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SANT`ANA DO LIVRAMENTO E RIVERA: UMA CIDADE SÓ, BINACIONAL | Imprimir |  E-mail

A Campanha tornou-se uma área de contatos culturais onde tudo se misturou: inicialmente índios a pé, depois a cavalo, com luso-brasileiros, africanos e espanhóis; o trigo europeu com o milho americano; a batata doce com a laranja oriental; o umbu solitário com o exótico cinamomo; o avestruz corredor com o pacato bovino. Nessa combinação díspar surgiu uma unidade regional dada pelo clima, pela economia e pela identidade cultural, semelhante às margens do mar Mediterrâneo, na comparação de Fernand Braudel.

Essa visão do Prof. Moacyr Flores auxiliou especialmente minha intenção, ao fazer o Mestrado, em realizar um estudo sobre Sant'Ana do Livramento. Foi ele também que me apresentou à Geo-História, à História estrutural, que começa da terra, da Geografia, do ambiente, das pessoas. Percebi ser isso que queria fazer. Fui conversar com ele. Tinha a idéia de trabalhar também sobre o Frigorífico Armour. Eu ajudara na pesquisa da Professora Neiva Shaffer sobre a fronteira, sobre a expansão urbana, de Sant'Ana e Rivera, principalmente de Sant'Ana. Fui conversar com o sr. Gornatti, que era o gerente do Armour na época, e ele me disse que o asfaltamento das ruas dos Andradas e da Rivadávia Corrêa (Sant'Ana) tinha sido feito com o dinheiro do Armour. O Armour teria adiantado o dinheiro, tinha sido muito importante na expansão urbana tanto da região em que se situava como na cidade.

Para realizar o estudo, entrei no terreno do econômico, da técnica, das concepções políticas, procurando sobretudo a mentalidade fronteiriça e as relações entre santanenses e riverenses. A conjuntura que me propus a estudar foi a da industrialização da carne na região fronteiriça entre Brasil e Uruguai, que se inicia em 1904, com a instalação de uma charqueada em Livramento, de capital uruguaio, que foi comprada, em 1917, pela Companhia Armour de Chicago. O ciclo envolve as duas guerras mundiais, quando se dá o apogeu econômico da região.

À medida que eu pesquisava, fui verificando que o Armour tinha tudo a ver com Sant'Ana (BR) e Rivera (ROU); que o Armour , embora uma firma americana, era uma confluência da história de Sant'Ana e Rivera. Não só fazia parte, era uma parte importante da nossa história, como era muito difícil separar uruguaios e brasileiros na história desse frigorífico.

Antes da existência do Armour, o local tinha sido escolhido por um uruguaio, para outra firma, o Saladeiro, vindo de Montevideo para a fronteira, porque em Montevideo estavam entrando os frigoríficos e o Saladeiro ia ficando obsoleto. Como o grande mercado do charque era o nordeste brasileiro e o Rio de Janeiro, eles vieram para Sant'Ana. Mas vieram com o pessoal de Montevideo e a língua que se falava era o espanhol. As principais pessoas que sabiam cortar a carne, os principais funcionários eram todos uruguaios. E os italianos que vieram, todos falavam o espanhol. E essa tendência se manteve mesmo com o Armour, de norte-americanos, para a qual o Saladeiro foi vendido, em 1917, na época da I Guerra Mundial. Eles já estavam estabelecidos na Argentina e no Uruguai, então os próprios americanos falavam espanhol, e o pessoal do escritório e os funcionários mais graduados, mais especializados, falavam espanhol. Assim, os termos técnicos todos eram em espanhol, o que é difícil de encontrar numa firma americana. Os prédios do Armour foram construídos por um engenheiro uruguaio, embora o projeto fosse de uma firma de engenheiros ingleses.

Em 1920, o maior vendedor era de Sant'Ana e em 30, o maior vendedor era de Rivera. As vendas de Rivera eram astronômicas, muito maiores do que as de Sant'Ana. Aí me dei conta de que, na verdade, o Armour não comprava gado do Brasil. Ele comprava gado de Sant'Ana e Rivera.

Como diz o Professor Heredia, a fronteira tem que ser estudada de uma maneira diferente. A gente não pode usar só os conceitos de Estado e Nação. Essa população fronteiriça, estes atores sociais daqui têm que ser levados em consideração. E têm que ser um interlocutor privilegiado, porque nós convivemos com uma cultura sui generis. O Mercosul foi antecipado aqui em mais de um século. Muito antes de se falar em Mercosul, nós, de Sant'Ana íamos a Montevideo para tratar de doenças, para fazer compras; lá iam os estancieiros, quando queriam comprar gado europeu. Então nós vivenciamos o Mercosul desde o início do século, desde o século passado, desde as origens de Sant'Ana e de Rivera, cidade que se fundou exatamente para que o império brasileiro não seguisse invadindo o território uruguaio, o que para nós não era propriamente invadir. Era uma situação fronteiriça em que pelas ligações, pelos parentescos, pelas amizades, era um território só. Assim, eu conceituei, baseada no Professor Heredia e em Celso Lafer, como uma cidade só, ou uma região só, binacional.

Nós temos bem claras duas nacionalidades e temos bem claros o poder federal e o nosso estadual. Mas, ao mesmo tempo, como não há um rio, não há uma ponte entre Sant'Ana e Rivera, nós vivemos uma situação em que, na realidade, existe uma cidade só. E se nos voltamos para a história da sua formação, vamos ver que, por exemplo, as prefeituras não estão nas linhas divisórias. As prefeituras, digamos, até queriam ficar longe.

Quando se fundou Rivera, não era para ser aqui. Era para ser lá no Cunhapiru. Mas os vizinhos (vecinos) vieram, nos seguindo. Então, temos duas ruas que se continuam, a Sarandi (em Rivera) a Rua dos Andradas ( em Sant'Ana), e podemos dizer que as duas cidades se encontram pelo centro.

O comércio foi se aproximando, de maneira que hoje em dia, principalmente ali no que nós chamamos "Paraguai" - aquela área de camelôs - ninguém sabe quem é brasileiro, quem é uruguaio. Fizemos uma pesquisa ali: e é muito, muito misturado. O lado brasileiro tem muitos de uruguaios, no lado uruguaio há muitos brasileiros. É muito integrado.

Então cheguei à conclusão que nós podemos falar numa cidade só, binacional. A própria questão da língua, o portunhol, tem sido muito estudada no Uruguai. Trata-se de uma mistura do português, que teria iniciado nesse tempo em que os estancieiros brasileiros compraram terras no norte do Uruguai, e levavam os padres para batizar os filhos como brasileiros, numa invasão silenciosa. O Estado Uruguaio se fez presente, criando as cidades de Rivera e Artigas, quando então entra o espanhol. Na verdade, o portunhol, na medida em que nós nos damos conta da nossa especificidade como fronteira, tende a desaparecer. Se nós aqui estudarmos o espanhol, e se no Uruguai se estudar o português., nós seremos efetivamente bilíngües. Queira Deus que a gente tenha essa condição de nos organizamos para isso, valorizando um aspecto tão importante de integração. Principalmente neste momento em que estamos com tantos problemas na América Latina, é muito positivo podermos usar a nossa experiência de integração, num sentido mais amplo e mais vantajoso para nós, para não ficarmos só no contrabando e na parceria com nossos irmãos uruguaios.


Vera do Prado Lima Albornoz
é professora da Universidade da Região da Campanha (URCAMP, livramento,
e seu trabalho de mestrado - Armour - uma aposta no Pampa,
está publicado pela Pallott -2000