem no tempo, os problemas ainda eram os mesmos, pois a venda do meu pai ficava situada numa região das Missões, onde na década de quarenta, não havia luz, água encanada e ruas calçadas.

Na década de 1920, no armazém do seu Bilo, os políticos da oposição ao sistema “Borgista” instituído no Estado, faziam morada em época de campanha eleitoral.  Na venda do meu pai, na década de 1940, por ele ser também Juiz de Paz e o mais influente cabo eleitoral das redondezas, os políticos desfiavam suas promessas.  Com dez anos de idade, ele me levava aos comícios para ver como falavam bonito os homens da cidade.

Minha relação com Cyro Martins começou a se tornar mais próxima, quando, depois da sessão do dia oito de novembro de 1979, me pediu que ficasse porque precisava um particular comigo. Temeroso por imaginar que iria me propor tratamento individual, aguardei, em pé, que voltasse depois de se despedir dos outros pacientes. Quando voltou, sentou-se à mesa, tirou da gaveta um livro e escreveu uma dedicatória. Depois, entregou-me o volume, fazendo uma emblemática observação: o livro é para os filhos, mas não estás proibido de ler.

Sem saber o que falar, além do “muito obrigado”, abri a folha e, surpresa, em baixo do título Um menino vai para o colégio, havia a seguinte dedicatória: “ Para Luciana, Carlo e Angélica, com o abraço do Cyro.

Mas então o meu analista prestava tanta atenção em mim, que já sabia o nome dos nossos três filhos? Fiquei me perguntando.

Assim que comecei a ler as primeiras páginas do livro, entendi porque o Cyro me olhava com tanta atenção, quando eu falava de minha vida de menino, lá do interior, no meio de índios. Possivelmente ele revivia comigo, tudo o que fora na sua infância e juventude.

Vejamos, então, as semelhanças na página 24 de Um menino vai ao colégio:

Entretanto, quando Argeu se dispunha a falar das coisas da cidade, dos seus companheiros de quadrilha dos “cow Boys”, do cinema e do Overland do pai, Carlos escutava com avidez e com certo acanhamento, desejando, no fundo, poder também um dia participar daquele outro plano de vida. Assim aos poucos, o convívio do primo lhe foi tornando mais tolerável as palavras do pai, repetidas com freqüência à hora do almoço:

- É você está se parando homenzito... Precisamos ir pensando no colégio...

Dona Alzira desconversava, puxava logo outros assuntos, para afugentar a idéia terrível da separação.

Seu Afonso, homem positivo, não deixava passar sem uma réplica imediata o procedimento da mulher:

- Bueno, Bueno!... Daqui a bocado temos lágrimas.

Caía um silêncio pesado de expectativa sobre a mesa.

- Mas ele ainda é tão pequeno, Afonso! - arriscava, por fim, a mulher.

O estancieiro largava os talheres, recostava-se sobre o espaldar da cadeira e não se continha.

Então tu entendes que eu vou permitir que o menino se crie aqui, no meio das vacas e dos cavalos, para nunca passar de um pafuera?(Frouxo e grosso).  Não, senhora, ele não há de ser burro como o pai.

A conversa do meu pai comigo era muito parecida. Só que não acontecia à mesa, na frente da minha mãe. Ele tinha outro ritual de investida, para com o filho xucro. Marcava encontro em seu gabinete, onde e quando tratava assuntos mais sérios.

Depois do almoço de domingo, pediu que o acompanhasse ao seu escritório porque precisava ter uma conversa séria comigo. Já sentados, falou sem rodeios. “És o segundo homem dos meus filhos. Teu irmão mais velho não pode mais estudar. Já tem dezenove anos e preciso dele para tocar o armazém e a venda. Ele é meu braço direito. Mas, ultimamente, venho matutando. Como os negócios andam bem e tu já passaste por todas as séries da escola aqui da vila, eu estou sonhando mais alto. Gostaria que me desses uma das maiores alegrias da minha vida: um filho com o Ginásio completo.”

Na página 29 de Um menino vai ao colégio, lê-se: Desta vez, após ter posto o cunhado a par dos preços correntes do gado, Guilherme passou logo ao assunto que mais o interessava no momento: o do colégio para Carlos.

