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Ameaça, Culpa e Reparação* - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ensaios

 

 

- Corte transversal na evolução de um grupo terapêutico

 

Na sua condição de grupo aberto, este, por ocasião dos episódios aqui registrados, contava apenas com dois componentes da primitiva configuração. Tem três anos de existência. De começo exclusivamente masculino, transformou-se depois de dois anos em misto, à medida que surgiam vagas, por altas. No momento, compunha-se o grupo de cinco mulheres e três homens, dois dos quais pertenciam ao quadro inicial.

A dramatização de certas passagens apresentadas aqui, resultante do choque entre desejos veementes e imposições sociais rígidas, proporciona uma perspectiva para a compreensão das pectuliaridades atuais da moral do grupo, em pugna com a moral social, além de evidenciar o  grupo terapêutico como zona psicológica de transição entre o indivíduo e a sociedade. **

Com efeito, desde algum tempo, através dum sistema defensivo maníaco, vinha o grupo fracassando na elaboração da ansiedade provocada pela situação amorosa de Amélia, que mantinha  que mantinha uma ligação a respeito de cujo futuro seus companheiros de tratamento se mostravam um tanto cépticos. Outra situação que excitava o interesse de todos era a dos pacientes Belarmino, César e Alexandre, que se haviam tornado concorrentes na procura de empregos, particularidade esta conseqüente à circunstância de serem colegas de profissão e por se acharem em início de carreira. Por outro lado, os pacientes Belmiro e César, os mais antigos do grupo, e a paciente Déa, que fizera três anos de análise individual e que passara para o grupo, ao deixar aquela, a título de tratamento complementar, fazia já dois meses que analisavam a possibilidade de alta.

Estes constituíam os fatos dominantes na vida do grupo concentrando-se em torno deles o nosso trabalho durante várias sessões, na oportunidade dos flagrantes que relatarei.

A primeira a falar foi Glória, que narrou com detalhes uma conversa com o namorado, durante a qual o notou desorientado, indeciso, tanto a respeito dela quanto a colocações, pois perdera o emprego e ainda não se acertara com nenhum outro. Este estado de coisas não a agrada e a faz desconfiar da capacidade do rapaz. Concomitantemente, um seu velho pretendente a tem procurado com insistência, mas ela, embora o aprecie sob certos aspectos, tem restrições à sua pessoa.

Ao lado disso, e acima disso, e sempre, as exigências, as restrições e as queixas da mãe, que a enchem de culpa todas as vezes que intenta qualquer ação mais autenticamente pessoal.

O grupo a escuta com simpatia, identificado projetivamente com a debilidade de seu Ego, incapaz de dar acesso aos anelos profundos da personalidade. Mas seu assunto não consegue transformar-se em centro de interesse.

Fiz uma interpretação global, salientando as vacilações de todos.

Logo após intervém César, que está pálido, denotando ansiedade. Confessa que saiu assustado da sessão anterior. A propósito, recapitula o fato revelado por Belmiro naquela ocasião. Belmiro dissera que, havendo procurado o Sr. X, detentor duma chave de empregos, este senhor declara sem cerimônia que, em vista de ser amigo de seu pai, destituiria César para lhe dar o lugar deste. Não obstante os protestos de Belmiro, o Sr. X continuara em todo o decurso da palestra considerando factível tal conduta. A preocupação de César crescera porque já fora com pulsado a repartir seus ganhos com Belmiro e Alexandre no desempenho de outra função profissional, o que afetara bastante suas entradas. Se agora se desse o caso de ser substituído por Belmiro, suas finanças sofreriam um baque, pondo em choque seus projetos de vida.

Alexandre, identificado com Belmiro e evidentemente movido pela culpa, tomou a peito a necessidade de dar uma explicação ao grupo e a mim, ao mesmo tempo em que tranqüilizava César, prontificando-se a falar com o Sr. X. no mesmo dia, para demovê-lo do propósito arbitrário que manifestara.

Belmiro, o menos perturbado dos três, ressalta a impossibilidade de Alexandre executar tais planos, visto tratar-se de uma informação colhida no grupo, não podendo, por isso ser usada lá fora literalmente.

Alexandre concorda que não se apercebera dessa impraticabilidade, levado pelo desejo de impedir que se criasse situação não somente de constrangimento no grupo, mas ainda prejudicial a César.

Belmiro retruca que tal não sucederia, pois de nenhuma  forma aceitaria uma colocação nessas condições. César diz que isto o conforta em parte, pois não pode negar que sua posição na Instituição que o Sr. X dirige não é firme.

Considerando os aspectos mais gerais da questão, vemos como se. Espelham nesta passagem as conseqüências do transplante de conflitos do ambiente imediato, o grupo terapêutico, para o ambiente mediato, o grupo profissional, pois o Sr. X estava em parte me representando e a rivalidade dos três pacientes em relação a mim surgia com clareza ao deslocar-se para a pessoa daquele senhor.

