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Pequeno Alfarrábio de Acepipes e Doçuras, de Betina Mariante Cardoso E-mail
Fronteiras Culturais - Outras Fronteiras

                                                                         

                 Maria Helena Martins 

 

Pequeno Alfarrábio de Acepipes e Doçuras, editado pela Luminara, é um livro dentro de um caderno de receitas ou vice-versa. Na primeira parte, “Este livro pertence a”, encontram-se 66 crônicas culinárias divididas nos capítulos “Pisa além da Torre”, “Nossas Avós”, “Encontros”, “Prosa de Forno-e-Fogão” e “Outras Viagens”. Na segunda parte, “Caderno de receitas de”, há 50 páginas destinadas às receitas, esquemas e escritos a serem registrados pelo leitor, que ganha terreno para sua própria criação. As crônicas culinárias tratam do universo da cozinha via subjetividade de quem a frequenta, seus sabores, aromas, sons, coloridos, suas texturas. Enfim, um livro com relato de conversas, ideias sobre as vivências de forno-e-fogão, feito para quem gosta da cozinha, suas possibilidades e surpresas.

 

Mas tem muito mais que isso.

 

            Os livros de receitas são, tradicionalmente, repositórios da memória culinária de mais de uma pessoa. Isso porque, além do autor ou autora, cada leitor deixa nele seu toque, sua marca - um pingo de molho, uma pequena observação, uma nova receita ali escrita ou simplesmente inserida entre suas páginas. Haverá poucos desses livros que passem incólumes pelas mãos de quem os leu. E assim vão adensando seu conteúdo, sua história. Mesmo que, na maioria das vezes, tenham sido escritos com a intenção pura e simples de registrar receitas. Não raro também vão passando de dono, geralmente, de geração em geração no contexto familiar.

 

            Daí a propriedade na escolha de alfarrábio para designar esse livro, indiciando um escrito guardado há muito tempo. Mesmo que tenha sido redigido hoje, resulta de uma trajetória de experiências com "acepipes e doçuras", suas memórias e relações significativas que propiciaram, e se apresenta como relato intimista, convidativo, buscando cumplicidade.

 

            Essa intencionalidade remete a algo mais antigo, aos longes da autora, nem só no tempo e no espaço. E vai mexer com lembranças e fantasias de quem o manuseie, num compartilhamento que se anuncia já na bela capa e formato de livro-caderno, segue pela diagramação e pelas ilustrações, concluindo com o inesperado (?) convite para que o leitor-proprietário da obra passe a fazer parte de sua autoria, no espaço especialmente preparado, à sua espera.

 

            Assim, começamos a leitura já empaticamente envolvidos, algo que se adensa à medida que surgem revelações e reflexões sutis, num mix sui generis e muito gostoso de ler. A autora acertou a mão no texto como nas receitas e certamente vai conquistar leitores: pela gourmandise, em curiosa mescla com experiências fraternas e informações ponderadas e oportunas sobre os processos neuroquímicos envolvidos na percepção do prazer e do sabor. Sim. Porque quem escreve sabe o que está dizendo: de forno e fogão e do intrincado e misterioso universo da relação mente-corpo no ser humano. Esse é o toque a mais que garante a originalidade do trabalho, muito além de um livro de receitas, pois envolve o leitor em inusitado périplo pela cozinha, pelos afetos, pelas andanças e pelos meandros dos conhecimentos psiquiátricos da médica Betina Mariante Cardoso.

 

            Essa dimensão e a linha condutora dos textos podem ser compreendidas pelo trecho que reproduzo a seguir, verdadeiro chamariz para leitores especiais:

 

O ato culinário é, ao mesmo tempo, uma experiência individual e coletiva, uma oportunidade de autoconhecimento, de entrega a mim mesma e, simultaneamente, de partilha, de doação, de expressão de afetos positivos. Exercício contínuo de liberdade e de disciplina, de firmeza e de flexibilidade, de gratificação e de tolerância às frustrações. De foco e de atenção no presente em cada ato, pondo em ação cada um dos nossos cinco sentidos. Exercício de resiliência, a cada receita.

Sobretudo, o ato culinário representa uma das circunstâncias mais propícias para experimentar singular e plural, para nos aproximar de nós mesmos e daqueles a quem admiramos, amamos e que são parte de nossa história.

Descobri que criar minhas receitas e seguir estritamente receitas de livros ou de cadernos são exercícios diversos, mas ambos imprescindíveis no estabelecimento de características pessoais, de atributos aplicáveis dentro e fora do ambiente culinário. Assim, minha ideia de elaborar um livro de cozinha e caderno de receitas, no mesmo volume, tem o propósito de compartilhar o laboratório de vida que a cozinha sempre foi para mim.” (Betina Mariante Cardoso)

Fevereiro de 2013