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A comunidade palestina na fronteira: afirmação cultural e força econômica  E-mail
Fronteiras Culturais - Artigos

 

Dedico este trabalho à memória de Ismail Hussein, Ahmad Musa Abdell Karin Shueik, Hilmi Addalah, Ahmad Suleimam, Andres Al Bahuna. Também aos apoiadores desta pesquisa, Hamad e Habihi Zeidan, Mohamad El Hannini e Monir Suleiman.

 

Liane Chipollino Aseff*

 

Os árabes não são estrangeiros em território rio-grandense. A tese defendida pelo escritor Manoelito de Ornellas, já em 1948, mostrava como a presença desses povos entre nós remonta, por outras vias, à primeira ocupação luso e espanhola, que trazia em seu DNA a forte herança da presença mourisca na Península Ibérica (beduínos, berberes e maragatos). Em sua obra clássica, Gaúchos e Beduínos (1948), o autor estabelece semelhanças entre a cultura gaúcha e a árabe, examinando os costumes, hábitos, vestimenta e tradições. Numa poética referência às culturas, o escritor recorre aos hábitos comuns ao gaúcho do pampa e ao homem do deserto para miscigenar e integrar as culturas. Nas palavras de Manoelito:

O gaúcho mais feliz no seu habitat forma sua caravana e carretas. De aguillada em punho segue pelas estradas do pampa, estradas que serpenteiam terras cobertas de verduras- em noites e dias de pacienciosas jornadas. É como um Beduíno um homem melancólico, nostálgico, ladeado sobre pelegos do lombilho, ou serigote, no lombo do cavalo acompanha sonolento a marcha tarda dos bois. À noite, pousa em acampamentos, como o árabe, sob a colcha das estrelas. E, como o árabe, canta suas cantigas nostálgicas a som dos mesmos instrumentos comuns- a cordeona e a guitarra.

O ano de lançamento dessa obra – 1948 - remete frontalmente à questão palestina, pois nesse momento iniciava-se o conflito nascido com a criação do Estado de Israel, culminando com a invasão do território palestino e a 1ª Guerra Árabe-Israelense. Assim, a emigração palestina se deveu em um primeiro momento a fatores socioeconômicos gerados pela dissolução da Palestina e, em um segundo momento, à ocupação israelense da Cisjordânia e da Faixa de Gaza a partir de 1967.
Entretanto, o processo emigratório espontâneo teve início bem antes, quando, a partir de 1860, os primeiros fluxos significativos de árabes deixaram o Oriente Médio rumo aos países da América Latina e América do Norte. Inicialmente viajaram os sírios e libaneses, e em menor número, os palestinos. Os pioneiros deixaram suas pequenas aldeias e povoados em uma longa e cansativa travessia do Atlântico, que perdurava meses. Registros oficiais apontam a chegada significativa desses imigrantes aos portos de Montevidéu, Buenos Aires, Rio de Janeiro e Santos a partir das décadas de 1870, 1880 e 1890. Muitos desses imigrantes acabaram fixando residência na faixa da fronteira gaúcha com o Uruguai, em especial, nas cidades de Santana do Livramento e Rivera, Quaraí, Artigas, Bagé e mais tarde no Chuí.
A presença da comunidade árabe sírio, libanesa e palestina na fronteira de Santana do Livramento pode ser traduzida como um mundo constituído através da solidariedade, amizade e disposição para integra-se a novas experiências e lugares. As primeiras famílias palestinas chegaram ainda em menor número, em meados dos anos 50. A presença mais significativa dos palestinos na região só viria a ganhar novo impulso após os conflitos de 1967. Em sua maioria, os homens chegavam sozinhos. Eram casados, ou compromissados, viajavam com amigos ou parentes, deixando a mulher e/ou filhos na Palestina natal. A diáspora impunha-se frente às impossibilidades de trabalho e ao amparo da família em uma região de conflito e dor. Se a emigração era associada a sinônimo de lugares seguros onde trabalhar e viver, também significava encarar novos caminhos e novas culturas. Os palestinos chegavam dispostos a trabalhar e adquirir capital para, mais tarde, trazer suas esposas e filhos e reunirem-se com a família, mesmo que em alguns casos esse processo perdurasse por vários anos. A relação afetiva era mantida através de cartas, fotografias, lembranças, onde os pais viam seus filhos crescendo através de imagens enviadas por suas esposas. Certamente os pioneiros vivenciaram um processo dolorido de afastamento e ausência, conseqüência direta da guerra de 1967. Na terra natal que ficava para trás, restava a imposição de cruéis condições de subsistência. Habihi Zeidan, relembrando aqueles anos, quando então era uma adolescente, salienta o momento de instabilidade social, terror e insegurança que a população de Jerusalém padecia:

