Um gordo de Dickens * |
Estante do Autor - Ensaios |
Cyro Martins
No trabalho Estructura Psíquica Básica del Obeso(1), Arnaldo Rascovsky, Matilde W. de Rascovsky e Teodoro Schossberg assinalam dois mecanismos psíquicos motivadores da obesidade: “Uma obesidade primária, que resulta da organização de um intenso Ego oral, e uma obesidade reativa, que constitui uma tentativa de restauração ante uma situação depressiva básica”. Mais adiante afirmam: “A investigação analítica demonstra o intenso desenvolvimento que experimenta o Ego oral no obeso, pois permite que suas expressões instintivas adquiram, nesse nível, uma máxima capacidade efetuadora. A este intenso desenvolvimento do Ego na etapa oral, corresponde um Ego deficientemente integrado nas etapas seguintes.” Em Joe, personagem de As Aventuras de Pickwik, de Charles Dickens, encontramos uma confirmação plena dos parágrafos citados. Resulta assombrosa, ao mesmo tempo que dramática, a hipertrofia do Ego oral que se observa em Joe. Lamentavelmente, se bem este rapaz gordo apareça com freqüência nas páginas da novela, o que sabemos de sua biografia é muito pouco. Intuímos que é de origem muito humilde, talvez adotado, mas sem categoria oficial de filho adotivo. Na trama da novela atua como criado de uma família numerosa, constituída quase totalmente por mulheres. Do ponto de vista psicológico, o consideramos membro dessa família, cujo esquema é o seguinte: uma senhora já de muita idade, viúva, reumática, surda, impertinente e meio caduca; o filho mais velho da anciã, Mr. Wardle, chefe da casa, também viúvo e entrado em anos, com várias filhas já senhoritas; e uma solteirona, irmã de Mr. Wardle. Viviam todos, puritanamente, numa granja muito rica. Mr. Wardle, subjacentemente à sua proverbial alegria e cordialidade, dá a impressão de um homem fraco, que se deixa convencer facilmente, conforme se poderia documentar citando passagens do livro. Gosta das reuniões familiares e suas únicas manifestações agressivas, verbais, são para ralhar com o voraz e dorminhoco Joe, bode expiatório das impertinências da família. Seu criado, o gordo Joe, o vê e o julga através do prisma exclusivo pelo qual aprecia o mundo. Assim, quando alguém faz um elogio a Mr. Wardle qualificando-o de pessoa de boas maneiras, de idéias sensatas e correto cavalheiro, Joe intervém na palestra para exclamar: “...oh, isso sim! Que formosos leitões cria!” Joe é tão monstruosamente gordo, que um personagem da novela declara não ter visto gordura igual: “... nem mesmo nos circos ambulantes.” Em quase todas as situações em que surge, o rapaz está comendo ou dormindo. De cara enorme, corpulência notável, movimentos lentos, expressões verbais escassíssimas, a maioria das vezes monossilábicas, Joe “faz os mandados dormindo e ronca enquanto serve a mesa.” Cabe aqui a consideração de que, sendo ele um lactente crescido, sua tragédia fundamental é a da criança que, em lugar de ser servida, tem que servir os outros. A cena de sua apresentação é apropriada para por em relevo sua natureza profundamente apática. Meia dúzia de regimentos efetuam manobras, ante a visível excitação dos habitantes de Rochester e arredores. Desfilam os soldados, tocam bandas de música, soa o estrondo das descargas de fogo, há confusão e bulício entre os expectadores. Joe, “...robusto e corado”, dorme no pescante do carro do seu patrão, “...como se o troar do canhão fosse sua habitual canção de ninar.” Este flagrante, não somente é expressivo de sua desconexão com tudo do mundo externo que não seja comida, senão que demonstra ainda o quanto ele se sente impossibilitado de elaborar, fora de seu nível oral, a representação de outras tendências. Daí o recolher-se à posição regressiva do sono. Ao vê-lo, escreve o autor, “... um atento observador o teria suposto, de imediato, encarregado de repartir o conteúdo do cesto, chegada a hora de consumi-lo.” Com efeito, o cesto era de grandes dimensões, contendo aves assadas, fiambres e garrafas de vinho, digno, portanto, de seu guarda. À hora da comida o despertaram com um beliscão na perna, porém só “... se avivou por completo” ao ouvir a palavra comestíveis. Sob o aguilhão de Mr. Wardle, Joe começa a distribuir pratos e talheres lerdamente, porém reage, “...dá um salto e seus olhos pesados de sono brilham