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Romântico * - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ficção

 

- Pára aí, pára aí! Não ouvi bem.

- Desdobramento da segunda bulha...

- Ah! sim, continua.

- Não, faz duas horas que leio - reclama Paiva, fitando os dois amigos: Alberto e Oscar. - Ainda dá para um mate antes da janta. São cinco horas.

Alberto, na qualidade de anfitrião, providencia, ajeitando os avios de mate, enquanto Oscar enche a chaleira e prende o primus.

Paiva larga o livro e se recosta na cama, folheando uma revista. Mas não demora nessa atitude. Joga a revista para os pés, comentando:

- Também aqui, neste quarto de puritano, não se tem nem uma revistinha pornográfica para distrair um homem de pensamento!

Os outros riem. Paiva cobre o rosto com o travesseiro, dizendo:

- Enquanto vocês aprontam o chimarrão, vou dormir cinco minutos. A propósito, já contei aquela do meu tio?

- Sim, já contaste e estamos bem lembrados.

Foi como se ele não ouvisse a resposta.

- Pois o meu tio... Há trinta anos que a sua sesta é de cinco minutos apenas. Regularidade cronométrica! Se não dorme, fica, como ele diz, cochilando acordado o resto do dia.

- É uma desgraça a gente não ter espírito e passar a vida inteira repetindo as mesmas anedotas, com as mesmíssimas palavras.

Paiva não está ligando para a piada de Alberto, e acrescenta:

- O pior é não se possuir a faculdade do meu tio: a de fechar os olhos e mergulhar cinco minutos batatais nos braços do deus grego...

Alberto enche o primeiro mate. Arruma o cerrinho verde na boca da cuia, alisando-lhe os contornos, com perícia.

Depois apaga o fogareiro e convida:

- Bueno, rapaziada, vamos aproveitar enquanto há tempo, que a clínica não vai nos permitir muitos destes "Iazeres", como diria mestre Aluízio...

- Mais bonito é "ócio".

- "Ócio" é parnasiano. Prefiro o clássico.

- Oh! Alberto - grita Paiva, com a boca abafada pelo travesseiro - lê um pouco a "Tarde" pra nós.

- Corrija-se, homem. Vamos conversar assuntos sérios, médicos. Já que nos metemos nisto...

- Pois eu estou achando que a medicina é a minha vocação - atalha Oscar, rompendo a sua quietude.

- Já tinha notado - diz Alberto. - De nós os três, serás o mais médico. Repara na tua pessoa e verás que não te enganas: estatura mediana, nem magro nem gordo, óculos precoces, que aliás deves trocar por pince-nez, se pretendes ir para o interior, onde isto ainda influi...

- Aprovo - aparteia Paiva, pondo o travesseiro debaixo da nuca.

- E pra ti monóculo - Alberto aponta para o companheiro que se espreguiça na cama - mas numa cidade mediana e convicta de que é ambiente para tipos excêntricos.

- Preciso, então, começar a treinar o quanto antes.

- Quanto à especialidade, o Oscar, com este jeitinho afagante, dará um bom corte de pediatra. E tu, Paiva, assim como és, vagabundo, superficialão...

- Obrigado, estou gostando.

- .. boa estampa, comunicativo, meio brutalhão, poderás dar um desses sangüinários arrancadores de amígdalas.

Neste momento, ouvem-se umas batidinhas na porta, que já foram simbólicas, mas que hoje nenhum dos três reconhece.

- Entre.

Quem havia de ser? Tomando o vão estreito, surge aquela figura alta, corpulenta, o peito cheio, a cara simpática, mais trigueira pelos muitos sóis que apanhou, emergindo dum colarinho duro, de pontas viradas, onde se ajusta um plastrão cor de vinho, que lembra uma couraça medieval.

Efusões de amizade. Abraços prolongados, que eram amplexos quentes duma afeição já pouco em moda.

Sim, era o Gastão! Ele chegava de longe, do interior, das Missões. Mas se apresentava como se viesse duma região e dum passado ainda mais remotos!

Os primeiros momentos foram de embaraço, de entrecruzamento de perguntas, de afirmações mútuas de saudade.

Depois, serenando, Gastão correu a vista pelo ambiente, deixando escapar estas palavras, com um tom cavo, que era o seu tom:

- Eu já morei neste quarto!

Ficam todos calados um instante, como esperando que a onda evocativa se retraia do coração do amigo.

- Mas então, rapaziada - é ele quem irrompe de novo - estudando, cavando... Lindo, especial! Pois eu, que detesto a cidade, tenho "recuerdos" dos meus tempos magníficos de vagabundagem...

Era um gosto ouvir o Gastão. Naquele fim de tarde ninguém se lembrou mais de tratados, de medicina, de pontos de exame. Só ele falava, fluente, colorido, transbordando de todas as possíveis represas.

