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Seriam os gaúchos cátaros ? E-mail
Coluna CELPCYRO - Colunistas

                                                                                             

                                                          Flávio Aguiar

 

                              Sim! Afinal, os cátaros – denominação de adeptos de movimento religioso vigente no sul da França, Catalunha e norte da Itália – se diziam “os perfeitos”. Isto tem a ver conosco, não? Só que nós – os gaúchos – somos os mais-que-perfeitos. Pois ao contrário deles, que alardeavam aos quatro ventos serem os donos de tal perfeição, nós fazemos isto só na surdina, não é mesmo? Assim, na calada do espelho, de noite ou de manhã. Mas jamais na frente de estranhos.

                              O grande Manoelito de Ornellas já provou, com muita documentação, que os gaúchos eram os beduínos do pampa(*). Mas o que é a documentação, sem a imaginação? Arquivo morto, nada mais. Pois eu agora vou provar que em inúmeros aspectos os gaúchos são os cátaros do pampa, e do século XXI. Com muita imaginação, é claro. Mas com alguma documentação também. Afinal, o que é a imaginação sem a documentação? Um delírio vivo...

Um pouco de informação. Os “cátaros” eram os membros de uma assim chamada (pela Igreja Católica, o poder central de então) heresia. Na verdade, os cátaros não se chamavam uns aos outros de cátaros. Eles se chamavam de “homens bons”. Aquele foi um termo pejorativo inventado contra eles (**), que depois virou termo de honra. Ora, não aconteceu o mesmo conosco, os gaúchos? Ser chamado de gaúcho no começo do século XIX era uma ofensa... Depois é que os gaúchos resolveram se tornar gaúchos...

                              Os cátaros eram ascetas. Levavam uma vida frugal, espartana, eu diria (afinal, a palavra “cátaro” vem do grego, “kátharos”, que significa “puro”). Bom, pode ser que hoje muito gaúcho perdulário ande por aí. Mas quem duvide desta frugalidade de hábitos dos pampeiros sulinos, que vá visitar o Palácio do Catete no Rio de Janeiro, e que descubra, entre os luxos da residência, os aposentos do finado Dr. Getúlio, limpidamente espartanos, cujo único luxo era a louça da China no banheiro. Um luxo, aquela simplicidade! O negócio do homem era poder, não o poder dos negócios e das negociatas.

                              Outra coisa. Os cátaros se consideravam cruzados da sua fé, e viviam explicando para os outros o que era ser cátaro. Pode haver melhor analogia conosco, os gaúchos? Explico-me. Aprendi com Sartre (e se não foi ele, pois cito de memória, deveria ser) que judeu é aquele cara que os outros tanto chamam de judeu que ele se convence que é judeu. Depois, quando vivi no Canadá, aprendi que “québécois”, os anteriormente separatistas, é um cara que vive se perguntando “afinal, o que é ser um québécois”? Pois o gaúcho é um cara que vive explicando pros outros o que é ser gaúcho, mesmo que ninguém esteja interessado nisto! Haverá melhor demonstração de fé do que esta? Porque ser gaúcho, no fim de contas, é uma questão de fé... Ou não é, seu herege?

                              Outro detalhe revelador: os cátaros eram dualistas, isto é, acreditavam, mais ou menos, que o universo inteiro era como um Gre-Nal, desde sempre e para todo o sempre. Havia o Bem e havia o Mal. Assim, em preto e branco, sem cinza nem outro matiz nem outra cor. O Bem criara os espíritos, as almas. O Mal criara este mundo de Deus, ou seja, o vale de lágrimas. Que era sempre ruim. A natureza para os cátaros parecia a meteorologia para os gaúchos. Ruim no inverno, ruim no verão, molhada e ventosa na primavera, seca e parada no outono, etc. Ruim se tem vento, ruim se não tem brisa. E neste mundo dualista: ou seja, algo como nós e os castelhanos. Caramurus e farroupilhas. Maragatos e pica-paus. Ou nos tempos mais modernos, o PTB contra o resto. Ou ainda o PT contra todos e todos contra o PT. Claro, isto foi antes de aparecer a Manuela D’Ávila com o PCdoB a tiracolo e o Fortunati com a Prefeitura debaixo do braço.

