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Na casa de nossos pais - José Francisco Botelho  E-mail
Escritores Gaúchos

 

 

 

               Não sei por onde começar, nem como te explicar o que aconteceu (o que está acontecendo) na casa de nossos pais. E ainda que pudesse levar esta carta ao correio – algo impossível agora, pois estou trancado no quartinho dos fundos – eu não saberia como endereçá-la: desconheço teu destino, tua ocupação, teu paradeiro. Quando o Pai e a Mãe morreram, e nós dois partimos de casa, há tantos anos, eu acreditava que ficaríamos sempre juntos, viajando pelo mundo. Juntos, como no útero – diferente dos outros irmãos, os mais velhos e os mais moços, a quem deixamos a casa. Lembro nitidamente de nossas viagens pelo sul, a felicidade de mergulhar cada vez mais ao fundo do continente... até que um dia, naquele albergue da Patagônia, surgiu o poetastro mexicano que te arrastou para longe, com suas coplas desengonçadas. Sumiste, fiquei furioso e nunca mais te procurei. Vaguei por diversos pontos cardeais e sei que mais tarde tentaste me encontrar, mas escondi minha pista com astúcias de espião. Anos depois, na Cidade do México, cheguei a te avistar num museu, quase te abordei, mas então acendi um cigarro e fui embora. E hoje, Milena, estou de volta a casa e tu continuas perdida no mundo. Acho que nunca nos encontraremos de novo, mas não me resta outra opção além de escrever esta carta – sabendo que provavelmente não a lerás. A quem mais eu poderia contar o que aconteceu – o que está acontecendo – à nossa velha casa, aos nossos irmãos? Vamos aos fatos, portanto. Mas antes, uma súplica: se por milagre encontrares este caderno (que em breve vou atirar pela janela – e rezarei para que alguém o cate na rua), escuta meu último conselho: nunca voltes para casa, Milena.

               Não darei detalhes sobre o que fiz e vi após nossa separação. Que importa se viajei aos Mares do Sul e ao Oriente, se comprei um livro de horas, se fiz amizade com um padeiro em Zanzibar, se sonhei com leopardos num terraço nos Bálcãs, se aprendi a notação musical árabe e algumas palavras em iídiche? Importa que, há algumas semanas, voltei para casa e a encontrei vazia.

               Era um dia de chuva, e eu descera na estação da cidade, carregando minha parca bagagem. Caminhei pela estrada de areia que entra nos campos e, atrás de um monte, avistei o casarão cercado pelas laranjeiras. O pomar estava desgrenhado; e a porta, trancada. No vestíbulo, parei, secando os pés no capacho (caíra um chuvisco alguns minutos atrás). Olhei ao redor: o vestíbulo estava limpo, sem poeira, a bíblia aberta sobre o aparador, na primeira página do Êxodo – tudo igual ao dia em que partimos, lembra? Nesse momento, o carrilhão bateu dezoito horas.


               Senti os cabelos eriçados e um torpor gélido no estômago. Tu bem sabes que a batida do relógio me arrepia. Segui adiante, sem ruído, pois planejava surpreender os irmãos. Imaginei suas reações: Dora me abraçaria disciplinando a emoção, correta, nobre e humana como nossa Mãe; já os três caçulas explodiriam em gritos de alegria assim que me vissem e trocariam comigo alguns insultos afetuosos, como é hábito na família. Antecipava tudo isso, avançando pelo corredor, até que senti um cheiro de coisa podre. A mesa estava posta, mas nos pratos e travessas havia apenas ossinhos esverdeados e cartilagens cobertas de fungos. A mão espremendo o nariz, percebi que membranas de sujeira cobriam os vidros da janela, manchas de mofo azulavam o teto e as paredes, as cortinas estavam roídas, as borlas esfaceladas; e os tapetes, embolados e cheios de furos. Recuei ao vestíbulo e só então fiquei realmente assustado: o carrilhão ressoou outra vez e, de novo, eram dezoito batidas.

               O agouro estava completo e eu tinha certeza de que algo terrível acontecera na casa de nossos pais. Tremi: não sabia o que fazer. Correr à rua? Não – eu estava exausto de viajar, tão exausto. Precisava descansar. Estava em casa e não queria ir embora, nunca mais. Respirei fundo e voltei à sala.


