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Relendo "Perspectivas Humanistas da Medicina Contemporânea" | Imprimir |  E-mail

Betina Mariante Cardoso*

Revisitando minha leitura do ensaio “Perspectivas Humanistas da Medicina Contemporânea”, feita para o Colóquio Saúde Mental na Formação Médica (Porto Alegre, 1999),  atravesso  os trechos  que sublinhei. Busco refletir hoje, como fiz há treze anos, sobre a pergunta ‘Quais as características do Humanismo Médico Contemporâneo?’, feita por Dr. Cyro Martins, já na primeira página do ensaio.  Ou, já avançando para o verso da folha: ‘em que consistem os objetivos do Humanismo Médico?’ Esse texto foi o que me coube comentar, na  apresentação daquele evento, ainda como acadêmica de Medicina.

Percorro, aqui, a trilha dos sublinhados da minha leitura de então.

“Seja como for, enfocado na Grécia, no Renascimento ou no Século XX, a base ideológica de todos os humanismos continua sendo o aforismo do sofista Protágoras: ‘O homem é a medida de todas as coisas’”1. No ensaio, Dr. Cyro refere que a Psicanálise é a grande via humanista da Medicina Contemporânea, pelo olhar abrangente sobre o paciente que permite ao médico. Esse é o olhar para  o paciente como ser humano, ‘medida de todas as coisas.’ E de que forma isto é contemplado? O autor refere, a Psicanálise:

 

“As perspectivas que nos oferece, como assinalei brevemente, abrem-se em dois sentidos. Um, na direção das Artes, da Antropologia, dos mitos, das religiões. O outro se orienta para a atividade clínica, proporcionando-nos uma visão global do doente. E, ao apagar as fronteiras das especialidades médicas, arbitrárias mas necessárias na prática, a Psicanálise levou para a clínica- evidenciando que a personalidade se revela através das múltiplas expressões que emanam do organismo, sejam verbais, sensoriais, secretoras, motoras ou humorais- o interesse pelas reações humanas em geral, quer se manifestem no fulgor de um olhar, na contração de um músculo ou na luminosidade de um verso. A Psicanálise, portanto, nutriu de humanismo o pensamento médico do século e enobreceu o nosso ofício, contribuindo como nenhuma outra teoria para a concepção unitária do homem.2(op.cit)

Há que se considerar que esse ensaio fora publicado no livro  A Criação Artística e a Psicanálise, de 1970. E hoje, em nosso Século XXI, que olhares podemos lançar aos referenciais disponíveis, a fim de compreendermos, como médicos e profissionais de saúde, o homem como fenômeno global?

 No percurso até nosso tempo, podemos citar diversos modelos epistemológicos de formação do médico, como o Biomédico, o Biopsicossocial e o  Humanista, que  seguiram com a progressão do olhar para o sujeito-paciente, da parte para o todo.

O primeiro, Positivista ou Biomédico, surgiu pela prática médica de orientação cartesiana: passando pelo Positivismo do Século XIX, alcançou o Século XX, abraçando entusiasticamente a Ciência, nos anos 20, 30 e 40. As bases do conhecimento derivavam das Ciências Naturais, usando um discurso descritivo e explicativo fundamentado nas Leis Naturais. As bases morais enfatizavam, entre outros aspectos, a beneficência paternalista (o ‘fazer bem’ ao paciente, bem esse definido pelo médico)2.  Tal modelo recebeu validação, mesmo que implícita, do Relatório Flexner (1910), diretriz básica de muitos currículos médicos, com sua ênfase nas Ciências Básicas e na Estrutura Sequencial presente nos currículos médicos3 (op.cit) .

O surgimento do Modelo Biopsicossocial, em 1946, contemplou as áreas de Sociologia Médica,  Antropologia Médica e Psicologia Médica, procurando estabelecer uma base mais ampla nas Ciências Sócio-Médicas, na tentativa de substituir a inspiração natural-científica do primeiro modelo epistemológico. O paciente começou a ser entendido num contexto de sistemas de vida, sendo afetado por influências oriundas de múltiplos níveis e interativas4 (op. cit.) .

