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" O 'gaúcho a pé' "  E-mail
Fortuna Crítica

 

 Maria Luiza Armando

 O texto que segue faz parte da tese de doutorado da Profa. Dra. Maria Luiza de C. Armando, O regionalismo literário e o “mito do gaúcho” no Extremo-Sul do Brasil - O caso de Simões Lopes Neto) (trad.: Suzana Albornoz), defendida em Paris, em 1984, a ser publicada pela Ed. da Universidade Federal de Pelotas (RS) como parte das comemorações do bicentenário dessa cidade, neste mesmo ano do centenário da publicação de Contos Gauchescos. 

 

Após Ivan Pedro de Martins, se traz aqui outro Martins, Cyro, já introduzido enquanto comentador de Maya e cujo livro de estréia foi dado à luz em 1934.[1] 

 

Segundo Vellinho, as primeiras obras de Cyro Martins não superam a ficção regionalista tradicional.[2] Por essa, sem dúvida, o Autor começou, como mostra Campo fora; mas o fez de uma forma já própria e anunciando alguns aspectos de sua evolução futura.

Vellinho e o romancista parecem discrepar quanto ao momento de inflexão da literatura de Cyro. De fato, Vellinho indica Porteira fechada (1944)[3] como marco dessa mudança de rumo. (Quanto ao título, é, de fato, tão expressivo quanto o da obra, citada, de Maya...). No entanto, o próprio Autor, em Estrada nova, diz que o ciclo do “gaúcho a pé” – que caracteriza sua ficção mais significativa – começou com Sem rumo (1937).

 

A propósito de Estrada nova,  diz o Autor: “Este romance encerra um pequeno ciclo sobre o desamparo do gaúcho a pé, que principiou com Sem rumo em 1937, continuou com Porteira fechada em 1944, e teve seu remate, tangido  por uma vaga esperança de melhores dias – em Estrada nova” (MARTINS, C., in Estrada Nova, P. Alegre, Edit. Movimento, 2ª ed., 1975, p. 8). E prossegue: “O tablado onde se desenrola a estória corresponde, na minha imaginação, à fronteira sudoeste do Rio Grande do Sul com o Uruguai. (...) [No texto omitido, o Autor se refere à alternância entre campo e cidade em que viveu após a infância, do que decorre o que aqui se segue.] “...o romance reflete a mescla de elementos campeiros e pracistas que cruzaram e fecundaram minha experiência, aflorando, mais tarde, na re-criação subjetiva (...). Os episódios que centralizam a narrativa aludem circunstancialmente, na  configuração temporal, aos últimos anos da década de 1940. (...) Entretanto, condicionam atalhos evocativos que abarcam um período de vida gaúcha bem mais extenso (...) envolvendo, no retrocesso, cenários e personagens significativos de ao redor de 1920.” (Id., p. 7).

 

Conforme Vellinho, C. Martins teria ultrapassado com Porteira fechada o capítuloda sociologia romântica”, mesmo se continuou a crer na “legenda que recobre (...) nossa herança guerreiro-pastoril”, e mesmo se, em nome dessa “lenda” e dessa herança, se insurgiu contra os fatores que as degradavam.[4] (Vellinho tem razão, com certeza, no que concerne a esse último ponto).

Em seguida, o ensaísta discorre com veemência sobre os problemas sociais que representariam o verdadeiro risco da não perpetuação dos “bravos pioneiros” do RGS. Escreve então: “Já é tempo de reconhecer que a crise é de natureza puramente social e econômica”. A “crise” é aí a decadência social do campeiro, tema - segundo Vellinho - de Porteira fechada, “romance amargo, opressivo”, que ele opõe aos “quadros idílicos da vida campeira” pintados por outros autores.[5]

 

A decadência em questão se deve, segundo Vellinho, à “engrenagem capitalista”: “pela exigência de reduzir ao mínimo o custo da produção, a indústria pastoril entrou a eliminar de suas despesas tudo aquilo que pudesse comprometer-lhe os lucros.”  A “engrenagem capitalista” teria destruído o sistema patriarcal, quando as relações entre patrão e empregado ainda não eram “de natureza estritamente econômica”. No entanto, o Autor rejeita cabalmente a idealização do passado à moda de Salis Goulart e, sem o nomear, caracteriza perfeita e ironicamente o “mito da democracia”: “Nada de servidão econômica. Entre patrões e empregados, a mais perfeita comunhão de interesses, os mesmos hábitos, as mesmas necessidades.” (cf. p. 173, Id.)

