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Sem Rumo* - romance de Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ficção

Capítulo XIII

 

Os dedos ardiam, encolhidos e roxos. Nariz não tinha mais. Apenas uma bola de neve na cara, abaixo dos olhos e acima da boca. Nos pés parece que leva sapatilhas. Parece. Mal tateava as rédeas. Por sorte, era voluntário o douradilho. Galopeava a uma simples agachada de corpo pra frente. De vez em quando desestribava os pés e espichava as pernas, encostando-as nas paletas do montado. Um calor de sangue vivo e impetuoso, de músculos que se contraem, passava das carnes do animal para a sua pele arrepiada.

 

Quando Chiru chegou ao baixo, apesar do sol alto, só nos corguinhos estreitos a água corria. No mais, nos poços quietos, nas pisadas dos animais nos banhadinhos onde houvesse água parada, a superfície era um vidro, reluzindo ao sol. A cada pisada do petiço, estralejava um ruído de caquerio de garrafa. O campo todo era um lençol. Só nos altos começavam a verdejar os pastos, mas de um verde descorado, de folhas queimadas. Nas ladeiras, as reses magras ainda mascavam, deitadas, o pasto comido na véspera. Muitas não levantariam mais. Outras, com um impulso na cola, talvez.

 

Nada no campo se movia. Nem as árvores solitas - um umbu de tapera no topete da coxilha, o espinilho de tronco liso e fino da cabeceira da sanguinha e o mata-olho do fundo do potreiro grande. Estavam esfaqueadas no ar, mais delgada a silhueta, a ramaria mais distante do chão, não serviam de abrigo a ninguém, nem a homens nem a animais.

No que varou a sanga, Chiru galopeou. Ao coroar a coxilha, encontrou os colegas, gurizada da vizinhança, campeira e alarife como ele. Até o colégio, foi um surumbumba, correndo carreiras e califórnias, esquecidos do frio.

Chegaram. Casa fechada. Seu Maneco ainda dormia, como era comum. Aglomeraram-se no oitão batido de sol. A geada levantava mansinha, sem vento.

 

Zequinha Flores, sardento e ruivo, magriça, alto, sacou do bolso uma tava. Palmeou o osso, inticante num desafio. E no soflagrante dois paus de fósforos caíram acolherados, no chão úmido, e terra batida, topando a parada. Como dois galitos de rinha que apenas se emplumam, Chiru e Zequinha tramaram-se, caprichando nos tiros de duas voltas e volta e meia. A princípio foi  silencioso o jogo, precavido. Mas logo começaram as apostas de fora. E a cancha coalhou-se de fósforos, moedinhas de tostão, fivelas, aperos dos pingos, lápis, canetas, pedras de escrever, tudo valia no jogo. Cada qual se esmerando mais em mostrar-se arriscador na sorte. Chiru tinha mão certeira ao largar a tava num tiro de volta e meia. Seria, quando grande bom clavador. Ademais, demonstrava serenidade e coragem no escorar paradas.

 

Zequinha, menos seguro no tiro, mais irrequieto e menos valente, tinha, no entanto, um algo, um jeito, um toque, um alinho arrogante no corpo todo, deixando adivinhar o jogador de raça que crescia nele.

De repente, a porta abriu-se. De olhos inchados de tanto dormir, a cara por lavar, o professor berrou, estrugiu como um raio, esparramando a gurizada vagabunda, sem-vergonha, perdida, que bem; foram as suas palavras.

Eram dez horas.

 

Manuel Garcia, compenetrado, procurando impor-se, fez os alunos entrarem para a aula. Completavam uma dúzia. Chamou seis. Enfileirou-os sua frente. Tirou da gaveta a palmatória de cinco furos. E puxou, com ganas, meia dúzia de bolos em cada um. Depois repetiu o mesmo ensinamento para a segunda turma.

- E agora, estudem, seus vagabundos, malcriados!

Marcou a lição energicamente: estudar o alfabeto manuscrito do "a" até "p" de diante pra trás e de trás pra diante!

Deixou-os ali no "estudo" e foi pra cozinha tomar mate com a mulher.

 

Às onze e meia reapareceu, lavado, penteado, paletó preto, bombacha estreita, lenço branco no pescoço. Sim, de lenço branco! Não podia dispensar o lenço branco - distintivo do Partido.

Tomou a lição. Ninguém soube a lição. Nova descompostura e soltou os alunos com a ameaça de que, se no outro dia não soubessem ainda, repetiria o mesmo castigo, com mais energia.

 

A gurizada saiu a galope, às gargalhadas, toureando-se uns aos outros.

Manuel Garcia ficou parado na porta, bestificado diante do espetáculo. O que seria dele, do seu colégio, da sua vida, depois que os alunos aprendessem o ABC? Quem o mandara ser tão estúpido a ponto de vender baratinho a "laranja" e o "andorinha"? Além do ABC, tudo era uma cerração pra ele. Mas não, não havia perigo, aquela gurizada baguala nunca passaria do ABC. Além disso, o seu voto no dr. Borges seria uma garantia incondicional...

 

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* Sem Rumo. Ariel, Rio de Janeiro, 1937, 1a. ed. Leia crítica de especialistas desse primeiro romance da "Trilogia do Gaúcho a Pé" 70 anos depois da 1a. ed.