Passado dois anos da minha negativa de me afastar da família para estudar na cidade, meu pai, ao chegar de uma viagem, chamou-me para outra conversa. Sem explicações foi dizendo que tinha encontrado um ótimo lugar para eu continuar os estudos. Um ginásio novo, recém inaugurado, na cidade de Sarandi. Podia muito bem arcar com as despesas e realizar, de vez seu sonho.

Bem que tentei argumentar que não podia estudar na cidade porque não conseguiria me acostumar com a vida longe da família e das minhas vivências matutas. Mas os argumentos do meu pai foram tão convincentes, quase súplica, que decidi concordar com sua perspectiva de ingressar no recém inaugurado Ginásio Sarandi.

No final da sessão do dia dezesseis de outubro de mil novecentos e oitenta, Cyro, outra vez, pediu que ficasse depois da sessão. Mais tranqüilo do que na primeira vez, por observar que puxava outro livro da gaveta, fiquei aguardando. Depois de escrever a dedicatória, alcançou-me dizendo: “Em primeira mão. Quero que leias e me digas o que achaste.”

Encabulado, pela deferência, abri a capa do livro A Dama do Saladeiro - e, na primeira página, encontrei outra agradável surpresa: Para os queridos amigos Lília e Waldomiro Manfroi, com um abraço do Cyro Martins.

De novo, assim que comecei a ler seus contos, fui me identificando com o passado do Cyro e de modo particular com o conto: A formatura. Vejamos o que se encontra nas páginas 51 e 52. No dia da formatura do estudante de medicina, ao voltar para a pensão, se dirige ao quarto da Ritinha, para lhe aplicar a costumeira injeção na veia para tratamento de tuberculose pulmonar:

Fiquei uns minutos, quem sabe se meia hora ou cinco segundos, considerando a inutilidade – uma verdadeira farsa, se não encerrasse um valor mais humano que químico da droga – das picadas diárias naquelas veiazinhas por onde circulava um pálido sangue minguado.

- Está pronta a seringa, doutor.

Sim, vinha da própria doentinha, expressando uma ânsia de querer viver, a voz que me surpreendeu no instante que começava a não acreditar na possibilidade de que em sua laringe ressoasse uma palavra sequer, quanto mais uma frase.

Serrei a ponta da ampola. Enchi a seringa. Passei a borracha em volta do bracinho delgado. As veias encheram-se mal. Mesmo assim consegui espetar a agulha numa delas, uma agulhinha curta, a propósito, de bisel afiado e calibre fino. Cuidadosamente, fui injetando o líquido claro, pois aquela seria a última injeção que aplicaria na menina. Quando o êmbolo trancou no fundo, puxei a seringa. A operação transcorrera esplêndida.

-  Não doeu nada, doutor.

- Nem uma dorzinha?

- Nada.

Mas onde diabo fora parar a agulha? Foi a pergunta súbita que me fiz, fixando, pasmo, o canhãozinho dourado embutido no bico da seringa. Fiquei confuso. E instintivamente levei a mão ao braço da menina, comprimindo-o com violência. Ela soltou um “ai” que foi menos de dor que de susto da minha cara transformada. Mas continuei a apertar-lhe os músculos débeis cada vez com mais força, trêmulo, fulo, o coração a bater sacudido por um tufão de medo. E só larguei o bracinho frágil ao constatar que a menina embranquecia e entrava em desfalecimento. Fitando-lhe o rosto imóvel, exclamei: morta! Recuei, levando as mãos à face, como quem quer esconder dos próprios olhos uma realidade tenebrosa. Uma única explicação me ocorrera para aquilo, obsedante: a agulha havia subido pelas veias do braço, penetrado na subclávia e, finalmente, ferido o coração! Bela estréia, ótimo começo, no dia da formatura...

Imobilizado na beira da cama, braços caídos em derrota, olhos fixos na lividez de Ritinha e dentro de mim nenhuma esperança de salvação. Eu pensava em levantar-me e fechar a porta, para ficar só com a minha vítima, purgando desesperadamente a minha caiporice. Por fim, chamaria dona Antônia. Que remédio! E que reboliço iria convulsionar a pensão!. Abaixei as pálpebras. Tudo embaralhando, turbilhonando em redor. Já ouvia rumor de passos de pessoas estranhas, entrando atropeladamente para ver, bisbilhotar, dar fé. Olhares curiosos de gente querendo conhecer detalhes do fato, e como foi, como não foi, ora já se viu uma desgraça igual quando menos se espera...  Ouviam-se murmúrios de suspeitas, as de sempre nessas ocasiões. Seria imperícia? Alguém levantaria a hipótese de que o jovem médico era partidário da eutanásia. Um escândalo. A polícia chegando, o corpo sendo removido para o necrotério, para ser necropsiado. E no coração encontrariam o corpo de delito.