 

Do comentário crítico de Vellinho, retenha-se o que vem ao encontro do que aqui se pensa: na verdade, Cyro Martins, por suas obras de ficção mais significativas, é o romancista da “crise”, tão fortemente descrita por Vellinho em seus efeitos.[6]

 

E, ainda que não se auto-atribua nenhum título, o romancista, num testemunho escrito, justifica o que aqui se lhe atribui. Conta ele que, por ocasião do impulso dado em certo momento ao regionalismo (impulso que ele considera uma conseqüência da revolução de 1923), ante as façanhas e ações pretensamente corajosas cantadas então em prosa e verso, sentia a distância existente entre esse entusiasmo – próprio à capital do estado e à  literatura – e a realidade rural com que se defrontava quando, nas férias escolares, voltava à casa paterna.[7]

 

Assim, foi provavelmente o impacto da realidade que fez de Cyro Martins um escritor realista; e, também, o que aqui se denomina “realista”: defrontando-se com a realidade “real”, não se refugiou, como Maya, na idealização; ao contrário, atribuiu-se a tarefa de apresentar literariamente “um afresco da decadência que nenhuma retórica nativista conseguiria inserir numa inventiva rósea”.[8] Ou seja, a lucidez diante da realidade fixou sua temática na “crise” a que assistia. Dessa temática, o Autor diz[9] ter-se inspirado na vida dos campos do Sudoeste[10] tal como ela é “flagrada na decadência das tradições gauchescas”, e que sua obra de ficção[11] “pendeu mais amargamente para o realismo do romance social, desviando-se, assim, do neo-romantismo dos nossos regionalistas mais representativos.”[12] Surgiu assim o ciclo do “gaúcho a pé”, que celebrizou o Autor e que seria, segundo esse, a “expressão simbólica do campeiro despilchado do cavalo e da distância, os dois fatores fundamentais que fizeram do homem rio-grandense uma estampa histórica.”[13]

 

[A menção ao realismo social enseja uma observação importante: a aposta aqui – logo, o projeto – foi o estudo da literatura sul-rio-grandense a partir dela própria e de seu contexto específico,  sem sua inserção na literatura brasileira (o que, sem dúvida, Guilhermino Cesar e outros especialistas em literatura brasileira reprovariam). Sem embargo, a menção ao realismo social traz o desejo de vincular agora a literatura regionalista “crítica” ao movimento do chamado “romance de 30” brasileiro, correlacionado, aliás, ao chamado “neo-realismo” português, e, por exemplo, à “poesia social” na Espanha,[14] ao cinema dito “neo-realista” italiano e a tantos outros movimentos que se inserem numa tendência artística da época, em uma parte do mundo ocidental.] [NRA]

 

Todavia, há mais do que isso na ficção de Cyro Martins. Aliás - impulsionado talvez por um sentimento de afinidade –, o Autor põe como epígrafe a seu romance Porteira fechada um fragmento de Simões Lopes Neto em que se trata do “gaúcho pobre”.[15] Na realidade, ao representar ficcionalmente o que denomina “a decadência”, o Autor chega às causas sociais desse fenômeno e, assim, toca no problema, nevrálgico, da propriedade da terra, central tanto em Estrada nova, como em Porteira fechada.

Dessa maneira, Cyro leva à cena uma fase da expansão dos latifúndios, mostrando o quanto, ante ela, é dolorosa a impotência dos desvalidos do campo.

 

Também outra questão fundamental - a das relações entre a cidade e o mundo rural entra em cena pela mão do romancista. Tais relações se encontram então em nova fase: já não se trata mais do orgulho dos gaúchos e de seu desprezo pela população urbana, mas, ao invés, da “emoção de inferioridade dos moradores da campanha em relação aos citadinos”, sentimento novo que aparece quando “os próprios pagos viraram desterro”.[16] Foi então que os marginais do campo começaram a inundar as periferias urbanas [tal qual ainda hoje ocorre].