por cima de suas faces bochechudas, à medida que vai tirando a comida do cesto.” Em seguida torna a aquietar-se como se adormecesse de pé. O patrão lhe grita. É que “... o rapaz ficara extasiado ante o frango, do qual parecia não poder separar-se.” Mas Mr. Wardle insiste, ordenando-lhe que ande depressa. Joe “...suspira profundamente, e olhando com tristeza o capão, passou-o de má vontade a seu amo.” Mais adiante, com surpresa geral, responde prontamente a um chamado do patrão. Que sucedera que não está dormindo desta vez e sim ligado à realidade? “...havia conseguido subtrair um pequeno pastel de terneira.” Mas logo dorme mastigando. O patrão o desperta outra vez a gritos. Como sempre, “... cumpre as ordens lentamente, enquanto lança olhares lânguidos aos restos do festim.” Esses “lânguidos olhares” expressam seu sentimento de insegurança, porque a constatação de que se acabara a comida reativara seu medo de separação e perda do peito materno. Defende-se dessa momentânea relação conflituosa com a comida, com o “peito-mau”, dormindo, para, em sonhos, aluciná-lo bom. Assim, volta ao pescante, derruba a cabeça sobre o peito e dorme. Muitas páginas adiante, Jo surpreende a um dos pickwickianos beijando-se com a solteirona da casa. Os namorados a princípio se assustam, porém logo se tranqüilizam, pensando: “...estaria dormindo”. Não obstante, equivocavam-se. “... Por uma vez, o rapaz não tinha dormido.” No dia seguinte, vai mexericar junto à velha senhora surda, porque fantasiava tratar-se do proibido, do considerado mau naquela casa, pois não lho era permitido. Não tira nenhum proveito de sua intriga. Pelo contrário, maltratam-no. Com efeito, a cena primária, concebida oralmente, despertara nele, pela primeira vez, um movimento tendente a lutar por seu objeto oral, para poder tentar uma passagem a etapas mais evoluídas, por isso não dormira. Entretanto, seu próprio estancamento evolutivo impede que o creiam, fracassando na intriga. É como se os demais lhe dissessem: “Não te cremos, porque não entendes dessas coisas.” A atitude hostil dos que lhe rechaçaram o mexerico representa seu supergo cruel que lhe castiga por todo intento de aproximação nesse sentido. Isso explica também sua conduta com Maria, como veremos mais adiante. Os personagens da novela o chamam geralmente pelo apelido de “...o rapaz gordo.” Quando o encontramos outra vez, está mais gordo do que nunca. Não gosta de trabalhar, parecendo-lhe interessante ver trabalhar aos demais. Este traço caracterológico põe em evidência sua escassa capacidade de atuação muscular, isto é, a pobreza de sua agressividade no plano sádico-anal. Às vezes o alcunham “...hidropsia, jovem devorador de ópio...” Parecem-nos muito significativas essas expressões, porque sugerem a imagem do feto repousando no útero materno, cercado de líquido amniótico. Como a gordura excessiva representa a mãe superprotetora, o obeso primário (Joe) é uma pessoa “rodeada” de mãe, incapaz de reagir contra seu intenso supergo oral, daí sua apatia. Por isso nos parece tão surpreendente a intuição do escritor ao alcunhar de “hidropsia, jovem devorador de ópio”, o seu personagem gordo. Quando Joe servia a mesa, ao observar “...o jogo das facas e dos garfos e a passagem dos bons bocados que iam dos pratos aos lábios dos comensais”, punha “...uma expressão entre sombria e alegre que o comovia.” Apesar da intenção chistosa superficial do giro literário, cremos que algo captaria de dramático o observador ao fixar-se, nesse momento, na expressão fisionômica “entre sombria e alegre” do rapaz. Era a ansiedade, produto da oscilação de seu sentimento de perda do objeto e de negação de tal perda, oscilação dentre a depressão e a mania, o que captava o observador, por isso se comovia, pois as escassas flutuações emocionais de Joe dependiam intimamente da situação alimentícia. Num banquete de bodas, durante um brinde de Mr. Pickwick, Joe, de repente, sem que ninguém o suspeitasse “estoura em fortes soluços.” Naturalmente, não se tratava de um casamento qualquer, era um casamento de uma das senhorias da casa. Essa explosão emotiva obedecia à vivência de perda de objeto, porém concebida oralmente com o qual fantasiava ter direito, um direito alimentício, já que essa senhorita era parte da imensa mãe composta por todas as