Dez, vinte, trinta segundos, um minuto? Era-me impossível avaliar que tempo durara minha perplexidade. Quando tornei a encarar a doentinha, percebi o leve arfar das narinas. As pupilas eram duas tristezas geladas.

Desviei o olhar para baixo da sua mesinha de luz. Um fiozinho metálico luzia entre duas tábuas do assoalho. Sem comentários, me agachei e apanhei a agulha. Sim, era ela, a bandida.

Ao deixar o quarto, notei a exaustão que pesava sobre meus ombros e não pude fugir à comparação clássica: mãos de chumbo me seguravam.

Para constatar a coincidência entre a ficção do Cyro com mais um fato real da minha vida, contei-lhe o que acontecera comigo quando estudante do segundo ano de medicina.

Para conseguir comprar livros e o instrumental que precisava a cada ano da faculdade, eu trabalhava de auxiliar de médico num dos serviços de urgência da cidade. Com o passar do tempo, eu ia aprendendo mais coisas práticas num serviço e emergência e adquirindo conhecimentos na Faculdade. Então, após ser julgado apto pelos colegas mais velhos, passei a integrar a equipe dos estudantes que ajudavam os médicos a prestarem atendimento domiciliar aos pacientes. Naquela época, não havia serviços de urgências especializados e nem as unidades de terapia intensiva, móveis e hospitalares como temos hoje. Os médicos faziam o que lhes era possível. Entre outras providências, pediam para a família contratar um estudante de medicina da equipe que eles já conheciam. Estes ajudavam a aferir o pulso, a pressão; anotavam num gráfico. Sabiam lidar com o tubo de oxigênio e com os frascos de soro e aplicavam injeções.

E assim, dentro desse mundo cheio de incertezas e de ensinamentos, vi, muitas vezes, amigos de pacientes conversarem descontraídos no “living” social, enquanto, no quarto contíguo, o doente e eu morríamos abraçados. Eu, um pouco, ele, de vez.  Nos palacetes de famílias abastadas, chocava-me a indiferença dos mais velhos quando na presença da morte. Eles me davam a impressão de que todos haviam morrido muitas vezes e, de tanto morrer, haviam se tornado mais fortes, coisa que, em absoluto, acontecia comigo.

Certa ocasião, eu acompanhava um desses pacientes num apartamento de luxo, do Bairro Moinhos de Vento. Enquanto eu aguardava a visita do médico, ia cumprindo minhas obrigações. Contava o pulso, media a pressão, controlava o gotejamento do soro e fazia as anotações na folha de evolução. As pessoas gostam muito de falar quando estão enfermas, em especial, com os mais jovens. O doente estava falando calmamente e, de súbito, sua língua foi ficando grossa e a fala arrastada, embora continuasse com aspecto sereno e esboçasse um leve e disfarçado sorriso. Como estava na hora da injeção, apliquei-a, lentamente na veia, conforme a prescrição. Quando terminei de injetar o líquido, a voz do homem sumiu, seus olhos se fixaram num ponto distante, a respiração cessou e a vela da vida apagou, bem como eu havia presenciado no primeiro paciente que vira morrer de infarto, meses antes.

A mulher do enfermo, que até então se mantivera numa atitude expectante, acorreu em prantos e se lançou sobre nós e, gritando, pedia que eu fizesse alguma coisa, que não o deixasse morrer e dirigindo-se ao marido, pedia que não a abandonasse. Por fim, de joelhos, com as mãos cruzadas e dirigidas para o alto exclamava: “Ajude-me, meu Deus misericordioso!”

Eu, de pé, perplexo, com a seringa na mão, qual arma penetrante que acabara de abater uma vítima indefesa, gritava com o mesmo desespero: Calma!... Calma!... Calma minha senhora!

E, baixinho, só para mim: Não acorde... Não deixe que ele presencie o horror da cena que nós estamos protagonizando.

