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Que mundo é este em que doentes mentais ficam nas ruas e nas prisões?* | Imprimir |  E-mail

Fernando Lejderman**

A doença mental do personagem Nathaniel Ayers, no filme O solista, ilustra a difícil realidade dos moradores de rua de Los Angeles, EUA;  também correspondente à realidade das grandes cidades brasileiras. O enredo do filme se baseia na história de um jornalista de sucesso que, ao procurar uma matéria interessante para o jornal no qual trabalha, encontra um morador de rua com um passado especial. Com o passar do tempo e mediante a amizade que se estabelece entre eles, o jornalista realiza inúmeras tentativas para recuperar o potencial artístico e a sanidade mental do personagem que um dia fora um músico de talento com um futuro promissor.


Em sua grande maioria os moradores de rua são pessoas que se desgarraram das famílias de origem devido à gravidade da doença que os aflige e/ou pelo uso simultâneo de álcool e drogas de toda espécie, sobretudo, as mais baratas como o crack. Sem as condições mínimas exigidas por um mercado de trabalho progressivamente mais competitivo e, portanto, incapazes de se sustentarem, o único caminho que lhes resta seguir é o das ruas.


O número desses moradores de rua vem aumentando desde o início dos anos 1990, após a mudança da legislação em relação à hospitalização psiquiátrica que, a partir de então, exige a vontade manifesta e a anuência dos doentes para serem hospitalizados.  A Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua, realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, entre agosto de 2007 e março de 2008 (1), revelou que a cidade de  Curitiba tem 2.772 moradores de rua, Salvador 3.289 moradores e o Rio de Janeiro 4.585 moradores.  Em Porto Alegre, de acordo com uma pesquisa da Fundação de Assistência Social e Cidadania ( FASC ), no ano de  2007, o número de moradores de rua era de  1203 pessoas e havia quadruplicado nos últimos 13 anos (2). Em São Paulo, segundo estimativas da Prefeitura da cidade em 2008, o número de moradores em situação de rua se encontraria   próximo a 14.000 pessoas, com um crescimento anual de 9% em relação ao ano anterior (3).


Presumir que uma pessoa delirante, com o pensamento fragmentado, desconectada do senso de realidade comum, que se imagina poderosa como um Deus ou um ser extraterrestre, manifeste a sua vontade ou assine um termo de responsabilidade aceitando a necessidade de tratamento especializado é algo incompreensível, desprovido de conhecimento, em relação à lógica dos processos mentais. O mesmo argumento aplica-se a uma pessoa sob o efeito permanente de álcool ou drogas. No entanto, é exatamente isso que vem acontecendo no dia a dia da assistência aos doentes mentais graves desamparados no que se refere a suas doenças de base, que só deterioram o estado psicológico, aumentam o contágio de doenças infecciosas, como hepatite C tuberculose e AIDS, levando a uma situação de completa decadência física e mental. Muitos moradores de rua chegam a iniciar algum tipo de tratamento para as patologias acima referidas, mas como não o seguem adequadamente, contribuem assim para o surgimento de cepas cada vez mais resistentes.


Além das ruas, das raríssimas emergências psiquiátricas, também as prisões vêm se tornando gradativamente um lar alternativo para uma parcela dessa população de doentes que, por fim, acaba cometendo pequenos delitos ou quadros de agressividade e agitação psicomotora. Recentemente, o jornalista Nilson Souza publicou uma crônica em Zero Hora (4), que conta justamente a história de um doente mental que permaneceu durante vários meses numa prisão em Caxias do Sul, cujo apelido, certamente não por acaso, era “Quase Nada”. Segundo Nilson Souza, o termo “Quase Nada” é emblemático para designar  “seres humanos que perambulam pelas grande cidades como zumbis, dormem sob marquises, reviram cestos de lixo em busca de restos de alimentos e vivem para o álcool e para as drogas“. Que mundo é este em que doentes mentais ficam nas ruas e nas prisões?


Este cenário é grave e revela  uma significativa ausência de assistência em saúde mental. Já se passaram mais de 20 anos do movimento de reforma na assistência psiquiátrica no Brasil - tempo suficientemente longo para se observar os resultados positivos e corrigir rumos, como foi preconizado inicialmente. Nestas duas décadas houve uma campanha gigantesca contra os antigos hospitais psiquiátricos como se eles fossem o principal responsável da qualidade assistencial da época. O Brasil possuía ao redor de 120.000 leitos psiquiátricos ao final dos anos 1970; hoje possui cerca de 35.000 leitos em hospitais psiquiátricos e 2,5 mil em hospitais gerais (5) . É uma diminuição de mais de 80.000 leitos de uma especialidade médica. Acreditar que uma política pública desta envergadura, num país de dimensões continentais como o Brasil, não traga conseqüências desastrosas é, certamente, uma ilusão. Neste período, a população de doentes mentais nas ruas segue aumentando ininterruptamente. Está na hora de rever esta reforma e uma legislação que acredita resolver problemas tão complexos condenando o hospital psiquiátrico ao invés de qualificá-lo.



*Texto originalmente publilcado na Revista PsiquiatriaHoje/Debates da ABP, Ano2 . Nº1 Jan/Fev de 2010.

**Dr. Fernnando Lejderman é Médico Psiquiatra. Coordenador da área de Humanismo Médico do CELPCYRO.




NOTAS
1. Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. www.mds.gov.br
2. Cadastro e Estudo do Mundo da População de Rua Adulta em Situação de Rua de Porto Alegre/RS. FASC/UFRGS/ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2008.
3. Jornal Folha de São Paulo, março de 2008.
4. Jornal Zero Hora, janeiro de 2010.
5. Entrevista com o Dr. Pedro Gabriel Delgado, Coordenador da área de Saúde Mental, Álcool e Drogas do Ministério da Saúde. Jornal Correio Brasiliense, dezembro de 2009.