                              Mas o traço comum continua. Os cátaros eram sempre do contra. Ah, a Igreja Católica tinha um monte de sacramentos: batismo, comunhão, confirmação, extrema-unção, etc. Os cátaros não: tinham só um, o consolamentum, ou a consolação, seria? Rejeitavam todos os outros. E no tal de sacramento não tinha moleza, nada de agüinha na testa, pãozinho agro, óleo na testa, nicas: um batismo só de palavreado, do tipo arenga do finado Dr. Brizola no rádio.

                              E nós, gaúchos, não seríamos do contra? Republicanos no tempo do Império. Mandões no tempo da República. Praticantes de um futebol argentino no Brasileirão e de um futebol brasileiro nas margens do Prata. E na política? Durante uma década o Brasil votou contra o PT e o Lula. Votaram no Collor, no FHC. Neste tempo, na eleição, no Rio Grande só dava Lula. Talvez pelo palavreado do finado Dr. Brizola e a herança do mais finado Dr. Getúlio. Pois bastou o resto do Brasil começar a votar maciçamente no Lula e depois na Dilma praqui começarem a vencer os outros candidatos!

                              Agora, ser cátaro era uma barra. Condenados por heresia pela Igreja Católica, foram objeto de uma cruzada do poder central francês, no século XIII. Barbaridade! Poucas vezes houve tanta sangüeira nos campos de França. Só na cidade de Beziers, um número – até hoje ninguém sabe direito – entre 7 e 22 mil (!) – foram passados no fio da espada pelos tais de cruzados. Numa outra cidade furaram os olhos de todo mundo, só deixaram um com um único olho não furado, e era este que devia conduzir os demais ao suplício final! Coisa pra maragato nem pica-pau nenhum botar defeito. Depois dizem que na história do Brasil tudo foi uma conciliação entre as classes dominantes, etc. e tal. É que não sabem do destino cátaro dos gaúchos. Fiz as contas: só no século XIX, dos seus 100 anos, passamos 46 em guerra. E os outros 54 chorando a última e nos preparando pra próxima. Uma degola sem fim. Sem contar o trânsito de Porto Alegre hoje. Bah.

                              Assim mesmo, os cátaros eram seres que se voltavam para a natureza. Curioso isto, não? Porque eles, primeiro, repeliam a natureza, que era uma coisa criada pelo Mal, contra o mundo espiritual, criado pelo Bem. Mas para viver em busca da sua perfeição, eles se fechavam em cidades e castelos edificados em lugares remotos, em picos de montanhas, onde as paredes dos castelos se confundiam com as rochas sobre as quais eram edificados – como no castelo de Peyrepertuse (vide foto), ou seja, se misturavam com imagens desta mesma natureza repelida. Ora, todo mundo sabe que os gaúchos têm , cultural e historicamente, um lado órfico, isto é, de contato pelo menos aparentemente direto com a natureza, coisa que faz, por exemplo, Porto Alegre, a capital dos gaúchos, ter o pôr-do-sol como símbolo da cidade, assim votado décadas atrás, com a estátua do Laçador. O Laçador: outro símbolo órfico, de Orfeu, o que apaziguava os animais com seu canto, aquele cara viril que espera, na entrada da Avenida Farrapos, um tempo e um rebanho que jamais voltará. Este lado órfico é que nos faz, por exemplo, nos tratarmos uns aos outros com palavras carinhosas, como “bagual”, “animal”, “guasca”, além de termos amarrado nossa alma – isto é, os cavalos – no Obelisco do Rio de Janeiro. Aliás, lembremos daquela piadinha maldosa que diz terem os gaúchos três desejos na vida: ser Presidente da República, piloto da finada Varig e cavalo, não se sabendo muito bem a ordem de preferência.

castelo cátaro

 

                              O mundo cátaro é hoje um mundo em ruínas. E o que dizer de São Miguel, a catedral, a Caaba dos gaúchos?