Ao relatar-lhe este episódio, Cyro aproveitou para me contar outro fato interessante da sua vida acadêmica:

“Quando chegou o dia da matrícula da Faculdade de Medicina, em 1928, eu estava seco de dinheiro. Por intermédio de meu amigo também gremista, Lino de Melo Silva, fomos pedir os préstimos do então famoso professor e político republicano, Aurélio de Lima Py. Ele não vacilou. No outro dia, fomos juntos na Secretaria do Interior e saí de lá com a matrícula garantida para os seis anos do Curso de Medicina”.

A partir de então, em cada livro do Cyro acontecia entre nós um reviver. E quando nos encontrávamos, depois de um lançamento, ocorriam-me as lembranças das coincidências. Para um escritor, nada melhor que ouvir de um leitor detalhes de seus personagens. Para mim, como leitor, além da honra, havia algo de mágico, por desfrutar da companhia de um homem tão ilustre. Mas não era só a psicanálise e a literatura que nos unia. Como jovem professor da Faculdade de Medicina, com alguma freqüência, expressava minhas preocupações entre o aprimoramento técnico da medicina e o afastamento dos médicos da pessoa. Preocupação que já havia manifestado no meu discurso de formatura em 1965 e que via se agravar com o passar dos anos. Foi então que o rumo da nossa conversa se ampliou. Reconhecendo nossas dificuldades para manter uma boa relação médico-paciente, enquanto desenvolvíamos o tripé ensino, assistência e pesquisa, Cyro não se quedou nas lamentações.

“Vamos fazer um seminário sobre o tema: Perspectiva da Relação Médico Paciente!”

Da palavra, partiu para a ação. Em uma semana, ele tinha a adesão à proposta de 20 professores de renomado conhecimento científico e técnico em suas áreas específicas. O local escolhido fora o que havia de mais efervescente no meio médico na época: O Hospital de Clínicas de Porto Alegre.  Durante um sábado inteiro, no anfiteatro, com seus duzentos e cinqüenta lugares ocupados, os vinte professores apresentaram seus trabalhos sobre o tema. Para mim, a ocasião foi extremamente gratificante. Tinha motivos. Além de fazer parte de um grupo da elite médica, era liderado pelo doutor Cyro Martins. Na ocasião, recém havíamos montado o Laboratório de Hemodinâmica do mesmo hospital. Com os conhecimentos e os recursos tecnológicos que meu estágio nos USA me proporcionou, projetei numa grande tela, pela primeira vez, um exame cinecoronariográfico, para um público numeroso. Resta lembrar que, naquela época, o cateterismo cardíaco, com estudo das coronárias, era pouco conhecido, e muito temido. Depois de projetar o filme e apontar onde se encontravam as severas obstruções arteriais e justificar porque o paciente devia se submeter à cirurgia de revascularização miocárdica, expliquei porque fora escolhido aquele paciente. Como estávamos num seminário que tratava da relação médico-paciente, a informação até aí nada tinha a ver com os propósitos estabelecidos. Podia parecer mais um ato de exibicionismo. Decidi, então, relatar a história completa do paciente. Ele sofrera infarto do miocárdio na sua cidade, no interior do Estado e me fora recomendado pelo colega que o atendera. Depois que informei ao paciente que ele precisava se submeter à uma cirurgia cardíaca, ele me pediu se não podíamos conversar, antes de tomar a decisão, num lugar mais reservado. De preferência no consultório. Respondi que sim. Na hora do encontro, a sós, assim que começou a falar, desandou num choro compulsivo. A  muito custo conseguia dizer que uma tragédia familiar estava destruindo seu coração. Incentivei para que me contasse.

Depois de uma pausa, entrecortada por soluços, decidiu revelar qual era seu drama: Tinha outra mulher!

Como não eu fizesse nenhum sinal de surpresa e nem lhe perguntasse algo mais, ele continuou descrevendo com detalhes seu problema maior. Há muitos anos, mantinha outra família numa cidade próxima a deles. Com essa mulher, tinha uma filha de dez anos. Com a mulher legítima, não tivera filhos. Mas gostava muito dela. Se ela soubesse que tinha outra, seria capaz de cometer uma loucura. Se ele reconhecesse a filha em cartório e sua mulher ficasse sabendo, então, nem sabia o que poderia acontecer. E se morresse durante a cirurgia, deixava a filha desamparada.  Era esse dilema que estava destruindo seu coração.

Apresentei o caso, para mostrar que atrás de uma doença, não raro há uma pessoa com seus conflitos. Conflitos esses que nenhuma tecnologia consegue identificar e que muitas vezes pode ser a origem de todo o problema.