               Agora, havia uma ratazana cinzenta em cima da mesa. Me fitava com grandes olhinhos melancólicos, cheios de atenção e familiaridade. Então, Milena, não sei explicar o que houve, talvez uma epifania, uma iluminação atávica – ou talvez naquele instante eu tenha enlouquecido (talvez esteja louco agora). De qualquer forma, tive certeza, uma certeza imediata, invencível e inexplicável, de que essa ratazana era Dora. Ela soltou um barulhinho comprido, fino, tristíssimo: me reconhecia, seu irmão do meio – e onde estavas tu naquela hora, Milena?

               Então três filhotes de rato vieram correndo dos quartos contíguos. Ficaram imóveis, me olhando no rosto, perplexos e infelizes. Tive outra certeza, a de que esses eram nossos caçulas – José, Jeremias e Julio. Arranhei a fronte e comecei a chorar. Sobre nossa casa, tombara alguma espécie de maldição. Um terrível e poderoso sortilégio que transformou todos os ocupantes em ratos. Abandonadas, as salas e quartos se entregaram à poeira e à imundície. Tu e eu nos salvamos porque estávamos longe; mas eu retornei e, de alguma forma, a maldição me alcançava. Não virei um rato, mas entendi que minha sina era a mais severa de todas, pois essa era minha casa, e esses, agora, eram meus ratos.

               Nos dias seguintes, dormi no vestíbulo, porque todas as outras peças cheiravam a decomposição e umidade. O carrilhão batia sempre dezoito horas: de manhã, de tarde, de noite, de madrugada. Percebi que nenhum grão de pó se depositava sobre a madeira do aparador ou as lajotas do assoalho. Misteriosamente, ali, no vestíbulo, tudo se mantinha igual ao dia em que fomos embora, enquanto o resto da casa apodrecia.

               Quando raiava o sol, eu acordava ao toque do relógio e me entregava à heróica tarefa de purificar a casa, usando as ferramentas que encontrei no porão. Joguei fora os ossos e dejetos que estavam espalhados em todas as peças, esfreguei o cascão dos vidros e dos azulejos, devolvi aos móveis, revirados, suas posições habituais. À noite, eu ia até a cidade arranjar comida. Evitava conversar, mas ouvi o suficiente para ter certeza: lá, todos haviam esquecido a existência de nossa família. Isso de certa forma facilitava as coisas para mim – eu não precisaria explicar a estranhos o horrível enigma de nosso destino.


               Limpar a biblioteca foi uma tarefa particularmente dolorosa. Enquanto eu raspava o bolor das capas e lombadas, imaginava o Pai sentado naquela cadeira de espaldar marrom, lendo em melancólica felicidade à luz do crepúsculo. Nossos irmãos eram companhia constante nesses périplos – e compartilhavam meu sofrimento quando eu me detinha frente às antigas estantes do Pai. Dora se encolhia num ângulo da parede, escondendo os olhinhos de roedor, incapazes de chorar. Jeremias e Julio corriam pelo chão, ruidosamente misturando raiva e dor. José, às vezes, se aproximava de meus pés e erguia as patinhas dianteiras, numa desagradável mas sincera demonstração de simpatia. Para acalmá-los, eu jogava porções de biscoito ou sucrilhos – e depois desviava o rosto, para não ver a involuntária agitação de seus rabos enquanto comiam.


               Durante algumas semanas, cuidei dos irmãos; e eles, de certa forma, cuidaram de mim. Pareciam recordar os hábitos humanos e se esforçavam – creio – para amenizar meu próprio infortúnio. Não faziam muita sujeira nem atacavam minha comida. Com paciência, esperavam que eu os alimentasse.


               Mas essa relação transtornou-se num domingo, cerca de um mês após meu retorno. Acordei ao som da chuva, e esperei as costumeiras e voluntariosas dezoito batidas. Mas nessa manhã o carrilhão, inexplicavelmente, funcionou direito: bateu seis vezes, apenas. Levantei otimista, sem compreender que as engrenagens do relógio, outra vez alteradas, anunciavam um novo capítulo de desgraças. Ao entrar na cozinha, deparei com os mantimentos esgarçados, jorros de arroz espalhados pelo assoalho e pacotes de carne, em pedaços, sobre a mesa. No meio da confusão, três cabecinhas peludas se ergueram e me olharam – assustadas, bestiais. Em seus olhares, vi apenas um feroz e desavergonhado desejo por comida. Correram para longe, como bandidos.