Por outro lado, a intervenção de Belmiro, mitigadora da ansiedade reinante, atingiu de certa forma o ponto de urgência do momento atual, logrando integrar melhor o do Grupo e de cada um, e o fez capaz de ligar seus conteúdos aos do "Ego-social". O resultado foi o estabelecimento de um plano de conduta bastante adaptado às circunstâncias  exteriores.

Com efeito, neste fragmento defrontam-se dois planos, o da fantasia, vivenciado na  transferência,  e o da realidade, objetivado na necessidade de emprego que existe de fato da parte dos três competidores.

Enquanto tais sucessos se vão desenrolando e deixando marcos referenciais no panorama da sessão, observo que, das cinco mulheres, quatro acompanham com interesse a discussão dos homens, inclinando-se a maior dose de simpatia para Belmiro e Alexandre, embora sem manifestar hostilidade a César. Amélia, no entanto, mostra-se aflita pelo término do incidente, concentrada que está nos seus problemas e dos quais deseja ardentemente falar.

Ponho em relevo o que vejo, salientando a divisão momentânea do grupo. E mais, ressalto a tensão agressiva e expectante que notara nas fisionomias, nos gestos e nas intervenções desde o começo da sessão, como se o que tivesse vindo à superfície até então fosse apenas prólogo do drama que se prenunciava.

Amélia toma a palavra e conta, ansiosa, que fora ao ginecologista e que este constatara gravidez, confirmando-se assim as suas suspeitas, as do grupo e as minhas. Eis que surge um perseguidor infragrupal, desviando de fora para dentro sentimentos de rivalidade, inveja e solidariedade.

Trato de compreender o jogo das emoções coletivas.

Há primeiro um movimento espontâneo de felicitações à Amélia, o que faz experimentar um passageiro alívio antes de prosseguir a narrativa. E não somente a ela, porém a todo o grupo. Entretanto, uma pergunta se adivinha nos olhares atentos: a que nos conduzirá isto?

Em seguida Amélia comunica a conversa muito franca que teve com Pedro sobre seu estado. Ele se mostrou pouco encorajador e ela lhe deu uma semana para decidir-se. Como mulher, sente-se "radiante com a gravidez". Se Pedro não aceitar as condições que ela lhe impôs, fará o aborto, mas ele correrá o risco de perdê-la para sempre.

Repito em parte o que já havia advertido em sessões anteriores a respeito do expediente da gravidez como manobra para agarrar mais firmemente a Pedro, o que os levaria a uma união pouco sólida, com prejuízos pessoais para ela, Amélia, e coletivos, para o grupo, no sentido de dificultar  sua integração.

Amélia me olha emocionada, lacrimejando, e com de ansiedade a todos os companheiros. Segue-se um silêncio tenso. Não me pronuncio propositadamente, aguardando a eclosão emocional que este impacto desencadearia.

Com efeito, Eva, até então silenciosa mas inquieta na cadeira, inquietude essa que cresceu à medida que Amélia  relatava o episódio acima referido, começa a queixar-se. Está novamente com o sintoma das pernas. Acha que se continuar assim em breve se verá como antes, como ano atrás, impossibilitada de sair à rua. Pensa que esta  sua doença das pernas esteja ligada a um "fato horrível” ocorrido há muitos anos e para o qual concorrera indiretamente. Ainda não o trouxera para as sessões por esquecimento, mas agora, (faz pequena pausa e olha para Amélia), não atina bem por que razões o evocou ( continua fitando Amélia).

Pressinto que Eva irá dar o acento tônico à sessão. Mas o grupo se volta para ela, meio sorridente, na esperança de escapar por uma linha secundária da tensão criada por Amélia,  visto tratar-se de fato passado e acabado. Com loquacidade, Eva descreve o sucesso em ref erência. Com efeito, estando acompanhada apenas da mãe, com quem nunca se deu  bem mas da qual jamais pôde desprender-se, chegou certa vez à sua casa uma visita inesperada. Tratava-se duma prima que desde muito tempo não via e com quem nunca tivera relações muito íntimas nem muito afetuosas. Não obstante, nesse dia, nas primeiras horas da tarde, a prima se apresentou lá com seus cinco filhos pequenos, os quais invadiram a casa como um bando de ciganos, mexendo em tudo e bisbilhotando pelos recantos, estimulados certamente pelos ares de grande intimidade e franqueza que assumia a mãe, gratuitamente. Eva, irritada com a invasão que viera perturbar a rotina das suas tardes de domingo, tratou então de atrair as crianças para o quintal, um enorme quintal com muitas árvores frutíferas e uma parreira. Com o engodo das frutas, foi-lhe fácil desviar  a criançada para fora da casa. Sem demora, atiram-se às frutas com voracidade. Eva retirou-se então para o quarto, indo prosseguir a leitura interrompida, enquanto a prima se entretinha com sua mãe, na sala. Acontece, porém, que no meio desse vasto quintal, semi-abandonado, havia um poço profundo coberto por ervas e paus secos. De repente, estourou o alarme. Uma das crianças caíra no poço. Houve todo o pânico e todo o empenho desordenado de salvamento que costumava ocorrer em tais ocasiões. Até hoje a paciente culpa-se da morte daquela criança.