Todo o seminário fora repleto de histórias semelhantes e um grande sucesso. Mas Cyro Martins não se contentava com conquistas temporárias das ações que desenvolvia. Argumentava que, se o seminário não fosse publicado, em pouco tempo, cairia no esquecimento e somente as pessoas que estavam lá ficariam sabendo a respeito de um tema tão importante. Já havia conversado com o diretor da Editora Artes Médicas. Ele publicaria o trabalho. E seria o primeiro livro do gênero editado no Brasil. Todos os participantes aquiesceram. Cada autor teria o prazo de 30 dias para entregar-lhe o texto pronto.

Vencido o prazo estabelecido, todos os textos foram para impressão e o livro, com o título Perspectivas da Relação Médico-Paciente foi lançado, com uma grande festa de celebração, em 1981.

Depois da publicação do livro, continuávamos a jantar juntos e nossa convivência se tornou ainda mais sólida. Além das festas que promovia para o lançamento dos seus livros, Cyro protagonizava uma celebração especial no dia de seu aniversário, 5 de agosto. E, para surpresa minha, nos convidou, a mim e minha mulher Lília, para a festa que oferecia em seu apartamento. Foi então que nosso círculo de amizade se ampliou, pois ficamos amigos da esposa Zaira, da filha Maria Helena e do Cláudio.

Quando chegou o fim do ano de 1981, dei-me conta que Cyro me havia ensinado outras lições que nunca explicitara: as de celebrar a alegria do viver. No meu fazer de médico pesquisador e de professor, a minha vida andava muito bem. Tinha defendido o doutorado e a tese fora aceita no Congresso Mundial de Cardiologia a se realizar no Japão. Era presidente eleito da Sociedade Gaúcha de Cardiologia. Os filhos cresciam bonitos. Tínhamos nos mudado para  casa nova, construída sob nosso olhar e o ouvido do Cyro, tijolo sobre tijolo. Um dia, pensei: com todos esses ventos favoráveis, vou dar uma festa no meu aniversário, como o Cyro costuma fazer. Daí surgiu um dilema: convido ou não convido o Cyro e sua família? Como vou convidar meu analista para minha festa de aniversário e em casa? Ficava me torturando. Mas como deixar de convidá-lo se ele é a pessoa que mais estimo? Naquela época, Cyro era meu pai bom, que havia ocupado o lugar do pai verdadeiro. Depois de muito confabular com Lília, decidimos que deveríamos convidá-lo. Num dia, depois da sessão de análise, pedi para ficar mais um pouco porque, agora, eu precisava um particular. Assim que ficamos a sós, fiz o convite. Cyro abriu um largo sorriso, como lhe era peculiar nas horas de alegria e me respondeu: “Lá estaremos nós quatro, com muito prazer” e me deu um abraço apertado...

Vencida a etapa do convite, veio a da escolha do cardápio. Pedi para a Lília que deixasse comigo, pois faria, pessoalmente, um prato especial.  “Prato especial?” perguntou-me, Lília, assustada. E argumentou com, toda razão, que o único prato que eu sabia fazer era churrasco. E perguntou-me com toda ênfase de quem quer convencer: de onde tinha a coragem de assar churrasco para tantas pessoas ilustres e o Doutor Cyro com sua família?

E, quando respondi que não era churrasco que pretendia oferecer, precisei, , explicar melhor no que pensava, para ver se a convencia. Celebrava meu aniversário no dia 6 de janeiro, dia de Reis. Queria oferecer aos amigos e ao Cyro o prato que mais eu havia gostado na minha vida: Um dourado assado. Só havia comido a iguaria uma única vez, mas nunca havia esquecido. Aprofundei a explicação sobre a origem dos meus estranhos conhecimentos no preparo do peixe. Quando fizera dez anos, um amigo do pai, pescador das barrancas do Rio da Várzea, ao ficar sabendo que meu aniversário acontecia no dia de Reis, alertou meu pai que a data devia ser comemorada com o rei dos peixes. E assado. Antes de se despedir, o homem fez questão de salientar que deixasse com ele. No dia 6 de janeiro chegaria bem cedo e prepararia o almoço.

