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Escritores Gaúchos

                                    
                                                          Leila de Souza Teixeira                       

... enquanto trocava a marcha, a mão escapou e tocou a perna do amigo. Virou assustado para o caroneiro, os dedos empaparam o volante. Começou a falar a palavra desculpa, mas foi interrompido pelo sorriso no banco ao lado. Voltou o rosto para frente e dirigiu por mais duas quadras, sem tirar os olhos do trânsito. Uma gota de suor escorreu da testa, passou pela artéria que saltava no pescoço e acabou na gola da camisa. Além do barulho da Alameda Jaú às oito da noite, nenhum outro som dentro do carro. Depois da conversão para a Augusta, espiou de forma rápida o assento à direita. O sorriso continuava ali e parecia lhe dizer que avançasse em direção ao que havia começado, ou que parasse com a falsidade que os envolvia talvez desde quando Ana apresentou os dois. O sorriso continuava ali e parecia lhe dizer que aquela ficaria marcada como a noite em que, de repente, no meio da Alameda Jaú, tocou minha perna. Vi que foi sem querer, porque olhava pra ele naquela hora, adoro olhar pra ele, faz muito tempo que adoro olhar pra ele, acho que estava olhando justamente pra mão, pro jeito atrapalhado como ele trocava as marchas, torcia pra que ela escapasse e caísse em mim, vi que foi sem querer, mas foi importante mesmo assim, porque isso já devia ter acontecido há muito tempo, há tanto tempo que olhei aliviado pra ele, aliviado e feliz de finalmente ter acontecido uma coisa, uma coisa finalmente pra fazer um buraco nessa nuvem de mentira que nos envolve e ao mesmo tempo nos separa, desde o dia em que Ana foi me buscar em casa, e ele desceu do carro pra que eu entrasse no banco de trás, desde o primeiro aperto de mão, quando nos olhamos pelo infinito no fundo da alma e só lembramos da Ana no banco do motorista quando ela começou a buzinar, desde a primeira carona, onde nem a presença da Ana impediu que dividíssemos a cumplicidade recortada no retrovisor, uma coisa finalmente pra fazer um buraco nessa nuvem de mentira que não nos deixa ver direito a história que pode acontecer entre nós dois. A história que está aqui, mas que deve ser desvendada. Mas talvez aquele olhar não lhe dissesse nada disso. E fosse ele, não o amigo, que estivesse interpretando aquele olhar da maneira que mais lhe agradasse. Como todos os outros olhares. Que quem sabe não tenham significado coisa alguma. Nem no primeiro aperto de mão. Nem no recorte do retrovisor. Nem nos últimos meses, a cada nova carona. Nenhum dos olhares significou nada. E o jeito que ele me olha deve ser apenas agradecimento, porque lhe dou carona sempre que precisa. Pois sou o marido de sua melhor amiga, e dizem que Ana está tão feliz depois que me conheceu. E, se parece gostar de mim, é por ser fã dos meus contos e dos personagens que crio para as montagens da Ana. E é muito provável que todos esses pensamentos que atribuo a ele sejam apenas eu criando mais um personagem. Inventando mais uma aventura, sobre um fato que não é da maneira exata como eu digo que é. Inspirado nos momentos que passamos dentro do carro. Os minutos que até hoje eram os mais confortáveis do dia, nos quais não havia ninguém a quem representar, dentro dos quais eu era inteiro e tranquilo. Os minutos que nunca mais voltarão, atropelados pela mão que escapou e tocou a perna. A mão que trouxe de volta o desconforto e a ansiedade e que ligou a seta para converter à direita. Perdeu a Antonio Carlos e teve que fazer o retorno na Matias Aires. Com o canto dos olhos, viu que o amigo olhava fixo para o painel do automóvel. Entrou na Haddock Lobo. A pista esquerda interditada fazia com que os carros se movessem de forma muito lenta. O silêncio se arrastaria pelas três quadras que separavam os dois do lugar onde Ana os esperava. Tentou encontrar um assunto, mas o amigo parecia distraído observando as pessoas que andavam pela calçada.

 

 

                                              Sobre a Autora 

Leila Teixeira é uma escritora de palavras silenciosas. Os seus contos se constroem no espaço impossível do silêncio, na sombra do não-dito, no atrito entre aquilo que está no papel e o segredo que cada leitor carrega consigo. Cada narrativa traz a insatisfação de que um detalhe essencial foi perdido, mas talvez esta seja a intenção da autora, pois toda história humana é quebrada, constituída por diminutos cacos a que tentamos dar a forma de um mosaico, ainda que as separações insistam em nos mostrar que jamais conseguiremos a necessária unidade.

"Em que coincidentemente se reincide" é um livro que deve ser lido na frente de um espelho imaginário: os contos duplicam-se e multiplicam-se, caminhando com vida própria dentro de uma estação de trens, ocasionalmente se esbarrando, em outras flertando entre si, em poucas discutindo, mas nunca indiferentes. As narrativas se comunicam, às vezes com sussurros, outras com gritos. É um livro complexo, do qual o leitor sempre emerge com a sensação de que faltou alguma coisa, algum detalhe. E retorna a uma leitura renovada, fresca, original, como se estivesse lendo o livro pela primeira vez. Poucas são as obras que, como uma Fênix, conseguem queimar diante dos olhos do leitor e voltar à vida, na leitura posterior, como se nada tivesse ocorrido.

