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Para além da quitanda e do pastel  E-mail
Artigo de Fundo

              

              

                                                                                                      Maria Wagner *

 

             Enquanto o dono da quitanda pesava as frutas escolhidas pelo freguês, o homem outonal se virou para mim e, escancarando um sorriso com resquícios primaveris, declarou-se imensamente feliz naquele momento. Nem esperou que lhe perguntasse o motivo. “Posso, finalmente, colocar de novo as minhas roupas de inverno”, acrescentou.

               Se ele tivesse feito uma pausa, pelos menos para respirar, teria lhe contado que concordo e que sinto minha alma expandida nas estações frias do ano. Mas ele não me concedeu esse tempo. Estava muito voltado para o próprio umbigo e, feito criança, absolutamente convencido do interesse alheio em seu estado de ânimo. Então eu lhe concedi um tempo e continuei ouvindo, mas comentei com meus botões o que venho comentando com algumas amigas já faz alguns anos: os homens se queixam do que chamam de tagarelice feminina, mas são, na verdade, muito mais verborrágicos que as mulheres.

               Não tenho a menor dúvida sobre isso, que se confirma no grande número de bancadas de debates que eles protagonizam nas emissoras de rádio e de televisão. A maioria trata de bola rolando, de futebol, mas em torno da mesa também discutem os destinos do planeta, que já levaram à beira do abismo um bocado de vezes ao longo da história, porque, enquanto a mulher se distrai fazendo “fofoca com a vizinha”, eles jogam sujo para invadir, para conquistar outros países e para explorar seus recursos, como fez o abominável Hitler. Muito antes os ingleses, quando formaram a Grã-Bretanha, o império que, segundo o jornalista Niall Ferguson em seu livro sobre o assunto, fez o mundo moderno. A justificativa usada nesse processo – “somos o melhor povo do mundo e o povo escolhido para dominá-lo” – legitimou durante três séculos o tráfico de negros, caçados na África como se fossem animais.

               Então, quando os homens acusam as mulheres de serem muito falantes é porque os assuntos que elas colocam na roda passam longe do que interessa a eles; por isso, qualquer palavra dita por nós é encarada como exagero e tem o poder de irritá-los. O que fariam se pudessem adivinhar o que calamos? Tudo isso me passou pela cabeça, feito relâmpago, enquanto ouvia o homem outonal na quitanda. E ele, com os braços cruzados sobre o suéter de lã bege, ainda acrescentou, sorrindo, que “minha mulher não está em casa e sempre que chove sinto muita vontade de comer pastel; então vou levar alguns daqui; são os melhores de Porto Alegre”. Bom para ele.

               Cada qual com suas preferências. Bolinho de chuva também vai bem num dia molhado e frio, mas eu tinha outra ideia na cabeça quando ganhei a rua. Meu projeto era uma torta de maçã. Com a sacola de pano cheia – sim, respeito o meio ambiente – voltei para casa e coloquei minhas mãos à obra que ganhou forma em camadas de fatias finamente cortadas. Adoro a cozinha. É um lugar mágico. Aproveitei para estrear o CD pop de Xavier Naidoo, um presente que me foi enviado por Hans e Rose, meus primos da Baviera.

               Cara interessante esse Naidoo. Ainda muito jovem, ele defende a possibilidade de um mundo melhor. E tem companhia nessa reivindicação, que é praticamente de todos. O que surpreende nele é o caminho que sugere, porque, embora alemão de origem africana, acredita que o Cristianismo é o meio capaz de operar a mudança. De que Cristianismo está falando? Sei pouco das outras versões, mas a Católica Apostólica Romana me parece incoerente demais para o que ele idealiza. A fachada não combina com o interior do prédio. Um exemplo: durante sua visita ao Brasil, o papa Francisco afirmou em entrevista ao programa Fantástico, da Rede Globo, que a “Igreja precisa acompanhar as mudanças que ocorrem no tempo”; na viagem de volta ao Vaticano, pediu um esforço para integrar os gays; mas, logo em seguida, negou o sacerdócio às mulheres. “É questão fechada”, disse, empurrando a responsabilidade desse fechamento aos ombros de João Paulo II.

               A partir daí é possível imaginar sua resposta sobre a legalização do aborto quando a gravidez resulta de estupro. Certamente formaria fileira com os que se empenham em luta contra a criação de uma lei que tem como objetivo melhorar o atendimento às mulheres estupradas nos hospitais, alegando que também este feto é uma expressão da vontade divina. Se isso é verdade, devo entender que o estuprador é um instrumento a serviço de Deus? Para mim, esta é só mais uma demonstração da incoerência que permeia as religiões em geral, pelo menos aquelas que, volta e meia, são tema na imprensa. Pensadas e construídas pelo cérebro masculino, elas tratam a mulher como tarefeira que deve caprichar na fritura do pastel. Arraigada em nossa sociedade, essa visão gerou comentários extremamente machistas na internet, condenando as mulheres que manifestam a vontade de trabalhar como sacerdotes. Alguns em tom de brincadeira. Mas não é brincando que se diz o que se tem como verdade? Diante disso, é melhor conversar com os próprios botões, num voo que nenhum papa pode controlar, em lugar nenhum. Para muito além da quitanda e do pastel.

 

* Maria Wagner é jornalista e escritora