No dia do aniversário, o homem chegou carregando na carroça dois enormes dourados e envoltos em folhas de bananeira. Passei o tempo todo a seu lado, para ver de que modo o homem prepararia o peixe. Observei tão bem que podia fazer. Depois de convencer minha mulher de que faria um  Dourado especial, parti para ação.

Na véspera do aniversário, à tarde, saí à procura do rei dos peixes de água doce. Vai dar certo, vou encontrar o bicho, repetia para mim a caminho do Mercado Público. Mas a segurança não era muita. Depois daquela distante data, eu nunca mais vira um dourado. Com o desmatamento por causa das lavouras de trigo e soja, o peixe podia ter desaparecido. Mas não. No Mercado Público encontrei dois exemplares de seis quilos cada um. Eram os únicos. No dia do almoço, às dez horas, os dois peixes, temperados de véspera, foram ao fogo.

Enquanto os convidados foram saboreando o dourado, os elogios ao peixe e ao cozinheiro aniversariante se sucediam. No final da festa, a comprovação de que eram sinceros: Cyro Martins decretou que o dourado assado seria tornado prato oficial em cada seis de janeiro, para aquele grupo de amigos.

E, assim, foi durante muitos anos.

Numa dessas belas fases da vida, num jogo de futebol com amigos fraturei o osso perônio da perna esquerda. Engessado até a bacia, fiquei imobilizado em casa, sem poder cumprir as inúmeras obrigações de professor, médico, pesquisador e de Presidente da Sociedade Gaúcha de Cardiologia. Para me ocupar, comecei a escrever dois livros: um de cardiologia clínica, onde se incluía um capítulo sobre embolia pulmonar e outro de ficção. Tudo andava bem, com minhas distrações, até que um dia, me senti muito mal: sensação de morte iminente e pontada na base dos pulmões. Dei-me conta, então, para meu espanto, que estava sendo acometido de embolia pulmonar. Feito o diagnóstico, socorrido por serviço de urgência, fui internado na UTI.

Numa manhã, depois de passar a noite com muitos pesadelos ou delírios, acordei confuso, sentindo-me muito mal e enxerguei o Cyro, ao pé da cama.

Olhou-me, com olhar de piedade e, com a calma que lhe era peculiar dissera-me que, assim que ficara sabendo do problema, decidira me visitar bem cedo. Tranqüilizou-me, os médicos lhe haviam dito que estava indo tudo bem... Sem condições de responder, porque se falasse as dores nas pleuras se tornavam insuportáveis, chorei um disfarçado sorriso. Quando acordei, mais tarde e não encontrei o Cyro, fiquei imaginando se o que eu vira era verdadeiro ou meu desejo tinha criado a imagem. Mas, ao saber, pelas enfermeiras, que eu havia recebido a visita do doutor Cyro Martins, fiquei mais tranqüilo e esperançoso. Precisava viver, para agradecer ao meu médico e amigo.

Sobrevivi.

Passei por muitas outras dificuldades, e também sucessos, e o Cyro sempre presente. Não satisfeitos com dois encontros de aniversários por ano, passamos a nos encontrar, com mais freqüência, em rodas de churrasco, na minha casa, com o mesmo grupo que freqüentava a roda do dourado assado. Na semana que lhe contei que eu estava me ensaiando para escrever um romance, me convidou para que fosse com ele ao jantar da Associação Gaúcha de Escritores. Lá, então, com a bondade que lhe era peculiar, apresentou-me a todos, fazendo questão de dizer bem alto meu nome: fulano, cardiologista e escritor.  Foi uma noite maravilhosa! Eu havia participado de um jantar junto com os escritores de maior evidência na época. Tudo por causa do Cyro.

Em 1985, quando fui eleito Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, passei a faltar muito às sessões de terapia e, em comum acordo, encerramos o tratamento, mas continuamos com os churrascos periódicos e com Dourado assado no dia do meu aniversário.

Outro fato que merece destaque, para se entender o compromisso do Cyro com os aspectos humanísticos da medicina, ocorreu em 1986. Telefonou-me, de tarde, dizendo-me que, à noite, haveria uma reunião de médicos, com a finalidade se fundarem a Sociedade de Medicina Psicossomática. Fazia muita questão que fosse com ele.

Fomos. Durante sua manifestação Cyro Martins se mostrava o mais entusiasmado do oradores que o antecederam com a idéia de criar a sociedade. E salientou que sua presença no ato, junto com o Diretor da Faculdade de Medicina, era prova do quanto estávamos preocupados com o futuro do ensino médico e na boa relação médico-paciente. Na ocasião, Cyro foi aplaudido, de pé, durante longo tempo, como se fora um ator de palco, no final de uma memorável apresentação.

