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Um Sorriso Para o Destino - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ficção

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Todos os jornais de Porto Alegre noticiaram, com bastante destaque, que aquele era o dia do júri de Rufino Delgado. Alguém se lembrava do caso? Fazia quase um ano que ocorrera o crime da Praça da Alfândega. Nesse meio tempo, entre os tiros fatais e o júri de 28 de novembro de 1928, aconteceram dois fatos políticos da maior relevância no Rio Grande do Sul: o Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros deixara o governo, após 25 anos de exercício do poder, e Getúlio Vargas o substituíra. A eleição transcorreu tranqüila. A oposição se absteve. Depois de quarenta anos de tropelias, guerrilhas, mandonisrno dos coronéis e ditadura comtiana do presidente Borges de Medeiros, o Rio Grande parecia entrar num período de paz e trabalho. Reinava, pois, um espírito de alegria no ânimo dos gaúchos.

O crime se dera em fins de outubro de 1927. Ou princípios de novembro? Para o caso, não importava a precisão das datas. Um crime que nada teve a ver com a política. Inteiramente passional.

Rufino Delgado estava recolhido à Casa de Correção. Aquele casarão lá da Ponta da Cadeia, onde estivera cumprindo pena por quase trinta anos o Canepa, criminoso que matou o caixeiro viajante Rôdes, em Alegrete. Plínio Casado fora acusá-lo. O júri passou à história da cidade. Por muitos anos a população lembraria o vozeirão do tribuno, saindo de madrugada pelas janelas do tribunal, um tribunal acanhado de interior, alagando a praça de eloqüência. Até a estátua do coronel Freitas Vale parecera emocionada com a retumbância das palavras do renomado orador.

No júri de Rufino Delgado não haveria Plínio Casado, que estava no Rio, na Câmara dos Deputados, representando a oposição assisista. Também Pereira da Cunha não estaria presente, pois o seu velho admirador Getúlio Vargas, desde os bancos acadêmicos, como ainda se dizia, ao assumir o governo do Estado, sabendo-o pobre e avelhantado, presenteou-lhe um cartório, para que passasse sem agruras financeiras o resto de seus dias. Tampouco o deputado Masera, colega de Arrnando da Costa Neto, uma das vítimas daquele crime, estaria presente na tourada tribunícia, atrapalhado que andava com o coto da perna amputada, fazia mais de vinte anos. E o Souza Lobo, meninos, já falecera.

Esses eram assuntos de vários pequenos grupos da Rua da Praia naquela manhã ensolarada. Alguns faziam apostas, mais pelo vício do jogo do que pela exaltação passional que o júri de Rufino Delgado despertasse. Ódio contra o réu não havia, propriamente. Tratava-se de um estranho na cidade. Agora, quanto ao deputado Armando, uma das vítimas da pontaria certeira de Rufino, entre seus correligionários do Partido Republicano havia admiradores que, um ano depois de sua morte dramática, continuavam a lamentar a perda, embora, para o que prometia, estivesse longe ainda de ser considerado uma estrela na bancada governista da Assembléia. Mas já fazia o seu barulho. Devia andar pelos trinta e seis anos quando se deu o fato. Por que o Dr. Borges não o incluíra antes na chapa para o legislativo estadual? Se o chefe o tivesse posto na Assembléia uma legislatura antes, talvez em 27 ele já estivesse na Câmara Federal e teria escapado da mulher e da bala do Rufino. Enfim, águas passadas ... - exclamou alguém, numa das rodas, com ar desenxabido. (p. 7 a 9)

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Enrique olhava pasmado para as pessoas que cercavam sua cama. Patrícia, prestativa como sempre, encheu de travesseiros o espaço entre as suas costas e a guarda da cama. A mesinha de hospital para refeições foi utilizada para a difícil operação da assinatura, que não teria sido possível não fosse a ajuda de Rufino, atento e carinhoso com o tio. A operação durou cinco minutos.

Dona Patrícia e as rnucamas se comoveram. Parecia uma despedida.

Na hora de tomarem o auto, o auto da casa naturalmente, o advogado e o tabelião felicitaram, discretamente, o herdeiro universal, Rufino, que aceitou os cumprimentos com a cara mais impassível do mundo.

Na volta de Jaques, ele tomou o carro e mandou tocar para o Independiente. A essa altura dos acontecimentos não era nenhum segredo para o chofer o hobby do Doutor. Às vezes ele ficava lá no clube só para admirar e se orgulhar com as proezas de pontaria do patrão. De tarde, o hobby de Rufino era outro: os cabarezinhos à-toa. E mais tarde, mas não todas as noites, o Cassino.

Assim transcorreram alguns meses, até que em fins de 1929 Don Enrique faleceu. As cerimônias fúnebres tiveram pompa acima do habitual e uma concorrência apreciável. Em cerca de um ano de Montevidéu, Rufino conquistara um círculo de relações estimável.

Seguiu-se algum tempo de muitas ocupações, sobretudo com as fazendas. A maioria dessas ocupações Rufino transferiu para o guarda-livros. Em casa, mantinha dona Patrícia como governanta e as duas mucamas. E Jaques, naturalmente. Todos encantados com a bondade e a delicadeza do Dr. Rufino.

Em agosto de 1930 recebeu o convite da diretoria do Independiente para representá-los no torneio latino-americano de tiro-ao-alvo que se realizaria em princípios de outubro em Santiago do Chile.

Estava quente na tarde de 3 de outubro de 1930. Vestiu-se de acordo com a estação primaveril. Chapéu panamá, sapatos brancos, terno azul-claro, leve, gravata de seda, francesa. Jaques iria levá-lo até o porto, onde tormaria o vapor que fazia a travessia noturna do Rio da Prata.

Iam normalmente pela Av. 18 de Julho, quando se toparam com um grande aglomeramento na frente de El País. Pararam. Rufino olhou o relógio. Eram 7 horas.A fachada do jornal estava tomada de telegramas de última hora: Revolución en Brasil - Brasil - Getulio Vargas se rebela contra el gobierno federal - Rio Grande lo apoya con unanimidad - Están curriendo combates en Ias calles y cuarteles de Porto Alegre - Flores da Cunha, comandando tropa de élite,tomo de asalto al Cuartel General de Ia Tercera Región Militar, la más importante del país - Juarez Távora comanda las fuerzas rebeladas del Nordeste Brasileño.

Rufino leu tudo aquilo e, com o sentimento de que nada daqueles acontecimentos lhe tocava, limitou-se a dizer a Jaques:

- Por onde vamos desviar agora? Já são sete e meia e o vapor parte às oito.

- Não se preocupe, doutor, eu acho o caminho.

Rufino esboçou um sorriso: sempre alguém achava um caminho pra ele.

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Cyro Martins
Um sorriso para o destino

Porto Alegre, Movimento. 1991. ( p.69-91)

 

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