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O tempo e sua descontinuidade: entre o ainda não e o não mais  E-mail
Fronteiras Culturais - Outras Fronteiras

                

 

 

Léa Masina * 

 

 

“(...) uma grande revolução não visa apenas a mudar o mundo, mas, antes, a mudar a experiência do tempo.”

Scramim & Honesko , “O que é o contemporâneo e outros ensaios”, de Giorgio Agamben

 

            

                      Cyro Martins, querido amigo, escritor e médico psicanalista, nos anos oitenta, publicou um livro de ensaios e lhe deu um título reflexivo, O mundo em que vivemos. Desde então, nessas três décadas que transcorreram, o mundo em que vivemos se transformou de modo vertiginoso, obrigando os sobreviventes de outro século a encarar inúmeras transformações. Mas não será a amplidão desse tema o objeto deste texto. Quero, apenas, falar do tempo. Em geral e daquele que nos cabe viver, o “saeculum” de cada um.

                              Quando se pensa sobre o tempo, essa ideia, mais que tudo, reflexão e movimento, toma as formas estranhas das volutas barrocas desenhadas entre a luz e a sombra. De maneira confusa e esmaecida, essa ideia, que se instala nas entranhas do presente e do passado, aponta para adiante, um limiar escuro que mal se pode vislumbrar. Soube, por um amigo psicanalista, que Bion, cuja obra não li, escreveu a respeito do facho de luz negra que se deixa ver e ser visto. De qualquer forma, o mundo em que vivemos é aqui e sobre ele quero pensar e escrever.

                              O desejo de escrever voltou a ocupar-se de mim quando passei a dedicar maior atenção às leituras do século XXI, que contrariam e desconstroem o cânone ocidental e acordam ideias, suscitam pensamentos, reflexões que roçam ao mesmo tempo o barroco, o surreal, a paranóia, a mistificação, a instalação, a literatura canônica, as artes plásticas e toda e qualquer forma de linguagem. No momento, em sentido oposto e para resguardar uma percepção incômoda e que tende a se agudizar, leio Virgínia Woolf. Textos que conversam de modo transversal me fazem escrever de novo, depois de anos dedicados à leitura de textos alheios.

                              Woolf fala de uma estética e sua recepção. Ela escreve um artigo cujo título é instigante: “Como atacar um contemporâneo”. Não quero atacar o contemporâneo, quero integrá-lo ao meu conhecimento. Leio e releio Giorgio Agamben para melhor compreender a indagação que nomeia seu livro: “O que é o contemporâneo”. Esse e os demais ensaios são, com certeza, desafiadores. Eles desacomodam o leitor tradicional, incomodam o escritor e ensinam que amizade é o sentimento maior, como, aliás, há séculos, já diziam os gregos. Amizade pressupõe igualdade, respeito. Por essas circunstâncias, fala-se no amor da amizade.                                 E isso se repete na relação que um leitor, mesmo um leitor crítico, estabelece com o autor da obra que lê. A afinidade que nasce desse contato tem a natureza próxima à amizade. E é para sempre. Ou, ao menos, assim era para o leitor formado às sombras das estantes do século XX e que adentra, perplexo, os limiares do século XXI. Um leitor que, em sua prática, jamais acreditou na morte do narrador. Virgínia Woolf insiste em que o leitor deve ser cúmplice do autor, acolher suas propostas, caminhar com ele.

                              O processo de compreender a mudança e o novo pode e deve ocorrer sem que se abra mão do cânone, do conhecimento adquirido ao longo de anos de trabalho, leitura, pesquisa, reflexão e sonho. Sempre considerei injusto abrir mão de um forte desejo em prol de uma cômoda estabilidade, mesmo de ordem intelectual. Para que escolher “Ou isto, ou aquilo”, como propõe Cecilia Meireles, e ficar com uma das mãos vazias, nela restando apenas resíduos de sombra e luz? Não: existe um “entre-lugar” e as soluções binárias são insuficientes para se pensar o contemporâneo. Lembro Cecília, os cavalos de diferentes pelos que atravessam a página do Romanceiro da Inconfidência. Eles eram muitos cavalos. Luis Ruffato lê Cecília e acredita que ela ainda não ocupa o lugar que merece no coração da lírica brasileira.