Ao lançar O professor, em 1988, Cyro Martins fez-me lembrar de outro episódio que fora decisivo para que eu aceitasse o pedido do meu pai, para continuar os estudos na cidade.

Vejamos, mais umas coincidências. Na página 126, há uma descrição da personagem Professor semelhante a um fato verídico que presenciei na minha infância:

Depois de uma semana de viagem à sua terra natal, professor Lucílio Fuente Caravaca, regressa ao rancho em que instalara o colégio, no fundo da fazenda.

Às nove e meia da noite, Lucílio ia chegando ao colégio. O guaipeca latiu. Manuela e Chiquinha foram esperá-lo na frente do rancho. Lucílio apeou, deu boa-noite para as duas e logo foi tirando a mala de garupa com os jornais e as duas indefectíveis garrafas de cachaça. Manuela agarrou as rédeas e puxou o cavalo para a ramadinha dos fundos. Enquanto isso, Chiquinha botava  uma vela nova no castiçal e colocava em cima da mesa da sala de aula, onde já estavam um prato e uma colher.

- Me esperavam hoje? - perguntou o professor.

- Sim, senhor.

- Por que hoje, Chiquinha?

- Por que achemo que já era tempo do senhor voltá pra nóis. Era perdição demais o senhor continuá ausente.

- Pois eu também me lembrava de vocês.

- Que bom que o senhor se lembrava, professor. A inté nem acredita.

- Mas é para acreditar. Não estou brincando.

-Qué que eu tire suas botas, professor?

- Ora, que pergunta! Quero.

Lucílio passou para o quarto e sentou na cama. Chiquinha ajoelhou-se na sua frente. Ele simplesmente abriu as pernas e a puxou sobre si. Os seios novos e rijos da rapariguinha roçaram-se nele.......Ouviram-se rumores do lado de fora. Manuela certamente já vinha de volta. Ela sabia, de quando era jovem, o quanto um corpinho novo era apetecido pelos homens. Chiquinha escorregou para trás e num ápice, encontrou-se com a mãe na porta da aula que dava para fora. Explicou-lhe de passagem que ia esquentar o guisado e o arroz para o professor. Manuela entrou e foi logo se abraçando no professor e lhe dizendo das suas saudades. E como ambos sabiam que  Chiquinha não voltaria rolaram na cama e foi um deus-nos-acuda.

De fato algo semelhante aconteceu com meu professor Hilário, na minha juventude.

Ao contrário da narrativa explícita ocorrida entre o professor Lucílio e as duas mulheres da casa, mãe e filha, o fato ocorrido com o professor Hilário fora sempre repleto de mistérios. Ao chegar à vila Pinhal, professor Hilário se instalou na casa de uma família que tinha uma filha de dezesseis anos. A despeito de ser muito admirado por todos, um dia, depois de o pai da moça viajar para a cidade e voltar com dois policiais, professor Hilário foi preso e levado de carro para a cidade. Corria à boca-pequena, na vila, que ele tinha feito mal à moça da casa onde morava. Na delegacia fora-lhe proposto: casamento ou cadeia. Ninguém soube explicar o porquê da decisão, quando ficaram sabendo que o professor Hilário optara pela cadeia em Porto Alegre. Voltou dois anos depois, modificado no modo de falar, no de vestir, no de se portar.

Com as reservas do seu trabalho de preso na Capital e com o curso de ourives que fizera, abriu a primeira relojoaria da vila. Depois de estabelecido, procurou o pai da moça e propôs casamento. Queria reparar o mal que fizera e dar um pai para o filho pequeno.

As novidades trazidas da Capital, pelo professor Hilário, cinema, futebol, os programas de rádio a que assistia, foram decisivos para que eu aceitasse o pedido de meu pai que queria ter um filho com o ginásio completo. Falava completo porque ele sabia de diversos jovens que haviam tentado, mas que não conseguiram chegar até o fim.

