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Sobre 'CARTA AO PAI', de Kafka - Perspectiva de um Psicanalista , de Paulo Marchon* E-mail
Humanismo Médico - Artigos

 

                                                           Roberto Bittencourt Martins**

 

            Carta ao Pai, de Franz Kafka, tem sido lida e relida por todos os apreciadores, biógrafos e estudiosos da obra extraordinária do genial autor tcheco, um dos mais marcantes expoentes da revolucionária modernidade da literatura do século XX. Paulo Marchon certamente faz parte desses admiradores e terá sido esse entusiasmo que o levou a debruçar-se tão minuciosamente sobre um dos livros mais pessoais de Kafka, examinado por tantos críticos e pesquisadores. Como Proust e Joyce, Kafka soube criar um universo singular e transformou, por isso, seu nome num adjetivo qualificador de uma situação absurda e incompreensível - a palavra “kafkiano”, que evoca, como mostra Houaiss em seu dicionário, uma atmosfera de absurdo e de pesadelo. Ora, como sabemos, poucas coisas serão mais atraentes para um psicanalista do que encontrar a interpretação de um sonho... Contemporâneo de Freud e, como ele, um súdito do Império Austro-Húngaro, Kafka, com sua obra enigmática e sua personalidade singular, terão exercido no analista brasileiro um fascínio de tal monta que, sem que pudesse evitá-lo, terá sido impelido a embrenhar-se na individualidade e nos conflitos do criador de um mundo tão original – e, ao mesmo tempo, tão semelhante, em seu irracionalismo, àquele de nosso Inconsciente. E o Inconsciente é o objeto do trabalho do psicanalista...

 

           Paulo Marchon é um de nossos psicanalistas mais experientes. Médico e psiquiatra, formado em psicanálise pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro em 1969, radicado atualmente no Ceará, exerce há mais quarenta anos uma intensa prática clínica. A complementá-la, com o mesmo vigor, tem se dedicado à atividade didática, no ensino e na difusão da psicanálise e na colaboração pioneira para o estabelecimento do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Fortaleza. Todos esses conhecimentos adquiridos em tantos anos de trabalho e estudo foram sendo, ao longo dos anos, compartilhados em artigos, publicados em revistas especializadas no Brasil e no exterior, em relatórios a Congressos Psicanalíticos, palestras etc. .... Em 1909, seu livro Flutuando atentamente com Freud e Bion foi publicado pela editora Imago.

 

 

            Além da psicanálise, Marchon possui também outra paixão, que o leva à leitura cotidiana e renovada de clássicos, como Sófocles, Racine, Cervantes e Ibsen, e modernos, como poetas e ficcionistas contemporâneos. (Não será por acaso que é casado com uma professora de literatura...) E esse amor pela literatura terá contribuído também para que, após “flutuar” com Bion e Freud, Marchon tenha sido levado pelas ondas de Kafka... Nelas, pôde reunir suas duas inclinações, tendo como tema a carta que Franz dirigiu a seu pai e, portanto, a relação Pai-Filho entre o Sr. Hermann e seu filho Franz. E, sob uma perspectiva psicanalítica, pôde conduzir-nos por suas idéias a respeito dos conflitos e fantasias do homem Franz Kafka expressos na fala da Carta.

 

               Já no início, Marchon nos avisa que seguirá a Carta ao Pai como uma livre associação de idéias. E que o texto de Franz é fruto dos “diversos dramas da extraordinária vida de Franz Kafka: a tuberculose e os três noivados desfeitos, o último dos quais terá sido o estopim que desencadeou esta carta”. Ao contrário do Sr. Hermann, Marchon não coloca no criado-mudo o livro que Franz lhe oferece. Nem criado, nem mudo, nem objeto inanimado e indiferente, e, pelo contrário, levado pelo impulso de conhecimento, Marchon procura dialogar com Franz, compreender suas razões, suas motivações e fantasias inconscientes. Busca também, nas biografias mais autorizadas, os fatos que podem ser associados ou confrontados com as confidências do autor da Carta. Procura encontrar o homem chamado Franz no escritor Kafka. E tudo se passa como se procurasse conhecê-lo, vencendo as barreiras de tempo e da transitoriedade. Para dialogar e, como é comum entre amigos, às vezes para discutir com ele. Sem vestir as roupagens do analista onisciente e incapaz de duvidar das próprias interpretações – as quais, como na fábula, sempre revelam um “rei” nu.

 

            Enquanto vai alinhando suas idéias, em paralelo com as de Franz em sua carta, Marchon vai trazendo as informações e os dados biográficos que também nos incitam a pensar e estimulam nosso interesse sobre o livro – e, é claro, sobre seu tema: o genial autor de Metamorfose, de O Castelo e de tantos outros romances, contos e novelas inesquecíveis. Como a de Um artista da fome, escrito com a dor do próprio sofrimento, internado num Sanatório, “faminto, morrendo de fome e sede” e, ao final, em lágrimas, num dos momentos mais comoventes narrados no livro de Marchon.

 

            Desse modo, o texto do livro vai fluindo, sempre motivador, seguindo o curso de três vertentes principais, que correm paralelas e se intercomunicam incessantemente. A primeira, a própria Carta ao Pai de Kafka. A segunda, trilhando principalmente a carta dirigida por Marchon a Franz. E a terceira, centrada no enfoque psicanalítico, no qual Marchon reúne os dados biográficos do escritor ao conteúdo da Carta e aos conteúdos de outras obras suas, determinando o surgimento de novos significados, vindos do Inconsciente. Tais significados, Marchon procura encontrá-los, dedicando-se à tarefa de modo inteiro, sem limitações, com franqueza e – por que não? – paixão.

        

            Poderemos concordar ou não com as perspectivas do psicanalista. Mesmo assim, apesar de qualquer discordância, esta leitura certamente aumentará nosso conhecimento sobre Kafka, aquele que Milena descreve como “um homem recluso, um homem sábio com medo da vida”. Ao lado disso, os conhecimentos e hipóteses trazidos por Marchon serão capazes de incentivar nossos pensamentos sobre tantas questões psicanalíticas abordadas na obra. E farão crescer ainda nossa capacidade de reflexão a respeito do ser humano. E de sua alma – desnudada por Kafka, estudada por Freud e aqui observada pelas lentes de um psicanalista que soube lê-los atentamente.

 

                                                                                                          Rio, 12 de maio de 2012.

 

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*   Paulo Marchon, psicanalista. Vai coordenar uma mesa sobre Kafka, no Congresso da Associação Psicanalítica Internacional - IPA, em Praga, em julho de 2013

 

** Roberto Bittencourt Martins, psicanalista e escritor