O diminuto tamanho do livro é enganoso. As páginas escorrem com a precisão de uma ampulheta. O tamanho dos contos, a palavra seca e a situação descrita com múltiplas camadas de compreensão devora o tempo da leitura, deixando-nos com a sensação de que o livro é, ao mesmo tempo, o universo e um grão de areia. "Em que coincidentemente se reincide" pode ser lido de muitas formas, inclusive na forma de um livro de contos da autora gaúcha Leila de Souza Teixeira. Poderia ser um romance. Poderia ser uma roda de histórias saborosas contadas ao redor da fogueira. Poderia ser as recordações de uma pessoa, o seu diário mais íntimo e secreto, aquele tão único que sequer é escrito. Poderia ser a minha vida ou a de qualquer outro leitor, revelada com habilidade ímpar aos olhos alheios. Poderia ser tudo, mas é o infinito dentro de um livro – como toda boa narrativa deve ser.

Logo na abertura, em "Corte seco", Leila mostra toda a sua habilidade, escolhendo um narrador quase-câmera para afastar a emoção do verdadeiro foco narrativo, um homem que faz a edição de filmes, incapaz de intervir na história dos outros. O soco na boca do estômago nem desapareceu e o leitor é novamente surpreendido por um personagem que, unindo Platão, Nietzsche e um inesperado determinismo familiar por suicídio, anuncia ser a própria autora do livro "Em que coincidentemente se reincide" e que vai se matar. O limite entre realidade e ficção é destruído e, a partir deste momento, cada história ressoa com a impressão de que, a qualquer momento, a autora voltará a aparecer como personagem. "A outra volta do soldado" é o legítimo conto à moda antiga: uma história contada com energia oculta, com diálogos que dizem mais do que palavras, com situações que soam resolvidas fora dos limites do conto. Nesta homenagem a Hemingway, entrelaçam-se o estilo do autor americano com um viés político que faz falta à literatura atual, mais preocupada em agradar gregos e troianos do que ter uma opinião própria sobre assuntos delicados. Este viés político se repetirá em outros contos e, naqueles em que não aparece claramente, a sua sombra surge nos entrecantos da narrativa. Em "Girassóis", a autora sai das fronteiras agitadas do Oriente Médio e vem para os limites entre o Brasil e o Uruguai, mas mantém o tom conturbado, a sensação de que o perigo e a morte também espreitam outros lugares com igual intensidade. "Girassóis" ganha um especial interesse quando lido em conjunto com o seu antípoda na segunda parte do livro, "Oito" (ainda não mencionei, mas um dos grandes atrativos da leitura é que os contos da primeira parte acabam surgindo de formas diferentes, complementares ou inusitadas na segunda metade). Neste conto, a autora mexe de tal maneira com o tempo da narrativa que, de forma sutil, passa a sensação simultânea de algo consolidado e de um conflito ainda incipiente. Não poderia deixar de mencionar Cyro Martins que, no conto "O vórtice mágico", realiza o mesmo processo de deslocamento da realidade para ingressar em um mundo onírico. Conseguir este efeito usando palavras e tendo, como única aliada, a delicadeza com que conduz o leitor pelos meandros da história é uma sensação mágica.

Não vou falar de todos os contos, pois não pretendo entregar mais surpresas para o leitor. Ele que entre no livro de Leila Teixeira e mergulhe nos mistérios ou tente descobrir respostas. O conto que escolhi para ilustrar este texto introdutório, "(Ana)", mostra o talento da escritora. Observem a mudança de narrador, a transição suave, quase imperceptível com que o foco narrativo sai de um e entra no outro; observem as sensações compartilhadas e repelidas pelo casal que sofre em apaixonada resistência, observem a tensão do conflito silencioso, observem a modulação do conto (começa com frases curtas e, quando o sentimento surge, o discurso torna-se caudaloso, incontrolável como o fluxo de um rio, retornando com dificuldade às frases curtas, cautelosas), observem como a autora constrói toda a história em torno de um minúsculo gesto, um toque capaz de desmoronar o muro que separa os apaixonados. Mais do que tudo, observem o título: os parênteses que sofrem, separados por uma única palavra. O nome próprio separado por parênteses também revela o detalhe que os impede de concretizar o amor.

E eis que, no meio de "(Ana)", quase sem querer, surge a mais dilacerante declaração de amor impossível. Quando os dois personagens se olham pela primeira vez, um entrando no carro e o outro esperando, o tempo para e "nos olhamos pelo infinito no fundo da alma e só lembramos da Ana no banco do motorista quando ela começou a buzinar". E não é assim que o amor acontece, dois infinitos que se tocam e acabam sendo interrompidos pela buzina da realidade? Então, futuro leitor, apaixone-se também pelo livro da Leila Teixeira – nenhuma buzina será capaz de romper o seu encantamento.

Leila de Souza Teixeira nasceu em Passo Fundo (RS), em 1979, é formada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O interesse por literatura a levou a cursar a certificação Adicional em Escrita Criativa, na PUC/RS, bem como a participar das oficinas literárias de Charles Kiefer, Luiz Antonio de Assis Brasil e Léa Masina. Venceu, em 2005, os concursos Osman Lins e Mário Quintana/SINTRAJUFE. Publicou contos nas antologias Inventário das delicadezas (2007) e Outras Mulheres (2010) e na Revista VOX do IEL/RS (2011). É idealizadora e curadora da Vereda Literária. Em que coincidentemente se reincide é seu primeiro livro individual.

                                                               Gustavo Czkster (gczkster@uol.com.br)