Nos meses de janeiro e fevereiro de 1952, com a ajuda diária do professor Hilário, revisamos toda a matéria para o exame de Admissão. Nos primeiros dias de março, partimos, meu pai e eu, de ônibus, rumo à grande aventura: prestar Exames de Admissão, visando  ao ingresso no Ginásio Sarandi. Ao morar no internato, passei a viver os mesmo rituais descritos pelo Cyro no Um menino vai ao colégio. A observância rigorosa do horário do silêncio no dormitório. As rezas antes de apagarem as luzes. A sineta do padre para despertar a turma, às cinco e meia da manhã, visando à primeira tarefa do dia: a missa das seis. As matérias, os recreios, as redações, as aulas de Latim, as escassas cartas da família. A saudade da querência distante. Por fim, a esperada viagem para as férias do fim de ano.

Quando terminei meu primeiro romance, todo encabulado, levei –o para que Cyro desse uma olhada. Ficou com o texto e me pediu um tempo. Fez observações, correções e me disse: publique. Para quem começa, é muito difícil, mas não desanimes e continues escrevendo. Logo depois de eu lançar o Tempo de viver, Cyro publicou, no Segundo caderno do Jornal Zero Hora, do dia 19 de dezembro de 1992, uma longa análise sobre o livro, intitulada: O fim da floresta, a saga dos colonos, o tempo de viver, de Waldomiro Manfroi. A sóbria análise me transmitiu dois sentimentos. Um de satisfação pelas descobertas que Cyro fizera de passagens que eu não tinha me dado conta. Outro, de expectativa. Mais tarde vim a entender que o sentimento de expectativa se relacionava a mais uma lição que me deixava. Nas entrelinhas de sua análise, como tantas vezes Cyro fizera, sem explicitar, encontrava-se um rico sub-texto, que podia assim ser traduzido: havia muito que melhorar.

Por necessidade de trabalho na Direção da Faculdade e pelas viagens freqüentes a trabalho, troquei parte das horas que eu dedicava à pesquisa pela leitura de ficção e pela escrita do segundo romance. Mas não interrompi os encontros periódicos com a turma do churrasco e dourado de aniversário. E não faltei a nenhuma sessão de autógrafo de cada novo lançamento que Cyro fazia. Quando eu demorava um pouco mais para formular o convite para o churrasco, Cyro me ligava e argumentava, em tom de brincadeira: “a vida é muito bonita, pede uma costela gorda. Não te parece?”

Quando publiquei meu segundo romance, O último vôo, lá estava o Cyro, na fila esperando pelo meu autógrafo, como fizera quando lancei o primeiro. Sem saber o que falar e o que escrever, quebramos o gelo com um forte e prolongado abraço. Lembro, ainda, do generoso conselho que me deu na ocasião: não parasse de escrever.

Em 1990, quando exercia o cargo de Pró-Reitor de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fui procurado pelo doutor Luiz Alberto Fagundes, presidente da Fundação Amigos de Cyro Martins, para ver da possibilidade de uma relação formal entre as partes. Conseguimos, então, aprovar o Convênio no Conselho Universitário, que previa, entre outras, um concurso anual de literatura e criação artística, para alunos de graduação da Universidade. O ganhador do concurso artístico cederia o molde para o troféu do vencedor do literário.  O primeiro e único concurso foi realizado em 1991, visto que meu mandato se encerrou em 1992. Foi vencido pelo aluno Max Pereira, hoje, um bem-sucedido escritor e jornalista, radicado no Rio de Janeiro.

Vi Cyro Martins, pela última vez, dois dias antes de ele falecer. Estava internado e como eu viajaria naquela tarde, não podia deixar de vê-lo. Usando da minha faculdade de médico, cheguei bem cedo na Unidade de Terapia Intensiva.  Ele estava de pé, roxo, tossindo sem parar, apoiado pela Zaira. Tinha se engasgado com os remédios que tentara deglutir. Quando me viu, olhou-me com o mesmo olhar que usara ao me visitar quinze anos antes, quando eu estava internado em Unidade de Terapia Intensiva. Só que desta vez, seu olhar de compaixão não se dirigia para mim. Só falamos com os olhos, num último olhar, que jamais esquecerei. Com seu desaparecimento, nós continuamos amigos da Zaira, da Maria Helena e do Cláudio, eu não parei de escrever, mas nunca mais assei o peixe dourado.

 

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* Palestra na homenagem da Câmara Rio-grandense do Livro, durante a 54a.

Feira do Livro de Porto Alegre. Memorial do RS - Sala dos Jacarandás - Porto Alegre - 12 de novembro.

** Médico e escritor.