               À tarde, avistei Dora no corredor. Só a reconheci pelo tamanho e pela cor cinza: dos olhinhos, desaparecera qualquer nuança de humanidade. Tentei atraí-la com raspas de cenoura; ela se aproximou desconfiada, devorou as iguarias e disparou sem olhar para trás. Ouvi seu ventre batendo contra os degraus da escada, enquanto ela se precipitava no porão. Nesse momento, pensei desesperadamente em ti, Milena, e me senti sozinho – sozinho numa casa enorme, velha e atacada por ratos.


               Depois disso, os quatro irmãos sumiram de vista. Ariscos, refugiaram-se no porão. Ao longo do dia, eu escutava suas corridinhas nervosas sob as madeiras do assoalho. Tentei ignora-los. Mais tarde, decidiria o que fazer com eles. Agora, precisava terminar a reforma do sobrado. Comprei tinta na cidade, pintei de branco as salas mofadas, troquei os batentes comidos por cupins. Eu trabalhava sozinho e não sei quanto tempo correu: meses, com certeza. De forma vaga e oblíqua, eu esperava que um dia, mais cedo ou mais tarde, tu voltasses para casa. E então viveríamos tranqüilos, no casarão reformado. Apesar dos ratos.


               Por hábito, continuei dormindo num colchonete no vestíbulo. À noite, antes de mergulhar no sono, e de manhã, ao ressoar do relógio, eu escutava os tumultos no porão – cada vez mais altos e roucos e repulsivos. À medida que os meses passavam, era mais difícil tolerar tanto ruído. Um dia ponderei: o que pensará Milena se entrar em casa e perceber que lá embaixo dançam ratos? A idéia era insuportável. O sangue me pulsava nas têmporas enquanto descia os degraus de madeira, abria a tampa do porão e encarava a sombra sólida e mofada – eu não sabia direito o que estava prestes a fazer, mas tinha apanhado uma pá ao cruzar a dispensa e agora esperava apenas uma coisa: que eles aparecessem de uma vez e me enfrentassem. Olhei, tossi e soltei um grito amorfo, mistura de aviso e desafio. Minha voz desceu até o fundo da terra, retumbou entre as pilastras invisíveis, despertou um farfalhar de patas, um roçagar de focinhos – e então, ergueu-se do escuro um grande alarido. Ressoavam as madeiras e zuniam gritinhos agudos, e tudo se misturava num estrondo seco que subia e regurgitava e que logo irrompeu do buraco do solo e precipitou-se escadas acima, inundando a casa. Eram imundas essas criaturas, e seu nome era legião. Na balbúrdia que me envolvia compreendi: os quatro ratos originais passaram esses meses se reproduzindo ou convocando aliados subterrâneos para reconquistar o terreno perdido.


               Em questão de horas, devastaram o trabalho de meses. Subiram em multidão pelas cortinas novas, atracaram-se no verniz dos móveis e na pintura dos batentes, arrastaram pelas salas, em triunfante confusão, frangalhos de marroquim e papéis de parede. Nossa casa era uma tormenta de ratos, uma borrasca de sujeira e visgo e corrupção que se erguia e se espalhava. Eu zanzava de um lado a outro, um louco idiota, tentando inutilmente combater aquela fúria. Desisti ao contemplar as ruínas da biblioteca.


               Entre as estantes violentadas, dezenas de criaturas disputavam vorazmente as páginas de uma Jerusalém Libertada e de um Ariosto, puxando com as patinhas e os dentes a encadernação de couro, comendo em grandes nacos as ilustrações de Gustave Dorée. Outro bando se engalfinhava com o antigo álbum de família. Após destruir a capa, os ratos devoravam sistematicamente as feições de nossos ancestrais. Um dos vândalos ergueu a cabeça e olhou para mim, o focinho rosado apontando o teto e os dois olhinhos brilhando na penumbra. Em sua boca, dependurava-se o rosto de nosso tataravô, sóbrio e mutilado num farrapo de celulóide.