Eva contou essa história com impressionante dramaticidade, a qual ganhou feição mais nítida em virtude do espírito do grupo já se encontrar predisposto ao drama, depois das declarações enfáticas de Amélia.

Caiu sobre todos uma grande depressão.

Levada pelo seu problema pessoal, Eva condicionou a atitude dos demais, que projetivamente se identificaram com ela, colocando Amélia no papel de mãe desalmada. Vinculados pela interação das fantasias e vivências individuais, seus companheiros personificaram nela o bode expiatório de que necessitavam na hora para derivar suas ansiedades paranóides. Com efeito, a história de Eva insinuara as conseqüências terríveis que adviriam para todos, caso Amélia chegasse ao aborto. Essa história reclama do grupo uma atitude, não permitindo que morra outra criança. Principalmente a mim. E eu sinto na expressão mista de angústia e agressividade dos olhares que me fitam, uma exigência para que intervenha, não em favor de Amélia, mas de seu filho, identificados que estavam projetivamente os pacientes com ele, como resultado do .conflito que todos e cada um tem com suas próprias mães.

Entretanto, Eva não se dera ainda por satisfeita com o desabafo e, ademais, não parecia inclinada a capitular. Tinha de reserva um outro episódio para revelar, mais pessoal. Assim, contou que, durante um período de sua fase colegial, aí ao redor dos dez anos, andou gazeando aulas com outras colegas. Desconfiando do que estava ocorrendo, mãe se pôs a campo e só não a surpreendeu porque, na pracinha  onde brincava com outras meninas, havia como único esconderijo possível, um poço, em cujo bocal se meteu agarrando-se com as mãos e firmando-se com os pés nas pedras da parede. O poço era fundo e, se caísse, diz a paciente, fatalmente morreria. Ao fim de uns quantos minutos, saiu dali cambaleando. O medo que a mãe lhe inspirava era tal, que não vacilou em enfrentar a morte, a fim evitá-la naquele momento.

Afigurou-se à imaginação de todos que aquele flagrante , o de Eva, menina de dez anos, agarrada desesperadamente às pedras do bocal do poço para fugir à punição materna, era o retrato vivo da situação do filho de Amélia ameaçado de morte.

Se houve em Amélia, de início, uma intenção de capitalização erótica do sofrimento, em conseqiiência da sua predisposição a refugiar-se em soluções masoquísticas, já se encontra agora integrada no ânimo dominante no grupo capaz de aceitar uma análise mais racional do conflito em foco.

Assim eu vivenciei contratransferencialmente aquele instante particular da história do grupo, que me pareceu propício a criar condições que permitissem uma maior expansão da personalidade de todos como entidade e de cada um como indivíduo, através do levantamento de repressão do Superego social.

O intento de reparação se manifestou no apoio à Amélia para que mantivesse a gravidez. Reparavam ao  tempo suas próprias mães, pelo ódio destrutivo experimentado contra elas. Pela compreensão vivencial da cu1pa, desapareceram os conflitos internos que traziam o grupo dividido, o qual pôde integrar-se, unindo suas partes até então em luta. O grupo dava bem a impressão de se haver enriquecido pela introjeção de um sentimento renovador, depois de haver projetado seu ódio por intermédio de Eva. Era a superação da culpa.

O aborto seria vivido como um fracasso do grupo, repercutindo funestamente na relação transferencial. Eva  personificara a moral do grupo em face do crime em perspectiva, exigido e condenado ao mesmo tempo tela moral social.

Daquele dia em diante, o filho de Amélia passou a ser o filho do grupoatenuando sensivelmente a culpa da paciente.

A hora se esgota e e todos se retiram como se se retirassem para uma sala contíguaa fim de cumprir um intervalo regulamentar. Essa atitude era mais uma prova da integração atingida pelo grupo.

Ao contrário do que seria de supor-se, na sessão seguinte ou nas três ou quatro que sobrevieram , nem Amélia, nem ninguém tocou no assunto diretamente . Mas Amélia levou avante a gravidez, Eva melhorou das pernas, e César, Belmiro e Déa, que vinham planejando a alta, tornaram-na efetiva.

A alta desses três teve para todos um significado de nascimento auspicioso.

Para tais resultados influiu decisivamente a elaboração da situação traumática que constituíra o núcleo dinâmico daquela sessão.

O grupo, no seu caráter de grupo aberto, apto agora para preencher suas vagas, tinha vencido mais um ciclo de sua evolução como agente social na vida do indivíduo.

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* Trabalho apresentado no 2o. Congresso Latino-Americano de Psicoterapia de Grupo, realizado em Santiago do Chile, janeiro de 1960. Traduzido para o alemão pelo Prof. Werner Kemper e publicado na Revista “ Zeitschrift für Psycho-somatische Medizin”, julho de 1969, p. 293. Publicado em MARTINS, Cyro. Do Mito à Verdade Científica. Porto Alegre, Globo, 1964.

**  Embora óbvio a quem conheça a ética terapêutica, reitera-se aqui que situação e personagens não estão identificados.