                              Ontem, assisti ao filme sobre Hanna Ahrendt. Fascinante. Hanna teve coragem para expor um pensamento contrário à ideologia dos seus pares. Conseguiu ver a banalização do mal e seu contágio, privando o individuo da capacidade de discernimento. Nada mais contemporâneo do que a robotização de Eichman. Hanna teve coragem de dizer sua verdade, aprofundando uma reflexão de natureza filosófica que transcende o pensamento até hoje dominante - entre judeus e não judeus - que buscavam um objeto capaz de catalisar seu ódio. Houve depois Hiroshima e Nagazaki. As ordens e quem as executa. Sempre existiu a tortura. E mais o extermínio de milhões de pessoas e etnias pela capacidade contaminadora do mal. Nada que isente a política, os governos, as pessoas; nada que exima alguém de suas responsabilidades. Mas não se fala mais em Biafra. E nas guerras pós-coloniais da África, que se arrastam por décadas, destruindo tribos, crenças, raças. Arrasando a terra. A guerra emudeceu a estrada, como se lê em Mia Couto. Mais sérvios, croatas, crimes contra a humanidade. Crimes do cotidiano, que nos recusamos a ver e esquecemos de imediato, após o impacto instantâneo que causam, como nos filmes de entretenimento. Convivemos com a violência urbana, doméstica, a pedofilia, o trauma e nada fazemos para impedir esses cometimentos. Soube, por uma colega da Universidade, dedicada a estudar o trauma, que são inúmeros os animais, sobretudo cães, recolhidos dos acampamentos humanos , que são seviciados sexualmente todos os dias. Não se trata de um local longínquo, habitado por monstros. Isso ocorre em Porto Alegre e em sua perferia. Talvez as palavras de que necessitamos neste século sejam educação e ética.

                              Qual a responsabilidade dos escritores neste mundo de contradições que se multiplicaram com o advento da técnica e se diversificam com o avanço das mídias Aqui, em Porto Alegre, discute-se a relação entre literatura e sustentabilidade. A psicanálise se preocupa com a questão da escrita. Os escritores pós-coloniais nos dão a compreender a complexidade das relações entre colonizadores e colonizados e as transformações que se operam em ambos os lados. Sem maniqueísmos e sem oposições binárias e redutoras. Cria-se um terceiro lugar, um espaço antes inexistente onde se situam essas questões. Ouvimos isso de um antropólogo, o professor Caleb Farias Alves, ao comentar o livro “Hibisco Roxo”, de Chimamanda Adichie. Todos lemos Stuart Hall, Edward Said, Homi Bhabha, Boaventura Santos. São muitos que se voltam para o estudo desses trânsitos, desses deslocamentos, das diásporas de que resultam hibridismos e a nova face do mundo que se anuncia neste século.

                              Li Angélica de Freitas. Um útero é do tamanho de um punho. Li mais de uma vez para entender o que me fascina nesses poemas escritos com as vísceras. Linguagem enxuta, direta, dói no rim. A mulher limpa. A mulher suja. Da qual se aproveita tudo, das orelhas ao rabo em espiral. A mulher que Ferreira Goulart antecipou em seus poemas. Um útero é do tamanho de um punho. Com quem te deitas, Angélica Freitas? E paradigmas poéticos se invertem para produzir novos sentidos e revalidar a necessidade diária da poesia.