mulheres da casa. Joe tem um riso de canibal ao pensar no presunto e no molho. “...Dividia habilmente o tempo comendo e dormindo alternativamente.” De percepção lenta, reage apenas ante às comidas, usando adjetivos como “formoso” para um pastel de carne e para os leitões de seu patrão, isto é, Joe não concebe valorizações libidinosas além da oralidade. Uma única vez faz uma tímida tentativa de aproximação a uma jovem, servente da casa, porém o faz porque, na realidade, quem se aproximou foi ela com a intenção de lhe pedir um favor. “Como você é bonita!” “Disse-o com uma admiração que não podia deixar de ser grata a Maria, porém advertia-se tanto canibalismo no olhar do glutão que o elogio parecia ter um duplo sentido.” Fracassou, e “...depois deste fracasso, o glutão devorou uma libra de carne assada, pôs cara sentimental e adormeceu.” Este episódio confirma o que assinalam os autores do trabalho Estrutura Psíquica Básica do Obeso quando afirmam que a técnica deste é a de “resolver qualquer frustração, comendo.” Tendo em consideração que não se trata de um deficitário intelectual global, mas de um limitado na sua atividade psicomotora, nos seus meios de expressão, na sua capacidade de apreensão no mundo exterior, devido primordialmente à inibição afetiva, provocada pela extrema fixação oral, enquadramos este personagem no diagnóstico psiquiátrico descritivo de oligotimia. Por outro lado, dinamicamente, pode-se dizer que a realidade exterior de Joe está circunscrita à comida, que representa para ele, no nível primitivo em que se move, a mãe, a segurança, a vida. A hipertrofia de seu ego oral é tão gigantesca, uma verdadeira elefantíase da oralidade, que não lhe permite sair do primeiro degrau da evolução psicossexual. A constelação familiar de Joe que conhecemos é a dessa numerosa família composta de muitas mulheres e um único varão, débil e achacadiço, Mr. Wardle. Cremos que, pelo respeito que ainda lhe tributam os seus, agora que está surda e caduca, a mãe de Mr. Wardle foi a chefe efetiva da família. As senhoritas podem ser consideradas irmãs mais velhas de Joe, e ele como último e único filho varão. Ademais, é muito significativo que o autor não tenha determinado a idade de Joe. A intuição psicológica do escritor o levou acertadamente a desprezar esse detalhe, pois a idade do rapaz está definida pela sua estrutura obesa. É como se quisesse significar que todos os obesos do tipo de Joe têm uma única idade, a da lactência. E essa visão se complementa quando o criado de Mr. Pickwick, o fiel Sam, fazendo-se de oráculo, antecipa a Joe, como advertência, qual seria seu monstruoso futuro, se não dormisse um pouco menos e não fizesse algum exercício. Sam lhe conta a história tragicômica de um obeso que fazia quarenta e cinco anos que não podia ver os sapatos quando os levava calçados e que “...se lhe houvessem apresentado um molde de suas próprias pernas não as teria reconhecido.” Projetando assim anedoticamente no futuro a figura de Joe, o autor nos mostra sua captação do perpétuo infantilismo do obeso. O propósito deste pequeno trabalho é evidenciar como, através dos dados apresentados sinteticamente, se pode enquadrar a personalidade de Joe dentro da constelação de situações internas e externas que os autores de Estrutura Psíquica Básica do Obeso particularizam como condicionadoras do “gigantismo do ego oral” e, portanto, da obesidade. Pensamos também que, dentro da classificação dos mecanismos psíquicos produtores da obesidade, se pode situar o caso de Joe, por tudo o que já assinalamos, predominantemente, dentro da obesidade primária. Nota: 1. Trabalho apresentado ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise, que se realizou em Zurique, em 1949. ...........................
* In: Cyro Martins. Do mito à verdade científica - Estudos psicanalíticos. Porto Alegre, Editora Globo, 1964. pp.154-160. Trabalho originalmente apresentado no Sinpósio sobre Obesidade, da Associação Psicanalítica Argentina, em Buenos Aires, no ano de 1954. Foi publicado no nº 3, Tomo II, da revista “Psique en la Universidad”, de Buenos Aires. Traduzido para o alemão pelo Prof. Werner Kemper e publicado na revista “Zeitschrift für Psycho-somatische Medizin”, de julho de 1960, p. 293.
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