Formara-se em 30. Por um triz não participou da Tomada do Quartel General na tarde de 3 de outubro pela Brigada Militar comandada por Flores da Cunha. Ficou a duas quadras do cenário, metido num vão de porta com um amigo, com Alberto, justamente. Como sofreu por se haver atrasado! Sentiu-se vexado. Insultou-se: um revolucionário de bôrra! Mas reagiu, alistou-se e foi até Itararé. Desde a formatura, nunca mais pisara na Capital, onde deixara uma esteira de anedotas romanescas e muitas energias desperdiçadas. Vivia agora entravado no seu chão. "De onde - enfunava o peito para dizer - as raízes possantes não me deixam sair!" Viera por necessidade inadiável.

- Assuntos profissionais?

- Assunto mais relevante do que tramóias forenses!

- Bendizemos o motivo que te trouxe a nós, se é que não se trata duma desgraça... Mas não tens ares dessas coisas funestas.

- Participo aos amigos que vou me casar.

- Oh! bravos.

Foi um aplauso geral.

- Encontrei uma criatura adorável. Quase índia...

Os outros se interessam, mas Gastão corta o assunto, temendo um resvalo para confidências.

- Mas não acredito que tenhas vindo só para nos participar o contrato de casamento - disse Paiva, provocante.

- Vim fazer uma reação de Wassermann!

Era de pasmar, para os que o conheciam, aquela iniciativa do Gastão. Mas dele, podia-se esperar tudo, pensava Alberto. Até aquilo.

- Sou pelo exame pré-nupcial. Sim, senhores esculápios! Daí a palestra derivou para um rumo médico-legal, tendo o advogado oportunidade de relatar várias de suas causas, principalmente as relacionadas com defloramentos.

À s sete e meia a Zeferina velo avisar que estava passando da hora da janta.

- Nada disso - retrucou ao convite de Alberto - vocês hoje vão jantar comigo.

Nenhum rejeitou. Um jantar fora, com um amigo chegado do interior, para aqueles estudantes de bolsos magríssimos, era um festo.

Paiva e Oscar vestiram os sobretudos. Fazia frio. Alberto botou "o terno", o único. E enfiou também o seu sobretudo meio ruço, que já fora preto.

Ao botarem o pé na rua, Gastão assumiu naturalmente o comando do grupo.

- Agora quem manda sou eu!

Restaurantes novos? Só quem podia saber era o Paiva, mas este mesmo não se encontrava muito bem informado.

- Afinal, não vamos fazer um jantar boêmio... Qualquer restaurante serve. O que acham?

Achavam o que ele achasse. No último deles, comeriam melhor do que nas suas pensões zurrapas. Mas a comida não vinha ao caso, o que importava era a companhia de Gastão.

Ao passarem por uma praça de autos, ele convidou:

- Vamos de auto, pessoal.

- Mas estamos pertinho do centro.

- Não tem importância. Subam.

Para a prontidão de Alberto, aquilo começava a tomar aspecto de aventura.

Desembarcaram na frente do restaurante "Beira-Rio", que ainda era o mais pitoresco. Não foi difícil conseguir "um reservado".

Gastão desejou comer coisas diferentes das bóias campeiras. Os outros tinham fome de carne. Atiraram-se, com uma voracidade contida, nuns formidáveis "bifes a-cavalo".

- E o vinho? Estrangeiro, não?

- Sim, estrangeiro.

Já nenhum dos três alimentava a menor intenção de poupar gastos ao amigo.

Saboreando o filé de garoupa, Gastão discorria sobre vários temas, com aquela abundância de vida que tornava todos pequenos diante dele. Lá pelas tantas, acentuou:

- A gente precisa de vez em quando destes banhos de civilização...

Terminaram tarde o jantar. Às dez. Saíram vagueando. Não se cogitava de tomar um rumo. Recém o missioneiro começava a enfunar as velas. De vez em quando dizia umas coisas baixinho, que ninguém ouvia. Mas Alberto sabia que eram versos. A conversação, de longe em longe, esmorecia, para reacender adiante a propósito dum aspecto qualquer da cidade. É que, passado o entusiasmo do encontro e satisfeito o apetite, punha-se à mostra, com constrangimento para todos, a míngua dos interesses comuns, que já nem se pareciam com os de outros tempos.

Arrodearam a praça da Alfândega. Gastão manifestava saudade daquelas árvores. Foram mesmo até ao centro, para que ele pudesse apreciar melhor o grande edifício da cidade: O Imperial.

Entraram na rua da Praia. Pouca gente. Os cafés mesmo não apresentavam grande movimento. O vento sul varrera cedo as ruas.

O "Florida" constituía um ótimo refúgio. Instalaram-se no compartimento luxuoso, que era o orgulho da cidade. Dizia-se que no Rio não se encontrava igual.

Gastão, solene, olhou em redor, e declarou que simpatizara com o ambiente. Ali, sim, podia-se tomar "whisky".

No fim da segunda dose, Alberto e Oscar confessaram-se fracos para ir adiante. Só Paiva o acompanhou.

Mas Gastão ainda não se satisfizera plenamente. Queria música. Não havia orquestra?

- Sim, mas os músicos já foram. Passa da meia-noite.

- Então, meus amigos, tenham paciência, vamos procurar um cabaré. Preciso ouvir tangos argentinos. Este vazio me faz sofrer...