Pela insegurança, realmente, deixei o colégio, eu tinha recém o segundo ano do segundo grau, tinha 15 anos, deixei colégio, casei com 16, porque fecharam a escola, os judeus! Lá, quando começou a nossa história, em 67, a guerra começou a eliminar nossos livros, começaram a tirar nossas matérias no colégio. Depois, dificuldade para terminar mesmo. Ah, no começo eles fizeram horror!E as pessoas começaram a sair, quem tinha filho mandava fora.


Logo de sua chegada, os palestinos traziam as angústias de uma trajetória acentuada pelo êxodo e pelo trauma da guerra. Em muitas narrativas, acentuam-se as dificuldades em se adaptar ao Brasil, seja cultural, social ou economicamente. A inserção em uma cultura diferente é desafio constante para a comunidade, pois ocasionará dilemas com relação aos hábitos e a sua identidade. Muitos se adaptaram ao novo modo de vida fronteiriço, integrando-se aos costumes locais, outros tiveram dificuldades de introduzir algum hábito. Um cronista santanense, relembrando um dos pioneiros, Ismail Hussein, comenta sua resistência em cultivar o chimarrão, hábito identificador da cultura gaúcha . Ele simplesmente não aceitava o fato de uma série de pessoas, dispostas em uma roda, tomarem mate em um mesmo recipiente. Parecia-lhe algo pouco asseado. No entanto, assegura o cronista, “apreciava um chá ou um café com bolachinhas, com o que obsequiava aqueles que o iam visitar ali na Casa Jerusalém”.
Ainda assim, muitos contemporâneos de Ismail, palestinos e libaneses, adaptaram-se e integraram-se ao novo lugar, sendo comum encontrá-los tomando seu chimarrão no ambiente de trabalho ou familiar. A chegada desses imigrantes será caracterizada pela força de vontade e a persistência em recomeçar suas vidas. Todavia, é inegável que a inserção em uma cultura diferente, bem como em outra realidade sócio-política, trouxe mudanças e dilemas em relação aos hábitos e à própria identidade. O resultado deste processo foi uma conciliação entre estas realidades, com a adesão às duas nacionalidades, tendo a comunidade cultivado uma identidade renovada, com as diferenças culturais coexistindo e integrando os palestinos e seus descendentes brasileiros ao lugar que escolheram para viver!
No fenômeno complexo e múltiplo da imigração, torna-se necessário verificar o grau de abertura, de acolhimento, enfim, de hospitalidade com que os imigrantes foram recebidos, em contraponto com as peculiaridades culturais desses imigrantes, e que proporcionou a reformulação de suas vidas.
Nesse período a comunidade local (Santana (BR) e Rivera (UY)), passou a conviver com uma cultura distinta, diversa daquela tida como “fronteiriça”. O que inicialmente gerou certo encantamento, dado o “exotismo” de sua cultura, a variedade de mercadorias e métodos de vendas, também impulsionou o sucesso de suas “lojinhas”, assim como no início do século ocorrera com os libaneses, que trabalharam de mascates, caixeiros iajantes, circulando pelas cidades do Rio Grande. Quando os palestinos chegaram encontraram os vigorosos comércios de origem libanesa, já referenciais na comunidade fronteiriça. Os preconceitos que alguns sofreram não alteraram a abertura positiva que sentiram por parte do povo brasileiro, e as condições favoráveis de comércio, bem como o acesso e assimilação da nova cultura.
Varejistas, em sua grande maioria, introduziam novas formas de comercializar e uma multiplicidade de mercadorias, unindo preços populares, diversidade e qualidade. Geralmente suas lojas eram batizadas como um símbolo que identificavam sua terra, seja Casa Jerusalém, Casa Natal, Casa Palestina, ou mesmo Casa Paulista, curiosamente, em homenagem a cidade de São Paulo, que primeiramente os acolheu e que era provedora de suas mercadorias.