As Ciências Sócio-Médicas, contudo, acabaram por abraçar o pensamento científico.  Mantinha-se a supremacia do Modelo Biomédico, até que tudo irrompesse em uma grave crise da Medicina. A despersonalização, tecnicisação, especialização, socialização, o mecanicismo Cartesiano e o reducionismo biológico foram os pilares dessa crise, nos anos 605(op.cit).

A respeito dessa perspectiva, da qual o Modelo Biomédico é emblemático, trago um novo trecho do ensaio do Dr. Cyro, que ilustra, de forma contundente, as consequências de uma Medicina baseada em especializações:

Os avanços e as técnicas converteram a Medicina numa disciplina de especialistas, vangloriando-se os médicos, quase, pelo fato de ignorar por completo o labirinto do vizinho. Com efeito, impossibilitados de assimilar e logo incorporas à sua prática toda uma imensa complexidade da Genética, da Bioquímica, da Biofísica, da Psicologia Profunda e ainda da Biossociologia moderna, bases da medicina científica dos nossos dias, os médicos, na sua grande maioria, assumiram a defesa cômoda da negação, e cada qual passou a desfrutar, canibalisticamente, do seu pedaço de homem.6(op.cit)

Considero esse o trecho de maior relevância do ensaio do Dr. Cyro, partindo, aqui, da proposta de fazer uma releitura a partir de ‘século XXI’ do mesmo.  Assim, atentei ao trabalho do autor buscando perceber, como médica, o que permanece vivo em nosso comportamento profissional. E confesso que as frases: ‘ignorar por completo o labirinto do vizinho’ e ‘desfrutar, canibalisticamente, do seu pedaço de homem’ são, ainda hoje, vigentes e preocupantes. Profundamente preocupantes, em meu ponto de vista.

Foi, pois, foi entre o final da década de 60 e início da de 70 que o Modelo Humanista começou a emergir. Este, referido como ‘biopsicossocial, hermenêutico e normativista”, permitiu a chegada do sujeito clínico e moral na Medicina, com valores e aspirações à qualidade de vida.  Para esse modelo, a competência profissional da saúde vai além da prática clínica científica: abrangendo a excelência técnico-científica e traços humanísticos, o bom profissional definido pelo Modelo Humanista deve apresentar ambas  virtudes. Tal conjunção pode ser representada pela idéia de que o médico de excelência  deve ser um técnico e um humanista7(op.cit).

E, aqui, novamente, remeto-me ao ensaio do Dr. Cyro, ressaltando a leitura fidedigna, que o autor faz da Medicina do seu tempo:

 Quando se sugere aos médicos que, além de profissionais, sejam também humanistas, isto não significa uma solicitação para que se dediquem mais aos assuntos gerais, à temática do permanente no homem, e descurem suas preocupações de ordem técnica, seus conhecimentos de aplicação imediata. O que dessa forma se está insinuando é que, não obstante a estrita atividade profissional, se mantenham atentos às vibrações de sua época, que poderá ser, conforme a expressão de Ortega y Gasset, de grandeza ou de rotina. A nossa é de grandeza, porque é decisiva8(op.cit)

 

A partir do conteúdo desse último parágrafo, considero que, hoje, contemplar os traços humanísticos requeridos do profissional de saúde não significa renunciar ao rigor técnico-científico necessário para a boa realização da Medicina, mas alinhavar essas características. Esse alinhavo significa, de modo consistente, que o referido rigor será potencializado, reforçado pelo exercício dos demais domínios, nos profissionais ‘atentos às vibrações de sua época’.

O ganho, ao final, é do paciente: este, ao invés de ser compartimentado nos territórios ‘canibalisticamente desfrutados’, poderá ser visto como um indivíduo a ser assistido em sua humanidade,  com tantos matizes, fronteiras indefinidas, doenças, dores físicas e emocionais. Como atenderemos essas questões, na condição de profissionais da saúde?

Atendendo à pessoa do paciente. Pode-se utilizar, como referencial, a ‘Medicina Centrada na Pessoa’, também modelo de grande relevância em nosso tempo, e que atende às ‘vibrações’ de nossa época, o que sugeriu Dr. Cyro Martins. Acima de tudo, perceber e tratar a pessoa que nos consulta.