                              É preciso falar. E escrever. Antes, havia as obrigatórias notas de rodapé, as consultas, citações, aspas, parênteses, colchetes, mil bibliografias e formalidades, a linguagem culta e até epígrafes para dar dignidade ao texto. Agora, falo do que lembro, quando preciso e quero, dando aulas, entre amigos, com não-ouvintes, surdos, iluminados, opiniáticos e até pacientes e compreensivos. Depois, simplesmente, calo pela literatura, para não perturbar os que validam apenas propostas canônicas ou muito pessoais; e também os que querem entender o novo a seu tempo e acolhem, em ritmo próprio, o que está acontecendo agora. Muita coisa dói no corpo quando se tem de abrir mão de paradigmas e reconhecer que é preciso refazer o caminho, corrigir rotas, reconhecer falácias, reforçar convicções, acolher o bom do novo. E cortar alguns pedaços: “ferida narcísica”, talvez? Sem certezas. Com histórias. Muitas vezes, contra a História.

                              O poema do russo Osip Mandel`stam , O século (1923), é, de fato, a metáfora plena desse desassossego: ele diz que é preciso soldar as vértebras quebradas de dois séculos e soldá-las com o nosso sangue. São os dois séculos - XIX e XX - que nos fizeram promessas. E, exceto aos céticos, induziram a pensar um mundo melhor, de progresso e sabedoria pelo advento da ciência, o avanço da medicina, da física, do pensamento social, do estudo das humanidades; e houve as grandes descobertas: o satélite, a internet, a revolução provocada pelas novas mídias. Além disso, acreditou-se que após tantas “guerras” se superassem os conflitos, seguindo-se uma fase de convivência solidária e fraterna, fundada nas conquistas que engrandecem o homem, prolongam sua vida e prometem ampliar seu contexto e tempo de permanência e circulação no espaço. Tudo concentrado no latim “saeculum”, aquilo que nos cabe viver. E há um século que nasce.

                              Lamento pelos leitores apressados, mas sigo o ritmo do meu corpo e, costurando fissuras, associo o que apreendo dos velhos mestres, dos jovens alunos, clientes, amigos, colegas, lendo por dentro os textos que me fazem sentir e pensar. Sobretudo, apreendo o entusiasmo pelo novo e absorvo as trocas do convívio criativo. Na verdade, este texto atende a pedidos e sugestões de muitos que me pedem para registrar, de um modo didático e palatável, as reflexões que nos ocorrem a partir dos autores lidos, relidos e comentados em encontros presenciais. Mas essas reflexões, melhor dizendo, digressões e viagens ao calor do instante, nem sempre se submetem ao ritual de revisão e simplificação, porque a filosofia que as precede não admite facilidades. Já dizia meu professor Guilhermino Cesar, nem tudo é prazer na literatura. E aqui chamo Barthes, companheiro de outros percursos: o prazer intelectual é conquista e construção individual cuja medida está de acordo com o esforço e a capacidade de cada um. E este prazer da leitura tende a ampliar-se pela prática, eis que o processo de aquisição do conhecimento – inclusive a competência para o prazer estético - é uma aprendizagem cumulativa. Até o momento em que ele nos escapa e busca fechar-se em seu próprio corpo, como na imagem do “oroboro”, tão apreciada pelos contemporâneos e que representa tantas e tão diferentes modulações. É quando o intelectual precisa parar, repensar-se e olhar o mundo por outro ângulo. A representação imagética da cobra que morde (ou engole?) a própria cauda não é exclusiva da arte e da literatura, ela serve para quase tudo. Para a vida, para a morte e se adapta a todas as circunstâncias: plenitude, decrepitude, energia, sexo, estrutura do texto, pensamento político, pulsão poética, alienação, dissociação, ritmo do poema, nascimento, desejo; contanto que nela se inclua a alteração que vem sofrendo o tempo na sua luta intermitente com o retorno à origem: “Arké”.

 

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* Léa Masina é uma das Fundadoras do CELPCYRO e sua colaboradora, Profa. de Literatura e Crítica Literária, coordenadora de Leituras do Séc. XXI