               Tropecei rumo ao vestíbulo, escutei o grito dilacerado do carrilhão e compreendi que os ratos também haviam chegado lá, que devoravam até mesmo os ponteiros de ébano, o Gênesis, o Êxodo, o Pentateuco... Mudei o curso, claudicava célere de volta à despensa, minha última saída era apanhar os tonéis de querosene e incendiar a casa; mas de novo os inimigos me anteviam, me pressentiam, me superavam. A maré de ratos recuou até os umbrais da sala, deteve-se num instante de horrível expectativa e então rolou clamorosamente para o centro, onde eu gritava sozinho e desamparado. Consegui escapar pelo corredor, coberto de ratos que me mordiam as carnes. Joguei-me contra as paredes e, subitamente, estava no quartinho de costura. Chutei a porta, trancando-a. Estava salvo: mas por quanto tempo? Durante horas, escutei-os trotar e guinchar no corredor. Então veio o silêncio e a escuridão. Quando amanheceu, a casa ainda estava quieta, mas eu sabia que eles me esperavam lá fora.


               A febre veio rápido, a fome e a sede logo se transformaram em tontura e delírio. A janelinha é pequena demais para me deixar passar, mas pelo menos terei a chance de jogar ao léu esse caderninho, que encontrei nas gavetas da máquina de costura – talvez a Mãe o tenha largado aí anos atrás, há quantos anos? Há quantos anos partimos, Milena? Há quantos anos vagamos como tontos? Estou escrevendo há muito tempo e agora chega, vou dormir. Mas antes preciso rezar para não ter de novo aquele sonho, o sonho que me despertou há algumas horas, suando frio. No pesadelo, eu continuava preso nesta salinha, mas um detalhe adicional completava o horror: tu também estavas lá fora, Milena, eras um deles; e, com os outros ratos, miravas a porta, lambias as garras e esperavas a hora do reencontro.

 

 

               Muitas vezes, o que se costuma chamar de extraordinário nada mais é do que o fruto de um olhar diferenciado sobre a realidade. E, por mais comezinha que ela seja, o resultado desse enfoque sui generis é tão mais eloquente quanto maior a capacidade que um autor possui para desvelar elos subjacentes entre fatos aparentemente desconexos, para registrar os múltiplos significados que uma mesma experiência pode ter ou para reconhecer e registrar os símbolos mais apropriados para descrever determinado fato ou sentimento humano. Detentor dessas três capacidades, José Francisco Botelho nos traz uma literatura repleta de imagens, personagens e situações fantásticas que são, em sua essência, signos habilmente elencados e esculpidos para dar conta de apreender o que há de mais profundamente e, não raro, obscuramente humano. 


               Nota-se, na competência da escrita, o lastro da experiência de Botelho como jornalista, tradutor, bacharel em Comunicação Social pela PUCRS e mestre em Letras pela UFRGS; no entanto, toda essa vivência profissional e acadêmica não basta para explicar a inventividade, a originalidade e, sobretudo, a mirada de desconcerto e erudição que o autor demonstra, por exemplo, nos contos de seu livro “A árvore que falava aramaico” (Editora Asterisco, 2011). Botelho traz, em sua ficção, o poderoso influxo de suas múltiplas leituras e – mais importante – uma visão própria, original, de tudo que constrói o que convencionamos chamar de realidade e mesmo dos elementos metafísicos que (aparentemente) escapam a ela.

 
               Eis o mérito de contos como “Na casa de nossos pais”: trazer ingredientes que transcendem a razão para falar de temas que são realidade em sua forma mais pura – os conflitos familiares, a desestruturação do lar e, no limite, as fantasias incestuosas de um homem por sua irmã. Nesse texto, símbolos como a estagnação do tempo, a presença constante da Bíblia com suas injunções patriarcais e imutáveis e a tomada da casa familiar por ratos que se reproduzem entre si até formar um exército constituem um amálgama cheio de significados que, de modo magistral, ilustra uma das teses de Ricardo Piglia sobre o conto, a saber, a noção de que o conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. A bem urdida prosa de José Francisco Botelho, de fato, se constrói em torno e a serviço dessa narrativa cifrada. Todos os apreciadores de boa literatura estão convidados a desvendar os segredos ocultos nos porões dessa obra de múltiplos níveis, de vários andares, cuja exploração tanto se assemelha a um passeio por um antigo casarão, com toda sua solidez, seus enigmas, seus fantasmas.

 

                                                                                                                                                Rafael Bán Jacobsen