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ALGUMAS PÁSCOAS E O SOM DE UM ARROIO CORRENDO  E-mail
Além da Letra

 

                                                                                                                                                                            Roberto Bittencourt Martins*

 

             

É manhã de Páscoa e o menino está descendo a escada da casa, um sanatório para doentes mentais, nos arredores de Porto Alegre. Traz numa das mãos um ovo de chocolate, presente deixado pelo Coelho da Páscoa durante a noite e que a mãe tinha acabado de lhe entregar. Na outra mão, leva a fatia de pão que sobrou do café da manhã. A voz da mãe rompe alta de dentro do quarto:

 

 

 

               - Cuidado com a escada!

 

 

 

               O menino desacelera o passo e, entre um degrau e outro, tem a ideia de reunir o pão ao chocolate e morder os dois em conjunto. Ao mastigá-los, tem a sensação de que a aquela mistura é espantosamente boa e que sua boca acaba de descobrir o melhor gosto que já sentiu em toda vida. E, enquanto vai engolindo o chocolate e o miolo do pão, pensa que essa irá ser sua comida preferida para sempre.

 

 

 

               Lá embaixo, no saguão, encontra seu pai, que trabalha como médico residente do Sanatório. A mãe acaba de descer, o pai abre a porta e os três baixam ao jardim. É um terreno grande, um parque de canteiros altos e muitos caminhos, com arbustos, algumas árvores e umas poucas plantas mal floridas. O menino gosta de morar ali. Já viveu em vários lugares. Ainda bebê, na roça que mal lembra, mas onde aprendeu a andar e a falar. Depois, noutra cidade, com a família da mãe, na casa do avô perto da ponte do trem. Na estância, onde ajudou a segurar as rédeas na garupa do cavalo montado pelo pai. Num apartamento, na rua Riachuelo, onde o primo adolescente fora encarregado de cuidá-lo enquanto os pais iam ao cinema. Alguma coisa devia ter aprontado, pois, para “parar quieto”, terminara a noite dentro de uma fronha pendurada ao trinco da porta. Só havia sido salvo do castigo com a chegada dos pais. E tinha podido então saborear sua vingança ao presenciar a indignação de seu pai reprovando o sobrinho.

 

 

 

               Mas ali é bom. O menino corre na frente, conhece bem os atalhos que levam aos diversos pavilhões. O grande prédio onde ficam os doentes, em que não deve entrar. O pavilhão dos tratamentos de choque. Aquele outro, mais ao fundo, onde a água das banheiras da balneoterapia às vezes cria reflexos no teto. O refeitório. O lugar onde os doentes, em seus uniformes, “brincam” fazendo pinturas, objetos de barro e até carpintaria. A farmácia onde as freiras o recebem com alegria, brincam, seguram no colo e às vezes até beijam. São freiras moças, louras vindas da Colônia, nas descobertas do noviciado, mostrando a ele o armário dos remédios. O menino gosta de brincar com os frascos coloridos que reluzem nas prateleiras.

 

 

 

               Hoje é Páscoa, entretanto, e freiras e noviças estão ocupadas rezando na Capela, junto às estátuas dos santos, da Virgem Maria e de Jesus pregado na cruz. Mesmo o pátio está vazio. O menino gosta também de brincar ali, “ajudando” os “pacientes crônicos”, nas lides de seus carrinhos de jardinagem. Gosta de brincar com aqueles jardineiros risonhos, de mentes paradas na infância. Mas também os “oligofrênicos”, como diz seu pai, devem estar agora na igreja.

 

 

 

               O passeio termina logo. O pai abre, desajeitado, o carro que acabou de comprar, seu primeiro automóvel, e conclama todos para o almoço na casa dos parentes. O menino sente vontade de ir até o arroio que corre entre árvores. Ali, sem que ele mesmo saiba, sua escuta refaz de novo o murmúrio do riacho que corria em seus primeiros tempos, aqueles que sua memória nunca poderá explicitar, lá nas roças da Serra onde começara a tornar-se gente.

 

               - Não dá tempo - diz o pai. E a mãe reforça:

 

               - Fica pra outro dia, a Mimosa e o seu Cunha estão nos esperando. E a Mercedes já está lá e podes brincar com ela.

 

               Ele não protesta e entra no carro. Gosta de brincar com a neta dos parentes, embora ela seja menor do que ele. Ali no sanatório, não há crianças de sua idade. Brinca com seu Zé, seu Chico, seu Antonio, “os crônicos”. Ou então, com os amigos imaginários. Mas, com esses, não gosta de ser visto conversando. E fica envergonhado quando a mãe e o pai lhe perguntam o que é que está falando sozinho. Ou com quem está falando? De alguma forma, acabam sabendo que os amigos invisíveis têm, para ele, os nomes de o Adê e a Lili. Ele os reencontra todos os dias. De manhã cedo, ao acordar. Quando está só. Muitas vezes, ao despertar à noite com algum grito de um paciente do “Pavilhão” – e o Adê e a Lili vêm em seu socorro para enfrentar aquele aperto no peito que os pais lhe dizem ser bobagem sentir.

 

               - Estão sonhando - o pai explica. - Não é nada de verdade.

