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Sobre Memórias de um corpo eviscerado PDF Imprimir E-mail
Escrito por Maria Helena   

Sobre Memórias de um corpo eviscerado, de Elizabeth Brose 

 

                                                                         Érico de Moura Silveira Jr *

  

Memórias de um corpo eviscerado  é um romance curto, mas que impõe longa digestão. O título pujante e impactante apresenta claramente o tema do livro. E a narrativa mantém-se assim durante toda a obra, que retrata a história de uma paciente na luta contra uma enfermidade. É tentador analisar a trajetória desta paciente e seu sofrimento. Confesso ter precisado do meu próprio caderno de anotações  para não me perder no fluxo intenso de ideias da paciente, ora desagregadas ora maníacas. Por isso, acredito que a melhor forma de contar um pouco a respeito do livro é escrever sobre como me senti percorrendo suas páginas.

 

Fiquei imaginando o útero se rompendo. A mente se partindo. Doeu. Senti-me em perigo de morte, como se estivesse dentro deste útero prestes a não ser mais capaz de tornar-se um local receptivo, fértil e habitável. E como todos nós estivemos literalmente lá dentro durante bons meses, não foi difícil compreender a dor deste corpo, um corpo sem nome. Eviscerado.

 

Constatei que, no livro de Brose, pude conhecer um pouco mais do universo feminino - suspeito que a narradora esteja dialogando com outra mulher, uma conversa entre mulheres. É claro que não tenho a pretensão de afirmar que compreendi, nem de catalogar Memórias de um corpo eviscerado  como um tratado sobre a mulher. Penso, sim, que é um romance fascinante sobre o medo de uma mulher deixar de viver, deixar de ser mulher, deixar de ter útero/ mente - não ser mais criativa. Isto fica evidente no esforço que a personagem principal, corpo da mulher, faz para elaborar o sofrimento de ter adoecido (a realidade), e portanto de ter sido violada e estar se recuperando de uma cirurgia.

 

Conforme ela vai metabolizando esta realidade, e suportando a dor visceral/ mental, vai nos participando/ melhorando, ao ponto de em diversos momentos ser jocosa com sua dor. Este processo avança e ela passa a nos contar duas histórias muito interessantes. A dela própria, e outra, de guerra, em que os personagens passam a ganhar a vida (sobreviver) contando suas vivências em combate. Coincidência? Não. Penso que foi a forma com que seu corpo voltou a ter uma mente criativa e pode sobreviver à guerra que estava travando contra o mal que lhe atacou. Para isso, precisou projetar sua dor em outros personagens para nos contar da própria. Assim, voltou a ser um corpo de mulher que pariu uma bela história.A autora foi brilhante. Criou uma atmosfera de pensar para manter o útero integrado ao seu corpo.

 

               A narradora ordena:

          feche seu caderno de anotações, unindo as duas pontas da fita de cetim que envolve a capa (...). Coloque-o em sua bolsa.

                   Não escreva, não pense em coisa alguma. Não desenhe. Não cole. Esqueça que aqui há palavras.

 

           Minha revérie levou-me ao centenário romance de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas (1).  Apesar da óbvia semelhança no título, Brás Cubas entretanto já se apresenta com nome próprio desde a capa, enquanto no romance de Brose o corpo não faz isso. Ela nos leva a uma viagem sensorial para dentro do corpo/ útero/ mente de uma mulher que se sente sem identidade (sem nome) devido ao medo da morte. Brás Cubas é um morto contando sua história. No livro de Brose, há um corpo lutando para seguir fazendo história.

 

Esta analogia, remeteu-me a uma recente publicação de Antonino Ferro, em artigo sobre transferência e contratransferência (2). Ele usou dois livros como se fossem o material clínico para a discussão de seus pontos teóricos. Imediatamente me dei conta de que Memórias de um corpo eviscerado pode muito bem servir para este propósito, como se fosse uma paciente feminina nos narrando sua experiência traumático-terapêutica. Para nós médicos e psicoterapeutas é muito importante que conheçamos a fundo o sofrimento que os pacientes (e nós também) passam ao longo dos tratamentos, da vida. Penso que a arte nos ajuda nesta tarefa dolorosa, porque pode transformar dor em boas leituras, belas imagens e lindas melodias. Ou nos expor a novas ideias para simplesmente admirarmos e pensarmos.

 

Viver esta intensa experiência lendo o fascinante texto de Brose me lembrou da interpretação que Thomas Ogden dá aos textos de Bion (3). Afirma que seu texto tem o objetivo de fazer o máximo possível o leitor sentir-se vivendo o que ele (Bion) experimentou mentalmente com o paciente. Assim me senti lendo Memórias de um corpo eviscerado. E, pois, quis/tentei compartilhar este método neste texto. Vivi a dor de ter meu “útero rasgado pela lâmina fria do bisturi”. Não tenho útero, mas carrego desde sempre um dentro de mim. Boa leitura e boa viagem através deste corpo, que nos permite eviscerá-lo.

 

NOTAS

 

1.   Assis Md. Memórias Póstumas de Brás Cubas.

2.  Ferro A. Variações sobre transferência e contratransferência. In: Artmed, editor. Evitar as emoções, viver as emoções. Porto Alegre2011. p. 143-56.

3. Ogden T. Lendo Bion (ARRUMAR). In: Artmed, editor. Esta arte da psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos. Porto Alegre2005.

                                         

 

* Érico de Moura Silveira Júnior

Médico Psiquiatra, Especialista em Psicoterapia de Orientação Analítica(CELG), Mestre em Psiquiatria (UFRGS),Sócio do CELG