O êxito dos pioneiros pode explicar o estímulo dado ao processo imigratório dos anos seguintes em todo o Rio Grande. Mas se o relacionamento com os fronteiriços foi caracterizado pela negociação entre as duas culturas, também não foi isento de desentendimentos e incompreensões mútuas. Logo após os primeiros anos da chegada, e com o êxito de seus comércios, muitas famílias tiveram que se aprimorar na língua portuguesa e observar atentamente ao seu redor a cultura local. Como seus irmãos libaneses, muitos empresários sofreram também algum tipo de preconceito, seja pela religião – a maioria é muçulmana – seja pelo sucesso natural de seus empreendimentos, populares e de produtos diversos, que acabavam por arrebanhar uma clientela fiel. A partir dos anos 90, outro elemento foi incorporado a esse quadro, com a invasão dos EUA ao Iraque e após o 11 de setembro de 2001. Algumas famílias palestinas sofreram discriminação por serem muçulmanas em uma região predominantemente cristã.
A partir de então, a comunidade palestina, com sua cultura fortalecida, graças também ao sucesso econômico de seus empreendimentos, vai resistir a novas ondas de estigma e preconceito, recriando estratégias de sobrevivência e convivência com a comunidade local. Seja na divulgação de seus hábitos culturais, como a adoção do véu pelas mulheres, ou no lazer, com a inauguração da sede social da Sociedade Palestina, a comunidade se fortalece e impõe seus costumes. As mães procuram matricular seus filhos em escolas que respeitem e estimulem suas práticas religiosas e, no aspecto estritamente religioso, a construção da primeira mesquita e mais tarde o cemitério da comunidade palestina são marcos de uma plena e exitosa fixação nas terras fronteiriças.
Passadas mais de quatro décadas após sua tímida chegada à fronteira, a comunidade palestina santanense pode enfim comemorar sua unidade cultural e prosperidade econômica. Atualmente os palestinos fixados em Santana e Rivera contam com cerca de 550 integrantes, a maioria muçulmana. Muitos dos pioneiros residem no Brasil, porém têm seus negócios também e às vezes preferencialmente em Rivera, no Uruguai. Isso os distingue daqueles primeiros libaneses do início do século 20, que viviam e trabalhavam em Rivera.
As famílias pioneiras inscreveram-se nos anais do crescimento econômico da região, graças à sua força de trabalho, determinação e, finalmente, à consolidação de um crescimento econômico ímpar. São proprietários de redes de hotelaria, meios de comunicação, mega empreendimentos no comércio de importados, devolvendo à região um vigor somente vivenciado nas primeiras décadas do século passado. Embora nessa trajetória tenham encontrado alguns percalços para reestruturar suas vidas em uma terra estrangeira, estiveram sempre ligados a uma admirável persistência e vontade de lutar por dias melhores. Assim construíram novos laços culturais na região, sem esquecer sua cultura e a resistência política em busca de justiça para a terra tomada de seus pais e avós: a Palestina!

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* Historiadora, pesquisadora do Sul da Bibliaspa- Biblioteca e Centro de Pesquisa América do Sul Países Árabes.

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[1] ZEIDAN, Habihi, 54 anos, palestina de Jerusalém, em Santana do Livramento, em 30 de julho de 2008.

[1] MACHADO, Luciano. Escritor santanense. Publicado originalmente no Jornal da Semana, Santana do Livramento- RS, em 07.04.2001