Já na calçada, ele se pôs entre Paiva e Alberto, apoiando-se nos braços de ambos, e principiou a recitar:

" Ninguém soube quem era o Cavaleiro Pobre,

Que viveu solitário, e morreu sem falar:

Era simples e sóbrio, era valente e nobre,

E pálido como o luar".

Gastão retardava o passo, enchia o peito, e tinha um olhar distante e vago. Numa esquina, entreparou, fitou os companheiros e disse, emocionado, como uma explicação:

- Eu devia ter vivido há cem anos atrás...

Prossegue, em silêncio. Dobram para a Rua da Ponte. Um globo vermelho aparece, sugestivo.

Entram. É um cabarezinho de segunda ordem. Sala pequena, meia-luz, freqüência escassa. Sentam-se numa mesa de canto. A orquestra irrompe, como a pedido, com a "Cumparsita".

A fisionomia de Gastão se transfigura. E ele começa a cantarolar, fremente: "La cumparsa sin fin de Ia miseria desfila... "

A sua voz é cálida e nos seus olhos brilham lágrimas.

- "Whisky"? Não, champanha. E chame aquela mulherzinha que lá está.

- A de azul?

- A de preto.

Ela se aproxima com uma lassidão suplicante.

Ele enrosca um olhar afogueado no corpo gracioso que ondula à sua frente.

- Mandei te chamar, porque estou vivendo, com estes amigos, uma grande noite... E quero que ela ainda se torne maior!

Faz a mulher sentar bem junto a ele, dá-lhe champanha, e canta-lhe tangos no ouvido.

Enquanto isso, Paiva transmite aos outros dois a lenda da "Chilena". Filha de família rica do Chile. Educada na Espanha. Desviada por um "tenório" que a abandonou em Buenos Aires. Acha-se em Porto Alegre de cruzada. Alberto e Oscar estão demasiado tontos para compreenderem bem a história, mas parece-lhes que soa a século passado, a balcões floridos, a carnes, a Lobo da Costa morrendo bêbado na sarjeta. É digna do Gastão conclui Alberto, contemplando o amigo e a "Chilena" através duma nuvem azulada que se eleva da mesa.

- Não, não posso. Deves compreender... Amanhã talvez...

Mas Gastão não se resignava àquela espera. Sôfrego, multiplicava-lhe os louvores, beijando-lhe as mãos, lambendo-lhes os pulsos.

- Devora-me, querida...

Ele falava num sussurro abrasado, enquanto ela passeava, a esmo, uns olhos fugitivos e brumosos.

Afinal, derrotado, Gastão convida os amigos para irem embora. Descem a escada barulhenta a passos hesitantes. No corredor, porém, enfiam por uma porta lateral.

Um indivíduo, que de certo bebeu mais que eles, balança-se, apoiando a mão e a testa na parede. Aproximam-se. Ele não os vê. Gastão percebe que o bêbado balbucia palavras soltas. Interessa-se. E ouve, com assombro: "Ah! delícia de repousar a fronte no mármore frio dos mictórios!"

- Rimbaud?...

Para que apresentação? Bateu-lhe no ombro.

- Vamos juntos, irmão!

O indivíduo o encarou, longínquo, gaguejando:

- Uma... pândega... uma pândega... esta vida!...

- Tu és dos meus - disse-lhe o advogado, explodindo de comoção. - Dá cá um abraço, poeta!

A esta altura, já Alberto e Paiva haviam reconhecido naquela cara chinesa, o poeta do "Sapo". Ele viera do Amazonas, transferido por perseguição política, comentava-se. Fora pela Revolução Constitucionalista, de São Paulo. Estava em Porto Alegre há seis meses. A sua glória era aquele soneto, que fora elogiado por Alberto de Oliveira, o qual declarara que se orgulharia se fosse de sua lavra. Confraternizaram. E foram em busca de cenário para o poeta declamar o seu soneto.

Da Praça da Matriz, descortinavam-se as luzes da cidade empalidecendo às primeiras cores da aurora. O poeta deplorava que não fosse noite de lua cheia. Mesmo assim, ia recitar os seus versos em homenagem àqueles "generosos amigos". Já estava falando, mas não se lhe ouviam as palavras. A garganta rouca o atraiçoava. Apenas de vez em quando distinguiam-se alguns finais de versos: Buda... charco... abjeto... mudo...

Já no último terceto, recuperou um pouco a voz. Requintou na gesticulação comovida. O seu esforço era enorme, mas as palavras saíam veladas:

" Verde bruxo da lama, assoma o sapo e entoa,

espasmódico e rouco, um canto à lua cheia

que lasciva desceu ao leito da lagoa!"

Nada mais restava senão retribuir ao poeta do Sapo o esplêndido fecho daquela noitada.

Gastão, num gesto largo, chamou um auto. Embarcaram.

- Pra onde?

- Pra frente!

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* Cyro Martins.  A entrevista.(contos). Porto Alegre, Sulina, 1968.

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- Fortuna Crítica - Romantismo, artigo de Dyonélio Machado