                              O lado órfico nos leva a outra coincidência cátaro-gaúcha. O país cátaro foi o fundador do trovadorismo. Os seus troubadours fundaram a lírica moderna e, com a perseguição na França, os cátaros foram se refugiar na Catalunha, na Itália, em Portugal, levando consigo seus poemas, suas canções e seus alaúdes. De Portugal atravessaram o Atlântico, e se vieram parar no finado, mas de boa memória, Rodeio Coringa, com suas trovas, o Darcy Fagundes e o Luiz Menezes, sem falar no Lupicínio Rodrigues compondo Felicidade e Amigo, boleia a perna, puxa o banco e vá sentando... etc. e tal. É verdade que isso se espalhou também pelo Brasil inteiro, em modas de viola, cancioneiros nordestinos, cururus paulistas, mineiros e pantaneiros, e por aí embora.

                              Falando em Brasil: as cidades sob a influência cátara, nos séculos XI, XII e XIII, eram cidades de extrema tolerância. Atenção: falei em cidades, não casas! Pois nelas viviam na mais perfeita paz não só os cátaros, mas os católicos, os judeus, os muçulmanos, eram cidades-estuário de extraordinária vivacidade cultural, como atesta o já referido mundo dos troubadours, fruto de feliz encontro das tradições futuramente românticas de árabes, norte-africanos, culto mariano, idealização da mulher (as nossas “prendas”), ali conviviam os diferentes dialetos da língua francesa em formação, enfim, tudo aquilo que a Igreja Católica, a Inquisição, que ali começou a se criar, e os poderes centrais franceses não gostavam. E nós, gaúchos, dentro da nossa perfeição, não somos tolerantes? Claro que somos! Não me refiro apenas à tolerância em relação a argentinos, paraguaios, bolivianos, enfim, esta castelhanada toda, mas também a orientais (os do outro lado do Chuí), a orientais (os de mais longe e de olho rasgadinho que nem bugre), a indiada velha das missões, os afros, os gringos de Cacías e adjacências, os da Teutônia desabrida do Rio Taquari e de por perto, polacos, judeus, palestinos, libaneses, enfim, um mundo todo! Até em relação aos catarinas e demais brasileiros somos tolerantes! Bá!

                              Ainda mais uma coincidência. É inegável que a identidade gaúcha, depois da literatura do fim do séculoi XIX começo do século XX, e a seguir, com esta linhagem que vai do guasca Blau Nunes até o Analista de Bagé, passando pela Bibiana e pelo Capitão Rodrigo, sem falar na Anita Garibaldi que, como a Dilma, é oriundi mas se aclimatou, deve muito ao movimento regionalista de logo depois da Segunda Guerra. Pois não é que no País Cátaro aconteceu coisa parecida? Houve um movimento regionalista na França (e na Itália, em Portugal, Espanha, etc.), valorizando as peculiaridades locais, as línguas então ameaçadas ou até agonizantes, como a langue d’oc, do país Occitan, o bretão, o catalão, o basco, etc. Vejam só, e nós, que nos achamos tão originais, somos na verdade parte de uma tendência internacional do pós-guerra!... Êta mundo velho sem portêra!...

Bom, pra finalizar, é necessário apontar também uma diferença. Há entre nós, os gaúchos, e os cátaros, um Rubicão intransponível, um oceano de distância, um Guaíba sem ponte nem barcas para cruzar.

                              É que os cátaros eram vegetarianos e celibatários.

                              O que prova que ninguém é perfeito. Nem mesmo os “perfeitos”. Arrenego, vôte cobra, tutufum treis veiz.

                              Faltaram as referências, que aqui vão:

 

                              (*) Manoelito de Ornellas, Gaúchos e Beduínos. A origem étnica ea formação social do Rio Grande do Sul. Prefácio de Erico Verissimo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. Disponho da 3a. edição de 1976. Um livro imperdível, num estilo soberbo.

                              (**) Pelo cônego Eckbert von Schönau, em 1163, num libelo contra as heresias então chamadas de "albigenses", no Concílio de Tours.