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A Função Paterna num Velho Conto  E-mail
Literatura e Medicina - Artigos

                       Roberto Bittencourt Martins * 


"A memória da infância é uma ilha perdida" - assim Augusto Meyer inicia seu conto "Caminhos da Infância", selecionado por Graciliano Ramos para representar o Rio Grande do Sul numa antologia (Contos e Novelas do Brasi), em 1957. Escrito na primeira pessoa, o texto revela as primeiras impressões de um menino pequeno - e nele achei ilustração para alguns aspectos da função paterna que abordei na Mesa-Redonda promovida pela Fundação Mário Martins e pelo CELP Cyro Martins no Dia dos Pais. Seu protagonista recorda momentos que o marcaram, os mais antigos em sua memória, quando, com a família, deixa a casa em que sempre vivera e vai alojar-se num rancho de barro ("...um muro velho, no quintal de uma casa indefinível"... "o vento da Campanha sobre nosso rancho"). Voltado para esse passado, reflete: "Meus olhos impregnavam todas as coisas de uma profundidade cheia de mistério. Tão altas que eram as macegas!" Confessa estar tentando trazer à tona "os arquipélagos submersos da memória", "voltar à raiz da vida, reviver aquela fase em que a gente é ao mesmo tempo todas as coisas, berço, aurora, sino e onda"...

São essas fases que o analista Robert Emde estuda em seu Relatório (1998) sobre as influências integradoras dos processos afetivos no desenvolvimento da criança. Emde procura reunir a observação psicanalítica do ser humano desde a primeira infância com as pesquisas de outras disciplinas, como as neurociências, observações de bebê etc. Uma das pesquisas abrange uma seqüência de entrevistas com os futuros pais, continuadas durante anos com o acompanhamento da relação dos Pais-Criança. Foi observado que cada bebê internaliza modelos independentes de esquemas emocionais nas relações com as outras pessoas - e que esses modelos estão baseados em seu relacionamento com cada um de seus genitores. O que significa isso? Por exemplo, em sua função de acolhimento, a mãe sorri para o bebê, o bebê sorri de volta, ela aumenta o sorriso, vocaliza um som, o bebê tenta repeti-lo, move-se, agita-se e a brincadeira se repete até que a criança se cansa. Já o pai, em geral, é ele quem propõe jogos estimulantes da motilidade (cutucar, mexer, mover), aumentando o estado de excitação do bebê, que corresponde até fatigar-se. Em relação a esse pai que brinca com seu filho, foi observada uma resposta padrão: quando ele se aproxima, o bebê o reconhece, por tato, olfato, visão, voz, e se coloca num determinado tipo de posição, seu tônus muscular modificado, como a preparar-se para a brincadeira. Por volta dos 18 meses, a criança já conhece bem a mãe e o pai que tem e como deve (ou não) relacionar-se com eles...

E esse pai que brinca e que promove no filho a criação do espaço do brincar encontra boa ilustração no conto de Augusto Meyer. O menino já seria maior, andaria por volta dos três anos. Seus sentidos descobriam as novidades do Mundo:

Maravilhoso era o talo de forquilha em que a mão direita e a mão esquerda tiravam sorte (....) O mundo era imenso. Começava muito além daqueles cerros quase apagados no horizonte e vinha dar na sombra da casa, onde o peão Felisberto construíra para meu uso uma casinha de brinquedo, encostada à outra, com janelas, portas, telhado de barro e um forno. Na casinha de brinquedo morava uma família minúscula, que meu pai recortara a canivete em tala de jerivá. À beira da ramada, fazíamos um churrasquinho. O fogo ardia nos olhos e ameaçava devorar a engenhosa construção de Felisberto. O naco de carne, tisnado e enfumaçado, era reservado, como oferta votiva, aos deuses cruéis que organizavam a cerimônia. Havia mangueiras de pedra e uma lavoura....

E o narrador recorda e reflete: "Mas, toda aquela miniatura, como alimento da imaginação, desaparece diante do luminoso espetáculo aberto em derredor. No céu tão alto para meus olhos de criança, as nuvens tomavam todas as formas...".

As duas casas, uma encostada à outra... O mundo em que tudo era enorme... A casinha de brinquedo construída pelo peão Felisberto e as pessoas recortadas na madeira pelo canivete do pai... A carne do churrasco e o alimento da imaginação... Nesse jogo do menino, diria talvez Freud, já estavam ativos os mesmos processos mentais que levam os escritores (ficcionistas e poetas) a criar, como Felisberto e o pai do guri, um mundo novo para o exercício da imaginação, reorganizando seus elementos para elaborar os desejos, temores e conflitos. Como vemos, o pai (e seu prolongamento na figura masculina do peão Felisberto) constróem para ele os brinquedos (a casinha e a família minúscula recortada na madeira), com os quais ele poderá reproduzir as ações adultas, o perigo das perdas e elaborar as ansiedades trazidas pelas separações da mudança. Não por acaso, o conto irá encerrar-se com a volta para casa, a perda de um mundo mágico e grandioso, a aceitação da realidade.

E será nesse regresso que o menino desenhará o perfil do pai: "Voltamos do Cerro da Árvore em carreta. Dias e dias, morei naquela casa de rodas que se arrastava pelas estradas (....)Aprumado no seu tobiano de estampa, cavalo de estimação que só ele montava, meu pai seguia, fechando a marcha...". Um tom idealizador colore nesse ponto o retrato: "Alto, esbelto, sempre alegre, lenço branco no pescoço e barbicacho nos queixos, não me lembro de ter visto gaúcho mais folheiro...". Contudo, uma certa idealização do Pai como grande homem serve para introduzir a aceitação da diferença sexual e para a formação do Ideal do Ego do menino. Processos que podem ser depreendidos da frase seguinte: "Sabendo que o tobiano era o meu sonho de guri, tomava-me às vezes nos braços e enganchava-me à frente, agarrado à cabeça do lombilho, para que tivesse a ilusão de dominar o pingo arisco." Nesse jogo de ilusão que une pai e filho, podemos ver inscrita a mensagem de que o pai, cumprindo sua função paterna, quer ver seu filho dirigindo o cavalo e aceita, portanto, seu sonho do filho de crescer e ser como ele... E assim lhe proporciona a sensação do faz-de-conta de que domina o pingo, é forte, alto, veloz ... Exercendo desse modo a função paterna, permite ao filho a identificação com a virilidade adulta do pai.

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* Roberto Bittencourt Martins é Médico Psicanalista e Escritor