 

Sem dúvida, está numa nova fase também a literatura regionalista; e a “opinião” – intelectual ou “oficial” - o deve ter percebido, pois o Autor relata: “Já foi dito, a propósito de Porteira fechada, que eu, ao dramatizar  de modo tão chocante a humilhação e a miséria do gaúcho a pé, estaria, até certo ponto, negando as nossas tradições. (...) Agora, entretanto, sinto que será oportuno definir a minha posição em relação à literatura regionalista. Com efeito, sempre achei que, no Rio Grande do Sul, as palavras ‘regionalismo’ e ‘regionalista’ tinham um boleio romântico, com base na idealização da figura do gaúcho a cavalo e da paisagem rio-grandense.”[17]

 

A longa citação é necessária e relevante. De fato, a abordagem de Cyro Martins que aqui se fez baseou-se em obras suas, bem como  nos critérios de análise deste trabalho. Vale dizer: suas posições a respeito do regionalismo e dos regionalistas intervieram aqui posteriormente,[18] motivo pelo qual tornam-se especialmente significativas as declarações do Autor.

Com efeito, o comentário de Cyro Martins sobre a reação que sua literatura provocou após ter mudado de rumo é um testemunho precioso quanto ao contexto ideológico aqui em causa. (Com transcrevê-lo, antecipa-se um dos temas  que serão abordados no capítulo seguinte.)

 

Em resumo, parece estar certo Vellinho ao dizer que Cyro começou seguindo os modelos tradicionais. Soube abandoná-los, porém, por reconhecer a defasagem entre a visão idílica do gaúcho e a realidade de então do campeiro: tornou-se assim o romancista de uma “crise” que despojara o antigo “monarca” dos atributos de sua realeza. Ao encená-la literariamente, Cyro cria um novo símbolo: o  “gaúcho a pé.”

 

 

O testemunho do romancista dá a entender que o impulso do “regionalismo”, na época, coincide com essa “crise”, “crise” que, na perspectiva deste trabalho, é o auge do processo de marginalização do gaúcho.

 

O autor desse excelente romance que é Porteira fechada merece, conseqüentemente, o epíteto de “realista”, porque não só vê a realidade “real” do campeiro, mas, também, constata as causas sociais que a determinam.

 

Vellinho tem, pois, razão: Cyro Martins é, sim, o romancista da “crise”. Mas essa é vista como fato do presente e, tal como suas causas sociais, não remonta, pela mão do Autor, a nada de pré-existente.[19]

 

Tal é, a nosso ver, o único limite da obra de Cyro, no aspecto particular de que trata este trabalho. É provável, sim, que as condições sociais do gaúcho se tivessem degradado então. Pensa-se aqui, no entanto, que o  Autor (e, com ele, a literatura “realista”) não se confronta apenas com uma crise presente (ou uma crise, simplesmente), mas, também, com uma história inteira, com uma crise originária e permanente,  que se enraíza na forma de apropriação do solo cedo  implantada pela colonização.

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* O presente item é um fragmento da “Primeira Parte” (T. I) da referida tese, parte essa intitulada “O Rio Grande do Sul e o ‘mito do gaúcho’ - Panorama da problemática”, que engloba dois títulos: “Campos Elíseos, campos de Marte”, pequena introdução ao Rio Grande do Sul, e “Literatura, mito, ideologia e sociedade no Extremo-Sul do Brasil”, que busca esboçar o trajeto do “mito do gaúcho” (conceito novo, na época) no quadro da cultura e da literatura sul-rio-grandensesNesse grande título (dividido em vários títulos), o fragmento abaixo insere-se na seção “A palavra recuperada”; e, nessa, no item “O ‘mito’ em seu trajeto. A literatura erudita”. Aí, através de autores e obras exemplares, se esboça o surgimento do regionalismo literário, relacionando-o ao “mito do gaúcho” (tomado em seu contexto histórico-social); e, após, o processo de “demitificação” na prosa de ficção regionalista (e regional) erudita (“A prosa de ficção regionalista”). Esse processo é concebido como uma sucessão de momentos nevrálgicos, começando com Alcides Maya e chegando a Erico Verissimo (ainda que não se considere o  último um autor regionalista). Num momento crucial dessa “demitificação”, encontra-se Cyro Martins, que o item abaixo aborda. * A notar que, como fragmento transcrito tal qual, encontram-se aí referências aparentemente incompletas, bem como alusões que não se identificam no texto. (MLCA)