Então, conhecendo e praticando as ‘Perspectivas Humanistas da Medicina Contemporânea’, tornamo-nos profissionais voltados para os cuidados com o sujeito de nosso tempo: global, múltiplo, interdisciplinar, atento às  esferas orgânicas, psíquicas, culturais, comunicativas e tecnológicas.  Assim, nossa linguagem o alcança de um modo amplo: ele  se sente respeitado, porque está sendo olhado também pelo que sente e pensa, pelo que lê e se informa-  e não apenas pelo diagnóstico de sua doença e pelo tratamento efetivo da mesma. Estes últimos, sem sombra de dúvidas, imprescindíveis, mas não suficientes na concepção do homem como um todo.

Percorrendo a trilha de minha leitura sublinhada, percebi a atualidade, neste século XXI, desse ensaio do Dr. Cyro Martins. Hoje, embora tanto tenha mudado, ainda se buscam ferramentas para compreender a pessoa do paciente de forma mais completa.

Além do acima exposto, saliento, por fim, a existência das Humanidades Médicas, ferramentas das disciplinas humanísticas para o ensino da Medicina aos alunos da graduação, residentes, pós-graduandos. Esse é um recurso muitíssimo válido para treinar os profissionais em uma escuta e na percepção do indivíduo em suas nuances, em sua humanidade. Trata-se de uma ferramenta para o exercício do Humanismo Médico, tão bem apresentado pelo Dr. Cyro Martins, e de benfazeja aplicação no ensino médico de nossos tempos.

Referências bibliográficas

  1. 1.Cyro Martins. Perspectivas Humanistas da Medicina Contemporânea. IN: In: A criação artística e a psicanálise. Porto Alegre, Sulina, 1970, p. 61-76.
  2. 2.Cyro Martins. Perspectivas Humanistas da Medicina Contemporânea. In: A criação artística e a psicanálise. Porto Alegre, Sulina, 1970, p. 61-76.
  3. 3.Ricardo Tapajós- Tese de Doutorado-USP . "O ensino da medicina através das humanidades médicas: análise do filme And the band played on e seu uso em atividades de ensino/aprendizagem em educação médica". SP, 2004.
  4. 4.Ricardo Tapajós- Tese de Doutorado-USP . "O ensino da medicina através das humanidades médicas: análise do filme And the band played on e seu uso em atividades de ensino/aprendizagem em educação médica". SP, 2004.
  5. 5.Ricardo Tapajós- Tese de Doutorado-USP . "O ensino da medicina através das humanidades médicas: análise do filme And the band played on e seu uso em atividades de ensino/aprendizagem em educação médica". SP, 2004.
  6. 6.Cyro Martins. Perspectivas Humanistas da Medicina Contemporânea. In: A criação artística e a psicanálise. Porto Alegre, Sulina, 1970, p. 61-76.
  7. 7.Ricardo Tapajós- Tese de Doutorado-USP . "O ensino da medicina através das humanidades médicas: análise do filme And the band played on e seu uso em atividades de ensino/aprendizagem em educação médica". SP, 2004
  8. 8.Cyro Martins. Perspectivas Humanistas da Medicina Contemporânea. In: A criação artística e a psicanálise. Porto Alegre, Sulina, 1970, p. 61-76.

*Médica Psiquiatra, Especialista em Psicoterapia de Orientação Analítica pela UFRGS. Mestre em Psiquiatria pela UFRGS. Sócia-fundadora e diretora da Casa Editorial Luminara. Colaboradora do CELPCYRO. Organizadora, junto a Beatriz Viégas-Faria e Elizabeth Brose, do livro Kate Chopin: contos traduzidos e comentados-Estudos Literários e Humanidades Médicas, publicado pela Casa Editorial Luminara, em 2011. Coordenadora Editorial do livro Memórias de um corpo eviscerado, de Elizabeth Brose. Editora e tradutora do livro ...e viveram ciumentos e felizes para sempre, da Médica Psiquiatra e Neurocientista italiana Donatella Marazziti, publicado pela Casa Editorial Luminara, em 2009. Pesquisadora, no CELPCYRO, da área de  Humanismo Médico, tal como as Humanidades Médicas foram denominadas pelo Dr. Cyro Martins.