 

               E a mãe completa:

 

               - A doença deles faz com que eles sonhem acordados, mas não é nada de mais, fazem tratamento e logo passa.

 

               Não muito tranqüilo, ele chama Adê e Lili e começa a conversar baixinho com os dois amigos. E é o que está fazendo no banco de trás do carro, enquanto seguem o longo caminho que separa o arrabalde da Glória dos altos da Independência. E o longo correr do tempo em que Adê e Lili irão desaparecendo aos poucos até sumirem por completo.

 

               Quantos anos irão passar? Quantos coelhos de chocolate, agora já sem nenhum pão? Quantas Páscoas enquanto cresce? Numa delas, está já com mais de vinte anos e mora novamente num hospital psiquiátrico. Numa outra cidade. É interno residente dum Hospital Universitário. Aqui também são vários os pavilhões. Os pátios são menores, mas os “crônicos” laboriosos também tomam conta do jardim. Ele está contente. Gosta de viver ali. Gosta de tudo, do que aprende, de pacientes e professores. E dos colegas com quem divide a residência. Em sua grande maioria, é claro. De quase todos. E, principalmente, do clima. Um ar que sopra do passado, dos bons tempos em que nunca pensa.

 

               Ele acaba de fazer a vistoria dos pacientes na Enfermaria Masculina e na Feminina e caminha para o Pavilhão dos Médicos Residentes, um pouco distante, na entrada. Lembra conversas que teve com eles, como procurou deixá-los em calma, aguardando visitas que serão feitas na Páscoa. Ou à espera do dia em que terão alta. Dias de um futuro que deverá ser bom. Recorda a paciente que lhe dissera:

 

               -O senhor sabe o que significa a Páscoa, doutor? É o dia da Ressurreição. Não é só Jesus que sobe aos céus, é a vida de todos nós que começa outra vez...

 

               Em seu delírio de religiosidade, ela confidenciara que havia escutado a voz de um anjo. Sim, um anjo invisível. Mas não podia dizer o que ouvira.

 

               Ele sorri ao recordar a satisfação no rosto dela. Sorri também ao relembrar “O Alienista” e, com o pensamento de que a chave da Casa Verde felizmente está em suas mãos. Ressurge em sua mente, num lampejo, um trecho esquecido do passado. Também teve amigos imaginários; não eram anjos, porém. Não consegue relembrar seus nomes. Retorna ao presente, satisfeito. É o doutor e sua vida parece boa.

 

               Anoitece, faz bom tempo. Sob um vento vagaroso, as árvores movem suas folhas. Tudo parece estar calmo. Os tranqüilizantes trazem repouso às angústias. Os enfermeiros estão certos de que mesmo os três pacientes mais agitados passarão bem à noite.

 

               E, já livre de preocupações, passa a pensar na festa que ele e os colegas pretendem fazer no prédio onde moram. Para comemorar a Páscoa? Para aproveitar um pouco mais aqueles dias? Uma comemoração pequena, nada que possa incomodar os pacientes. Música, não tão alta que possa acordar os doentes. Bebida, não tão forte que possa embriagar. Dança, aquelas da nova moda, cha-cha-chás e tuistes, todos enfileirados cantando pelos corredores do dormitório. Alegria, futuros doutores e nascentes psicólogas, marchando, dançando e ensaiando aqueles namoros meio ingênuos da época.

 

               - Vinho, mulheres e música - diz a ele, num chavão irônico, o colega que, poucas semanas atrás, o havia levado à casa do Cavaleiro da Esperança.

 

               Mas, naquele momento, não queriam saber de cavaleiros, esperanças ou política. A Páscoa de 1964 ainda estava distante, oculta nos subterrâneos de um futuro insuspeitado. Lá em suas enfermarias, os pacientes dormiam a sono solto, sem o horror dos pesadelos vivos, adormecidos pelos quimioterápicos capazes de sedar seus pavores. Os moços viviam sua idade e tentavam divertir-se.

 

               Talvez tivessem medo de mim se soubessem que eu os observava e que poderia condenar, como leviandade irresponsável, a comemoração que preparavam.

               Sim, eu sou o Velho que agora os reencontra. Olho para tudo aquilo que, embora tenha deixado para trás, volta a estar ali à minha frente. Penso nessas Páscoas, a primeira, a da mocidade e também em tantas outras. Lembro meu pai, na véspera de uma delas – a de sua morte -, em brincadeira com os netos, recitando para eles os versos da “Aurora de Minha Vida” do eternamente moço Casimiro. As Páscoas, elas estão todas agora dentro de minha cabeça, fazendo parte de um mundo feito de neurônios que, embora mude, é sempre o mesmo. Sim, sou eu, o menino de três ou quatro anos, que descobre o melhor sabor do mundo. E o rapaz que cuida dos pacientes da enfermaria e depois prepara a festa. E então me indago sobre a existência desse estranho fato – esse conhecimento que me faz saber que sou e serei sempre a mesma pessoa: o menino do Sanatório, com Adê, Lili, os jardineiros e as freiras; o rapaz do hospital psiquiátrico, satisfeito em seu retorno.E o velho de hoje em dia, que sabe apenas que pouco aprendeu do imenso universo que espera para ser conhecido. E que, talvez junto de tantos pacientes