 

[1] Cronologia das obras de ficção de C. Martins: Campo Fora (1934) (contos); Sem rumo (1937) (novelas); Enquanto as águas correm (1939) (id.); Mensagem errante (1942); Porteira  fechada (1944) (romance); Estrada nova (1953) (id.); Paz nos campos (reedição de Campo fora, mais uma parte de Mensagem errante, mais Porteira fechada) (1957) (contos e novelas);  A entrevista (1968) (contos). Referências extraídas de MARTINS, C., Rodeio, ed. cit. Ultimamente [Trata-se da época de elaboração desta tese - NRA], o escritor publicou Sombras na correnteza - romance, Porto Alegre, Edit. Movimento, 2ª ed., 1979, que teve a gentileza de nos enviar. Para aquelas de suas obras que aqui utilizamos, cf. bibliografia (T. IV, disco).

[2] VELLINHO, op. cit., ed. cit., p. 162

[3] MARTINS, Cyro, Porteira fechada, P. Alegre, Edições da Livr. do Globo, 1944.

[4] VELLINHO, “Itinerário de um romancista”, in Letras da..., ed. cit., pp. 159 a 174; cit.: p. 166.

[5] Cits.: VELLINHO, M., “Itinerário de...”, cit., in Letras da..., ed. cit., p. 172.

[6] V. VELLINHO, M., “Itinerário de...”, cit., in Letras da..., ed. cit., pp. 166 a 171.

[7] Cf. MARTINS, C., Rodeio -..., ed. cit., p. 8. / CESAR, G., em “A vida literária”, (in Rio Grande do Sul – Terra..., ed. cit., pp. 229 a 257) é muito sucinto no que concerne a C. Martins.

[8] V. MARTINS, “Nota explicativa”, in Estrada nova, op. cit., ed. cit., p. 9.

[9] MARTINS, C., Campo fora, in Paz nos campos, contos e novelas, R. de Janeiro/P. Alegre/S. Paulo, Edit. Globo, 1957 (“Coleção Província”).

[10] Evita-se aqui o uso do termo “campanha” para os campos de criação de gado, a fim de evitar confusão com a região da Campanha (campos do Sudoeste: os da Campanha em sua parte oeste).

[11] C. Martins, psicanalista de profissão, escreveu também sobre assuntos psicanalíticos.

[12] Cits.: MARTINS, C., “Nota explicativa”, in Id., Estrada nova, ed. cit., p. 8.

[13] “Nota explicativa”, in Estrada..., ed. cit., p. 8.

[14] V., p/ ex., MELLADO,  Andrés, “A poesia espanhola em língua castelhana de 1939 a nossos dias”, trad. M. L. de C. Armando, in Fragmentos – Revista de Língua e Literatura Estrangeira da Univ. Fed. de Santa Catarina, vol. 2, nº 1, 1997.

[15] Trata-se de um fragmento de “A salamanca do Jarau”, in LS, in CGLS, ed. cit., impr. cit., p. 291: “E assim, por esse teor, as cousas corriam-lhe mal; e pensando nelas, o gaúcho pobre, Blau, de nome, ia, ao tranquito, campeando, sem topar coo boi barroso.

[16] MARTINS, C., “Nota explicativa”, in Estrada..., ed. cit., p. 9. V. o que diz Vellinho no  ensaio sobre C. Martins, cit., a propósito das crianças abandonadas a sua sorte de marginais.

[17] MARTINS, C., “Nota explicativa”, in Estrada..., ed. cit., p. 8.

[18] Se interessar, cf. a primeira versão desta parte de nosso trabalho, cit., em que os testemunhos de C. Martins não constam.

[19]  Tal é também o caso de Vellinho enquanto comentador das obras desses escritores.